Bip Bip – Lá, onde o samba está em casa

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Bip Bip – Lá, onde o samba está em casa

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No finalzinho de Copacabana, já perto do Arpoador, um quarteirão fechado, pouco movimento de carros. Às 19 horas passam por aquelas calçadas trabalhadores, jovens, mulheres, uns só de passagem, outros para ficar. Longe do glamour artificial do calçadão escovado propalado pelas novelas, também passam por lá as sempre bem-vindas crianças de pés descalços, homens de barba cerrada, gente que perdeu a esperança na vida e gente que a reencontrou ao conhecer o dono e guardião da casa do Samba. Alfredo, ou Alfredinho do Bip, senta-se à porta para receber a boa música. Dentro ficam os músicos, o público ocupa a calçada. É um quartinho, chamariam de um botequim, mas seria também injusto chamá-lo apenas assim.

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/52/24b.jpgA casa vai enchendo aos poucos, chega um casal, chega uma jovem. Beija as mãos do Alfredo e recebe igual retribuição. Chega um rapaz carregando o violão, e mais outro, e um senhor carregando um pandeiro. Para cada pessoa que chega um aceno, um sorriso ou, para o deleite de quem observa, uma bem humorada descompostura do dono da casa: "Pôxa fulano, assim não dá, não pode ocupar a calçada assim, eu já te disse, assim você me complica, como é que pode uma coisa dessas, assim não dá", e já emenda um novo sorriso para um outro sambista que chega.

O Bip Bip não é uma grande casa com holofotes, não é um lugar "da moda", nem aparenta tencionar ser. O "Bip" é um lugar para se ir, para visitar o choro e o samba, aquele samba marcado eternamente nas mentes da "velha guarda" e que revive nas cordas, batuques e acordes de uma nova geração que já divide a mesa do Bip desfilando Altamiro Carrilho, Cartola, Pixinguinha e por aí vai.

Quadros na parede retratam visitantes ilustres do porte de Beth Carvalho e Valter Alfaiate, e denunciam uma paixão incondicional pelo Botafogo. Quem chega ocupa uma cadeira e vai se servindo dos aperitivos. Alfredo não serve ninguém. Se posta em uma mesa ou no balcão e todos lhe dão satisfações do que consomem. Vez ou outra passa um morador de rua, um usuário de drogas, silencioso. Alfredo o chama pelo nome, beija e abraça, dá uma moeda, cabra carinhoso, porém autoritário: "Cicrano, você sumiu esses dias, esse 1 real aí é para um banho, um banho, quero ver!"

Alfredo nasceu em Santa Cruz e passou a infância e adolescência em Bangu e Cosmos, bairros pobres do Rio. Durante a juventude vivia pelas rodas de samba e choro e nas reuniões na casa de amigos. Sua história se cruzou com a do Bip Bip ainda na juventude, em um fatídico 13 de dezembro, no ano de 1968. Naquela tarde era promulgado o AI5 e na mesma noite foi inaugurado o Bip.

— Eu morava aqui perto em um apartamento alugado com amigos, onde escondíamos muitos livros e lutávamos contra a repressão. Sempre fui socialista. De manhã soubemos que uma amiga tinha ‘caído’ em uma repressão no Leme, e para esfriar a cabeça fui na inauguração do Bip que estava acontecendo naquela hora. O AI5 só foi anunciado de tarde, uma coincidência. E só fui saber o significado do nome Bip Bip bem mais tarde, quando a irmã de um dos fundadores me contou: é em homenagem ao satélite russo Sputnik, pelo seu barulho — Explica Alfredo.

— Quem gosta do Bip musical deve agradecer a Cristina Buarque, uma das minhas grandes amigas, que muito me ajudou trazendo povo. Juntos começamos a colocar lançamentos de livros, vernissage e desenvolvemos projetos em favor de crianças de rua, crianças com câncer, Casa da Vila e muitos outros — fala.  

Alfredo conta com orgulho a história de dois meninos de rua, ex-viciados em drogas, que ficavam nas imediações do bar. Ele, Cristina Buarque e Vitor Farinha os levaram ao médico, dedicaram sua atenção e amizade e hoje um deles está trabalhando em um circo na Alemanha e o outro em um circo em São Paulo.

— Os meninos de rua daqui da área já me conhecem, posso dizer até que sou um ídolo para eles, me respeitam. Para conseguir o dinheiro eu passo o chapéu, faço camisas do bar, alguns depositam mensalmente, tem a venda do CD gravado para o Bip. Na época os amigos gravaram porque eu precisava, mas não precisei mais e destinei para projetos sociais — fala.

Participaram do CD: Elton Medeiros, Nelson Sargento, Cristina Buarque, Walter Alfaiate, Moacir Luz, Aldir Blanc e outros músicos. Todos fizeram música inédita para o disco, e Alfredo faz questão de dizer que nenhum ganhou dinheiro por isso, sendo por pura amizade. O disco, que tem tiragem limitada, é encontrado no próprio bar, pelo valor de vinte reais.

Amizade, união e resistência

— Não tenho condição de ter empregados, também não posso pagar os músicos, muito pelo contrário, todos pagam aquilo que consomem. Quando me dá vontade de fechar tudo, me lembro do meu amigo Albino Pinheiro que pouco antes de morrer me disse: ‘Alfredinho, não desista, eu vou embora, mas você fica aí resistindo’. Dá mesma forma outros amigos falam — confessa.

O que me desanima é que muitas vezes fico aqui no bar e as pessoas ficam dentro de casa, com medo da violência, na frente da televisão, pedindo comida pelo telefone, o que é coisa comum entre a classe média medíocre. Costumo dizer que violência é não sairmos de casa, não sentarmos para conversar, trocar idéias, opinião, falar de cultura, discutir política e sobre tudo que estão tentando nos impor de alguma forma — diz.

A fome, a opressão, desunião, é o que vemos; tudo por causa da ganância por dinheiro, desse capitalismo desenfreado, onde tudo é competição, separação e poder. Mas nunca vi enterrarem cofres, só vejo enterrarem homens — continua.

Entre aspas

"Boa noite a todos os amigos. É um prazer recebê-los aqui. Um pouco de silêncio para eu dar um daqueles recados de sempre. Em primeiro lugar hoje teremos a nossa noite em homenagem ao Altamiro Carrilho. Infelizmente o homenageado não poderá vir, está doente. Mas faremos mesmo assim uma bela homenagem a esse grande nome da música brasileira. Vou lembrar a todos que viemos aqui para ouvir uma boa música, não para bagunçar, então, antes de tudo, silêncio. Não vamos falar alto, vamos ter educação. Não vamos bater palmas, eu tenho um acordo aqui com a vizinhança, quando quiserem se manifestar quem já sabe ensina aos outros, é assim (e faz um movimento estalando os dedos). Aqui temos cobras da música, profissionais, música de qualidade, vamos ouvir. Aqui não é lugar para barulhada e confusão, é para ouvir boa música. Bom show para todos nós."

No Bip Bip é assim, sem meias palavras. Silêncio, estalar de dedos ao final de cada composição. O público acompanha cantando baixinho e a boa música brasileira entra sem pedir licença. Vale a pena conferir.

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