A atmosfera de insegurança produzida pela ação coordenada dos órgãos de inteligência e dos monopólios da imprensa — após os atentados de maio e julho contra bases policiais e outros alvos em São Paulo, atribuídos ao Primeiro Comando da Capital (PCC) — está sendo usada pela direita parlamentar para suprimir garantias e ampliar o poder repressivo do Estado. Nos últimos dois meses, representantes de setores com poder de intervenção repressiva no Congresso vêm aproveitando a comoção resultante da exploração política dos acontecimentos para acelerar a tramitação de projetos de lei com este viés.
Arte: Alex Soares
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Como no quadro de Goya, os monstros proliferam enquanto a razão dorme o sono a que foi induzida pela atuação dos monopólios (des)informativos. No dia 17 de maio, em meio à primeira onda de pânico produzida em São Paulo, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou e remeteu à Câmara para análise projetos de lei que restringem direitos e ampliam a margem de ação do Estado na esfera penal.
Um deles, o PLS 179/05 (senador Demóstenes Torres, PFL-GO), institui o chamado Regime Disciplinar Diferenciado de Segurança Máxima. Este projeto consegue a proeza de tornar ainda mais draconiano um regime prisional já classificado por especialistas como de tortura psicológica e aniquilamento da personalidade (ver matéria nesta edição).
O regime criado pelo PLS 179 parece o resultado de uma combinação entre o Castelo de If e o panóptico de Bentham. Prevê isolamento do preso em solitária por até quatro anos, durante os quais não poderá ter contato físico com ninguém. As visitas tornam-se mensais e limitadas a duas pessoas da família, com parede de vidro a separá-las do preso. As conversas entre o interno e os visitantes só poderão ocorrer por meio de interfone e deverão ser gravadas e remetidas ao Ministério Público. Os parentes ficam proibidos até mesmo de levar alimentos e bebidas ao preso. Os banhos de sol têm sua duração limitada ao máximo de duas horas diárias, sem estabelecimento de duração mínima. Durante eles, o preso fica proibido de se comunicar com outros internos. O acesso a advogados também poderá dar-se no máximo uma vez por mês, também com separação por parede de vidro.
Para que alguém seja submetido a este regime, não é necessário nada além da suspeita de participação "a qualquer título" em organização criminosa. Não se exige sequer que o preso esteja condenado.
Outro projeto que manda para o espaço a presunção de inocência é o PLS 138/06, que prevê a indisponibilidade dos bens de pessoas meramente indiciadas pela prática de crime doloso punível com reclusão. O indiciamento é um dos primeiros passos do processo penal: ocorre quando o delegado de Polícia abre o inquérito para apurar a ocorrência e autoria de um crime. Depois disso, o resultado do inquérito é analisado pelo Ministério Público, que pode denunciar ou não o indiciado à Justiça, onde ele poderá ser condenado ou absolvido. O PLS 140/2005 é ainda pior: prevê o uso dos bens de indiciados para a reparação de danos decorrentes do crime em investigação ou julgamento.
Mais cadeia
O PLS 474/03 amplia no tempo o raio da possibilidade de persecução penal pelo Estado ao aumentar os prazos de prescrição estabelecidos no Código Penal. Os maiores, hoje de vinte anos, passam para trinta.
O PLS 186/04 aumenta de trinta para quarenta anos o tempo máximo que alguém pode permanecer na cadeia. Além disso, proíbe que a unificação da pena reflita-se sobre a progressão de regime. Se alguém é condenado por crimes diversos a penas cujo somatório ultrapassem o máximo definido em lei, a justiça deve fixar esta pena no máximo; e embora o STF não reconheça isto, alguns tribunais consideram que a pena unificada deve servir de base para a possibilidade de progressão de regime (por exemplo, passar do fechado ao semi-aberto). Assim, se a lei exige o cumprimento de um sexto da pena para mudança de regime, leva-se em conta um sexto de 30 — ou seja, cinco anos — , e não da pena inicial.
A elevação do tempo máximo de encarceramento para 40 anos teria, em muitos casos, o efeito de uma pena perpétua, o que é proibido pela Constituição.
O PLS 135/06 é mais radical. Proíbe a concessão de liberdade condicional a reincidentes em crimes dolosos. Além do caráter draconiano, é de uma obtusidade fora do comum: se for aprovado, a liberdade condicional será proibida a um condenado por dois furtos, mas continuará ao alcance de quem cometer um homicídio triplamente qualificado.
O PLS 136/06 prevê que o porte de rádio ou telefone celular ensejará o envio do preso ao Regime Disciplinar Diferenciado.
Sem defesa
O PLS 139/06 visa permitir que promotores e juízes possam interrogar pessoas presas por meio de videoconferência. Este projeto implica um sério prejuízo à possibilidade de defesa dos interrogados, já que, se eles responderem às perguntas na cadeia, o juiz não tem como verificar, por exemplo, se o réu está sofrendo alguma forma de coação. Além disso, o interrogatório por videoconferência prejudica a descoberta da verdade, na opinião do ex-deputado Hélio Bicudo. Procurador de Justiça aposentado, Bicudo diz que a oportunidade de estar cara a cara com o preso é fundamental para que o promotor ou juiz forme convicção sobre sua culpa ou inocência.
Outro projeto que, se aprovado, contribuirá mais para encobrir do que para desvendar a verdade em processos criminais é o PLS 140/06. Ele estabelece que presos já condenados podem ter sua pena reduzida se colaborarem com investigações policiais. A legalização desta forma de suborno a condenados abre a porta para seu uso pelas autoridades policiais e judiciárias para incriminar quem quiserem. A chamada delação premiada é condenada desde Beccaria*, que escreveu em Dos delitos e das penas: "a sociedade autoriza deste modo a traição, que repugna aos próprios celerados. Introduz os delitos de covardia, muito mais funestos do que os delitos de energia e coragem (…). O tribunal que utiliza a impunidade para desvendar um crime demonstra que é possível ocultá-lo."
Crimes de Estado
Na Câmara, tramita na Comissão de Segurança Pública o PL 4004/01, cujo substitutivo prevê que quaisquer documentos relativos a ações policiais serão classificados como ultra-secretos e mantidos inacessíveis ao público por 50 anos, prorrogáveis por mais 50. Se estivesse em vigor, este projeto serviria para ocultar os documentos relativos às circunstâncias em que mais de cem civis foram mortos em São Paulo durante o banho de sangue promovido por grupos policiais nas áreas periféricas da cidade a pretexto de resposta ao PCC.
Falou-se também, após os episódios de maio, na retomada da tramitação do PL 6762/02. Até o momento, porém, ele ainda encontra-se parado.
Este projeto, elaborado pelo governo FHC consiste na reprodução ampliada da antiga Lei de Segurança Nacional do período de gerenciamento militar. Ele insere no Código Penal um título relativo a "crimes contra o Estado".
A diferença essencial entre o PL 6762 e a Lei de Segurança Nacional é que esta tinha um objeto bem delimitado: aplicava-se a quem desejasse alterar o regime político e a ordem constitucional. A redação que o projeto confere ao Código Penal não traz esta delimitação.
O PL 6762 é claramente destinado à criminalização do protesto social. Ele prevê, por exemplo, uma pena de dois a oito anos de reclusão para quem simplesmente tentar "impedir ou dificultar o exercício do poder legitimamente constituído" — o que pode significar simplesmente fazer piquete em repartição pública. Isto caracterizaria crime de insurreição. Como todo piquete envolve mais de uma pessoa, seus participantes incorreriam também no crime de conspiração, punido com pena de um a cinco anos. Este crime consiste em "associarem-se, duas ou mais pessoas, para a prática de insurreição ou de golpe de estado".
Se, no entanto, o piquete é feito por motoristas de ônibus ou maquinistas em greve, as consequências podem ser mais graves. Se eles resolvem impedir a circulação de ônibus e trens como forma de pressão para o atendimento de suas reivindicações, serão enquadrados no crime de apoderamento ilícito de meios de transporte, punido com dois a dez anos de prisão e consistente em "apoderar-se ou exercer o controle, ilicitamente, de aeronave, embarcação ou outros meios de transporte coletivo, por motivo de facciosismo político, religioso ou com o objetivo de coagir autoridade". Se chegam a quebrar um ônibus, serão denunciados pelo crime de sabotagem ("destruir, inutilizar, total ou parcialmente, definitiva ou temporariamente, meios de comunicação ao público ou de transporte, portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias (…)"), punido com dois a oito anos de reclusão. Os exemplos são muitos.
"Companheiro" Lombroso
A concepção subjacente a estes projetos de barbárie penal foi revelada pelo senador goiano Demóstenes Torres (PFL), autor de quatro dos oito projetos de lei do senado mencionados nesta matéria: os de nº 179/05, 474/03, 186/04 e 140/05.
Em entrevista concedida ao jornal Opção, de Goiânia, em 30 de janeiro de 2005, Demóstenes, que é procurador de Justiça, defendeu seus projetos com o seguinte argumento: "Como é que se vai recuperar um delinqüente que nasce violento?"
Esta idéia vem de Cesare Lombroso (1835-1909), médico italiano que, em sua obra L' Uomo delinquente, imaginou encontrar nas características morfológicas de alguns indivíduos sinais seguros de propensão ao crime. Suas teorias caíram no ridículo em pouco tempo, não sem antes dar azo a todo tipo de barbarismo penal, muitas vezes com fundo racista. O senador goiano revela-se um entusiasta de tais concepções. "Dizem: "Essa teoria é lombrosiana e morreu". Mas está voltando". — afirma ele na entrevisa citada.
A quem se destina?
Há também algumas motivações mais sérias. Na exposição de motivos do PLS 179/05, Demóstenes menciona a criação de um regime prisional semelhante na Itália, supostamente bem sucedida. De fato, a sociedade brasileira faria bem em estudar a experiência italiana.
Naquele país, as leis de exceção foram justificadas pela necessidade de derrotar a Máfia. Em que pese a existência de alguns juízes íntegros e corajosos, como Giovanni Falcone, que usaram estes instrumentos para combatê-la sem tréguas, ela continua fortemente presente e imbricada com a estrutura do Estado italiano. A supressão de garantias serviu, efetivamente, à criminalização de adversários do status quo e ao aniquilamento de organizações de esquerda.
Embora nem todos os projetos em debate no Congresso hoje tenham uma conotação política tão clara quanto a do PL 6762, sua aprovação terá como resultado a criação de um dispositivo jurídico de guerra contra os movimentos populares.
O peso do fascismo já começa a cair sobre eles: manifestantes do Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST) que invadiram a Câmara dos Deputados em maio e líderes do movimento permaneceram confinados em celas de isolamento e enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Enquanto isso, a direita policialesca e o crime organizado simulam um enfrentamento que, como observou um amigo a este repórter, parece um espetáculo de telecatch: nenhum dos dois se machuca, todos se promovem e alcançam o estrelato.
* Beccaria — Marques Césare de Beccaria Bonesana. Criminalista e economista italiano. Nasceu em 15 de março de 1738 e faleceu em 28 de novembro de 1794.