Rua do Ouvidor, Centro do Rio, palco de confrontos entre guardas e camelôs |
Quase todos os dias as mesmas cenas se repetem nas ruas do centro e da zona sul carioca: kombis da prefeitura chegam, a guarda municipal desembarca e, imediatamente, passa a “apreender” as mercadorias dos camelôs que não têm licença para trabalhar, espancando barbaramente aqueles que resistem e desaparecendo com os objetos de maior valor, que nunca chegam aos depósitos de armazenagem. Por vários dias seguidos, especialmente a partir da última semana do mês de janeiro, a reportagem de AND presenciou alguns destes episódios na calçada em frente à redação, em Copacabana. Conversando com estes trabalhadores, sistematicamente agredidos e roubados, pressionados de todas as formas, percebe-se que eles vêm aumentando mais e mais sua resistência contra os crimes cometidos em nome do chamado “cumprimento da lei”, e que toda esta revolta pode explodir a qualquer momento.
Vivendo “no grito”
“Já faz uns seis anos que estou vendendo mercadorias na rua. Perdi o emprego, era mecânico-eletricista e não teve outro jeito, não conseguia mais colocação em firmas, virei camelô… No começo você estranha, se sente meio humilhado, mas depois acostuma, vê que não é nada disso; em pouco tempo você já ‘tá’ gritando parar vender os produtos”, diz o vendedor ambulante Ricardo M. Oliveira, contando como começou a trabalhar na rua. Casado, 38 anos, três filhos em idade escolar, Oliveira vende bijuterias em Copacabana há mais de cinco anos e é um dos milhares de trabalhadores lançados na incerteza do comércio ambulante pelo desemprego que, como se sabe, aumentou enormemente no referido período.
Sua voz é uma das muitas que se misturam aos sons da calçada, ao trânsito e ao passar ininterrupto de pessoas. Roupas, adereços, bolsas, artesanato, são anunciados aos berros, com chamadas e slogans criados no improviso. Porém, em meio a todo este barulho, a tensão é constante. Todos os camelôs que não têm licença, (que constituem a esmagadora maioria destes trabalhadores), por mais descontraídos que pareçam, estão sempre olhando para os lados, mirando as esquinas, de onde surge intempestivamente a guarda municipal.
Uma conversa mais demorada com um vendedor ambulante e logo se ouve furiosos protestos. Entre um cliente e outro, Ricardo Oliveira prossegue seu depoimento à AND, falando agora sobre a atuação da guarda municipal nos choques ocorridos no 31/01/2003, com os camelôs, nas imediações da Avenida Rio Branco, Centro do Rio, que tive ram como saldo vários policiais e camelôs feridos, alguns gravemente: “Tamos assistindo a um crime, que é tirar das pessoas a última alternativa que elas têm de sobreviver. Quando um guarda vem e te toma as mercadorias, te enchendo de pancada, dá muita revolta. O prejuízo é muito grande, e tem gente que nem consegue mais pagar o que deve… O que aconteceu na sexta-feira foi um crime, guarda batendo de cassetete em todo mundo, roubando mercadoria de trabalhador, tratando os colegas como bandidos… Por outro lado, a reação do pessoal foi justa; é aquilo mesmo, se você não se defende perde tudo e ainda apanha…”
As ‘apreensões’ de mercadorias
Todas as vezes que são covardemente impedidos de trabalhar, os camelôs cariocas têm suas mercadorias apreendidas pela guarda municipal do Rio, que deveria levá-las para um dos depósitos da prefeitura, para que, posteriormente, os trabalhadores pudessem reavê-las. Isso é o que deveria acontecer, e que por si só já constitui um cerceamento criminoso do direito ao trabalho e à sobrevivência dos vendedores ambulantes. Porém, o que de fato ocorre, é que as mercadorias, na maioria das vezes apreendidas ilegalmente — pois as apreensões não são feitas na presença de um fiscal e nem tem notificação —, nem chegam a ir para os referidos depósitos da prefeitura. No trajeto entre o ponto da recolha do material até os galpões de armazenagem, os produtos simplesmente desaparecem, ficando os camelôs com todo o prejuízo.
Tamos assistindo a um crime,
que é de tirar das pessoas a última alternativa
que elas têm de sobreviver
Ricardo Oliveira, camelô
“Tem gente que perde 3 mil, até 5 mil reais num só dia. Os camelôs que vendem coisas mais caras como relógios, óculos, DVD’s são os que perdem mais, tanto pelo preço dos produtos, como pelo ‘sumiço” que as mercadorias têm…, diz uma vendedora de bonequinhas para geladeira do Centro, que não quis divulgar seu nome, temendo perseguições. Ela continua: “Ao ir ao depósito, quem perde mercadoria na rua só encontra coisas quebradas, amontoadas, já sem nenhum valor. Para onde vão estas mercadorias? Elas não foram apreendidas? Deveriam ser de responsabilidade da prefeitura”, finaliza ela, entre revoltada e irônica.
Este tipo de procedimento é que vem sendo o mote dos constantes conflitos entre os camelôs e a guarda municipal. Nenhum trabalhador tem aceitado calado o sumiço de suas mercadorias.
Reação e autodefesa dos trabalhadores
Diante das apreensões de produtos, sempre praticados com extrema violência pela guarda municipal, os camelôs têm reagido cada dia com mais intensidade. No conflito do dia 31/01 foram usados foguetes, rojões, pedras e todo tipo de objetos encontrados no local contra a guarda municipal. Os trabalhadores dizem não poder parar de trabalhar, enquanto a GM afirma estar cumprindo a lei. Enquanto a situação não se resolve, os trabalhadores vão desenvolvendo suas formas de resistência. Ao mesmo tempo em que cantam ou fazem piadas para atrair fregueses, os camelôs se põem em alerta contra qualquer tipo de agressão e injustiça.