"Vou pagar o dobro, mas pobre só compra assim…", comentava Andréia da Silva Melo saindo de uma agência de automóveis na Tijuca ao volante de um Gol com anos de uso, "comprado a perder de vista para ampliar a área de vendas de beleza". Tamanha emoção, só a de Edmilson de Andrade Coutinho, porteiro que comprou um Celta sucateado para visitar a mãe, que aos 70 anos conserta roupas em Santa Cruz.
Para ficar com o Gol, Andréia assumiu um compromisso de 12 mil reais com o monopólio do capital financeiro. Deu 6 mil de entrada e financiou o resto em 24 prestações de R$ 480. A entrada ficou praticamente fora da compra, já que as prestações, mês a mês, estarão conformando R$ 11.520, ou o preço do calhambeque. Com Edmilson, a mesma coisa: entrada e 24 prestações de R$ 243. Como as gorjetas que ganha por lavar carros ajudam a pagar as contas em dia, ele agora sonha com um aparelho de som. Serão 13 prestações de R$ 138, ou R$ 1.794 ao todo.
Andréia e Edmilson não têm a menor idéia, entretanto, que o monopólio do capital financeiro obtém os lucros mais altos do mundo exatamente no país onde vivem, sem contribuir com um centavo para nada.
Há mais de duas décadas o monopólio do capital financeiro locupleta-se de taxas astronômicas de juros, desde que fez passar no Congresso Nacional uma emenda à Constituição Federal de 1988 eliminando o limite máximo de 12% ao ano para sua orgia financeira. Desde então, melhor é que Andréia e Edmilson não consigam pagar as prestações. Logo serão extorquidos por multas e moras e, se não puderem livrar-se disto, melhor ainda para os financiadores. Eles baixarão as prestações e alongarão os prazos de pagamento e no final, a vendedora e o porteiro terão pago não o dobro, mas o triplo e talvez o quádruplo por veículos que já nem estarão rodando.
O Proer do pelego
Há longo tempo, a agiotagem se aperfeiçoa no próprio Planalto. Na época em que Henrique Meirelles — operador do Bank Boston importado para a presidência do Banco Central — apresentava como coisa séria o Banco Opportunity, de Daniel Dantas, o mega-gerente Luiz Inácio disse pela primeira vez, em Manágua, que nunca antes, na história deste país, os bancos ganharam tanto dinheiro quanto sob sua gerência, e ironizou com seu antecessor, Cardoso:
— Mais impressionante é o dia que os bancos derem prejuízo e que o governo tiver de criar um Proer para ajudá-los. Aí o prejuízo é total. É importante que a gente analise a rentabilidade dos bancos com o crescimento do crédito no país. Vocês vão perceber que o crédito cresceu mais que quadruplicou, desde o consignado ao crédito para as empresas.
O monopólio do capital financeiro dissimula a agiotagem alegando que seus lucros advém, em grande parte, de ganhos com a prestação de serviços. Há números que poderiam até convencer, não fossem desde logo repudiados por entidades sérias.
Entre 1995 e 2007, o monopólio do capital financeiro viu seus lucros crescer 468%. As tarifas médias cobradas em 1994 pelos 11 maiores bancos correspondia a 25,4% das despesas com pessoal, e essas receitas cresceram a ponto de atingir 125,2%, em 2006, segundo o professor da UnB Adriano Benayon, assíduo colaborador de A Nova Democracia.
A cobrança de nada menos de 52 tipos de tarifas, saltou de R$ 9,1 bilhões para R$ 28 bilhões — um crescimento de 94,4%, segundo o Banco Central — trazendo a necessidade de um jogo de faz-de-conta para manter a maré mansa.
Malandragem nas tarifas
Assim, o Conselho Monetário Nacional (CMN) baixou, em dezembro de 2007, regulamentação para ser cumprida a partir de abril. Durante esses seis meses, todavia, surgiram denúncias de todo tipo contra a rede bancária, a começar pela variação de até 183,3% no preço pago pelos consumidores por folhas de cheque no Banco Safra, por exemplo.
Os juros cobrados pelo uso do cheque especial em março chegaram a 152,7% ao ano, contra os 149,8% registrados no mês anterior. A taxa média de juros (pessoas físicas e jurídicas) passou de 37,6% ao ano, em março, para 37,4 % ao ano em abril.
Os serviços bancários foram classificados em essenciais, prioritários, especiais e diferenciados, estabelecendo-se ainda reformulação das tarifas cobradas e padronização da sua nomenclatura, mas há reclamações de toda ordem.
Decorrido um mês da introdução da medida, a Fundação Procon de São Paulo divulgou estudo comparando os valores cobrados pelo mesmo serviço, em cada um dos bancos consultados, no início de fevereiro e no dia em que as regras do BC entraram em vigor. Segundo o órgão, foram verificados aumentos de até 433% no valor das taxas durante o período.
A pesquisa comprovou que os bancos ainda não cumpriam as normas estabelecidas na Resolução 3.518 do Banco Central para a cobrança de tarifas, e poucos informavam de maneira correta quais são os serviços gratuitos incluídos nos seus pacotes de tarifas.
De acordo com o Procon-SP, o preço de um extrato mensal pode variar de R$ 1,30 até R$ 10, dependendo do banco. No caso dos pacotes padronizados de serviços, há bancos que cobram taxas mensais de R$ 15 e outros que cobram R$ 28.
A arca do tesouro
O professor Benayon destaca, entretanto, que nada supera a lucratividade derivada das mais altas taxas de juros do planeta: "Como o volume de crédito atingiu R$ 1,06 trilhão, à taxa média para pessoa física de 49,1% ao ano e pessoa jurídica de 26,6% ao ano, a receita de juros chega a R$ 350 bilhões", resume.
Como dinheiro chama dinheiro, o volume de recursos oferecidos para empréstimo pelo monopólio do capital financeiro atingiu em março R$ 1,3 trilhão de reais, correspondendo à metade de toda a riqueza (bens, produtos e serviços) produzida pelo Brasil em um ano, do pãozinho até o apartamento de luxo. Como resultado, este primeiro semestre, à testa da fila ficaram o Bradesco, com lucro de R$ 4,105 bilhões, e o Itaú, com R$ 4,084 bilhões. A rede bancária, para explicar como consegue extrair do povo esta dinheirama, lança mão da ladainha mandada rezar pela agiotagem transnacional: emprego e renda em alta estimulam o avanço do crédito, que aumentou 32,5% para pessoas físicas nos últimos 12 meses.
A ser verdade, as empresas estariam operando a todo vapor, assinando a carteira de um número cada vez maior de trabalhadores e pagando mais e melhor a todo mundo, inclusive àqueles milhares de funcionários dos Correios que só obtiveram um microscópico reajuste quando desencadearam a greve mais temida pelo imperialismo: a que produz em cada agência montes da altura do Himalaia com boletos e cartas de cobrança para entregar.
O primeiro trimestre de 2008 confirmou a tendência registrada no ano anterior. A Rentabilidade sobre o Patrimônio Líquido (RPL) dos 18 principais bancos ficou em 21,94%, com o quinquênio FMI-PT de Luiz Inácio (2003-2008) superando, sempre, seis anos da FMI-PSDB, (1996 a 2002) de Cardoso (10,09%), com ínfima contribuição para os cofres públicos.
A Rentabilidade sobre o Patrimônio Líquido (RPL) ou retorno é uma conta utilizada para definir quanto uma empresa ganhou em comparação com seu patrimônio líquido num determinado período. Para fazer isso, é só dividir o lucro líquido total da empresa pelo patrimônio líquido total que ela possuía numa mesma época. O resultado, em percentual, será o retorno sobre o patrimônio líquido.
Penetração estrangeira
O nível de Rentabilidade sobre o Patrimônio Líquido dos bancos brasileiros, considerado "altíssimo" pelos especialistas, indica, de um lado, que a demanda por dinheiro emprestado cresce fortemente, mas continua a ser atendida por poucos bancos, evidenciando a concentração e centralização: "Os agentes menores não têm como competir com as taxas dos grandes", explica o economista Fernando Exel, responsável pela pesquisa.
A tendência, segundo ele, "é de que mais bancos estrangeiros se estabeleçam no país, já com a possibilidade de concorrer com os líderes de mercado. Ou que bancos pequenos de outros segmentos, se unam para disputar espaço".
No USA, a chamada crise subprime pegou o Citigroup em cheio. Curiosamente, no Brasil tudo ficou em brancas nuvens, 7 mil funcionários, 400 mil contas de clientes, 6 milhões de cartões e ativos da ordem de R$ 25 bilhões, de acordo com dados da própria instituição. O desempenho das 123 filiais do Citibank no Brasil tem ajudado o conglomerado a driblar a turbulência do setor imobiliário americano. Ano passado, o banco faturou aqui e remeteu para a matriz R$ 1,72 bilhão. Foi o maior lucro dos 93 anos do banco no Brasil e correspondeu a quase um terço de todo o rendimento da companhia no planeta. O número era tão expressivo que o mega-gerente da instituição no Brasil, Gustavo Marin, confessou:
— Somos a menina-dos-olhos do Citibank no mundo. As taxas de crescimento são elevadas em todas as áreas. Há um avanço muito forte das operações da financeira — CitiFinancial —, voltadas para as classes C e D. Mas os empréstimos pessoais feitos nas nossas agências também têm tido crescimento expressivo.
Bons resultados não são privilégio do Citibank. Os bancos lideram com folga as remessas de lucros e dividendos para as matrizes no exterior. De acordo com dados do Banco Central brasileiro, divulgados recentemente, as instituições financeiras foram responsáveis por 25,1% de todas as remessas do primeiro quadrimestre, ou o correspondente a US$ 2,285 bilhões.
Amplia-se a abertura
Em meio a conjuntura tão favorável, o Conselho Monetário Nacional (CMN) tratou de aprovar uma proposta de aumento da participação estrangeira em instituições financeiras sediadas no Brasil e que são apelidadas de "camaleões", como a Randon S.A. Implementos e Participações, que atua no segmento de implementos agrícolas. Para dissimular, o Banco Central informou que tratava-se apenas de uma "proposta de decreto presidencial reconhecendo, como de interesse do governo brasileiro, a participação estrangeira em até 49% do capital volante do Banco Randon S.A.".
Na mesma reunião, o CMN manifestou o interesse do governo brasileiro em permitir a participação do BNP Paribas S.A em até 100% do capital social do banco BGN S.A e de sua controlada, a BGN Leasing S.A Arrendamento Mercantil. Do mesmo modo, reconheceu-se como de interesse do País a participação estrangeira em até 100% no capital social da Topázio S. A. — Crédito, Financiamento e Investimento.
A expressiva diferença entre a elevada taxa de juros da economia brasileira e as pequenas taxas dos países ricos está turbinando o lucro dos bancos e das transnacionais no país.
Captando recurso no exterior a um custo baixo e, depois, cobrando dos consumidores brasileiros uma taxa maior, grandes empresas ampliam seu resultado financeiro às custas de um modelo que eleva a vulnerabilidade do país e, em última análise, penaliza o trabalhador.
Segundo o Banco Central, no primeiro trimestre as empresas trouxeram do exterior 4.680 bilhões de dólares, contra 5.097 bilhões no mesmo período de 2007. Segundo especialistas, apesar da queda, esses valores são bem superiores às necessidades de financiamento externo dos grupos privados. Além disso, no primeiro trimestre de 2008, a dívida do setor privado, calculada em US$ 1.907 bilhões, teve uma taxa de rolagem de 231%. Ou seja, o setor privado tomou no exterior muito mais dinheiro do que precisaria.
Catimbando documentos
Isto não constitui, todavia, o único instrumento de que os bancos se valem para auferir bons resultados. Manobram com extrema habilidade na recuperação dos recursos pelos 50 milhões de correntistas prejudicados pelos planos Bresser e Verão, e que necessitam antigos extratos para habilitar-se. Estima-se que o valor desses processos ultrapasse R$ 1,9 trilhão (coincidentemente cerca de metade do Produto Interno Bruto brasileiro). Este dinheiro ficará para os bancos nos quais acha-se depositado, se não houver retirada conforme exigências legais. A extraordinária quantidade de demandas judiciais contra os agentes do monopólio financeiro indica a proposital protelação do fornecimento dos documentos, para que a dinheirama seja incorporada ao patrimônio dos bancos, conforme legislação produzida por sua interferência.
A Defensoria Pública Federal de São Paulo, mobilizada, entrou com processo na 15ª Vara Federal, e já se sagrou vitoriosa em ações contra o Banco do Brasil, Itaú, Bradesco, ABN Amro-Real, Unibanco, HSBC e Santander-Banespa.