A Bolívia ingressa ao vigésimo dia de conflitos, já em fase de abatimento, revelando por completo as profundas crises que vive esse país: crise de ordem social, econômica, política; em síntese, uma profunda crise estatal. A Presidência da República recai nas mãos do senhor Eduardo Rodríguez Veltzé, presidente da Corte Suprema da República, imediato ao processo de renúncias na sucessão presidencial efetuadas por Carlos Mesa, presidente renunciante, Hormando Vaca Díez, presidente do Senado Nacional e Mario Cossío, presidente da Câmara dos Deputados, o que resulta em 7 presidentes da república nos últimos 4 anos.
No entanto, a vertiginosa substituição presidencial se vislumbra como uma saída meramente conjuntural, que deixará intactos os problemas de fundo que aflijem o país, porque as pugnas pela hegemonia política não foram resolvidas. As seguintes reflexões tentam realizar uma aproximação à chamada “embromação boliviana”, que já leva mais de 5 anos e nos últimos dias originaram enfrentamentos que sacudiram a sociedade boliviana, somando-se aos que sucederam no ano de 2000 e 2003.
A pugna pela hegemonia política
De um lado, a burguesia e os latifundiários de Santa Cruz de la Sierra1 não conseguiram afirmar seu poderio econômico no cenário político, em parte pelo desgaste sofrido pelos partidos políticos — Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), Ação Democrática Nacionalista (ADN), União Cívica Solidariedade (UCS), Nova Força Republicana (NFR) — que em grande medida robusteceram sua posição econômica com a aplicação do modelo neoliberal que desta vez foi a causa desse desgaste e parcialmente, porque jamais puderam mostrar o estigma da elite regional, e influenciar todo o país, considerando o inegável apoio do imperialismo ianque. Por outro lado, encontra-se a irrupção nos espaços estatais de líderes sindicais, gremiais e indígenas, que desejavam o poder ao formar parte da alta burocracia estatal, porque através de partidos como o Movimento ao Socialismo (MAS), o Movimento Indígena Pachakuti (MIP) e o Movimento 17 de Outubro (M17) lograram lugares no Parlamento boliviano, nos ministérios, vice-ministérios, prefeituras, municípios etc. Esses partidos têm fortes vinculos com organizações sindicais operárias, mineiras, camponesas, indígenas e a junta de vizinhos2, lhes permitindo ter a capacidade de mobilização social com a qual se fortalecem e alcançam espaços no poder.
A decadência neoliberal e a reforma neoestatal
O poderio econômico dos primeiros e a capacidade de mobilização dos segundos fez que ambas forças se encontrassem em permanente tensão; suas características e diferente capacidade econômica fazem com que a luta política mude para o plano econômico e vice-versa, dividindo-as na atribuição a um determinado modelo econômico, a padrões diferentes de acumulação de capital. Enquanto os primeiros tomam como útil a seus interesses o modelo neoli-beral — permitindo-lhes facilidades para uma rápida concentração e monopolização do capital —, os segundos optam pelo modelo de intervensão estatal, o retorno às nacionalizações das chamadas empresas estratégicas que permitiria a disponibilidade de numerosos cargos burocráticos que satisfaça a sua vasta clientela ou base social.
O modelo econômico neoliberal implantado desde 1985, modificou profundamente a representação do estado na economia da Bolívia, mudaram as lei trabalhistas e da previdência social, antigas empresas estatais dos ramos do transporte, telecomunicações e hidrocarbonetos foram postas nas mãos de empresas transnacionais.
Diante do atual colapso desse modelo econômico, igualaram-se as oportunidades do MAS e do MIP para chegar às esferas do poder, porque o passado recente de ambos está fortemente ligado ao sindicalismo e as organizações populares e indígenas, fato que lhes permite articular discursos que atraem milhares de bolivianos que vêem como saída para o desemprego, o trabalho informal, a fome e a miséria, o retorno à intervensão estatal na atividade econômica, em particular na atividade hidrocarborífera como uma grande oportunidade de geração de excedentes econômicos e empregos que supostamente beneficiarão a todos os bolivianos na exploração industrial, já que na atualidade os hidrocarbonetos extraídos do solo boliviano são exportados como matéria prima. O MAS e o MIP incorporaram decisivamente em seus discursos consignas antiimperialistas, principalmente contra o imperialismo ianque; no entanto, o MAS mostra mais anuência com os capitais da União Européia e da China. Esse partido conta com uma grande estrutura partidária e de maior alcance nacional do que o MIP. Incorporaram também a consigna democrática da terra e a consigna indianista do território,primordialmente o MIP, possuem pontos de conflito com os interesses defendidos pelos partidos neoliberais, no qual se encontram em paradoxo — já que é contraditório com os princípios liberais — concentrados nos latifundiários.3
Cenário da disputa política e econômica
As últimas mobilizações tem tido como cenário principal as cidades de La Paz, sede do governo, e a contígua cidade de El Alto. Para ser exato, o centro da cidade de La Paz, os bairros de La Cejao e de Senkata4 da cidade de El Alto. Nesses lugares vem se desenvolvendo mobilizações, bloqueios e um bloqueio muito particular em Senkata, onde os vizinhos cavaram valetas e realizaram vigílias para impedir o acesso à planta de distribuição de combustível; essas ações garantiram a paralização quase total nas atividades dessas cidades, ante a falta de gasolina, de gás de cozinha, assim como impedimento da entrada de produtos alimentícios nessas cidades.
Tal situação teve repercussões no resto do país, porque paulatinamente os bloqueios foram se estendendo a 75% das estradas da Bolívia. Em determinados momentos se destacou a cidade de Santa Cruz de la Sierra, localizada no oriente boliviano, onde ocorreram enfrentamentos entre camponeses de San Julián (localidade a norte de Santa Cruz) e os membros da União Juvenil Crucenhista, força de choque do Comitê Cívico Pro-Santa Cruz, instituição cívica totalmente dominada por interesses da burguesia agro-industrial crucenha. No dia 9 de junho, os conflitos se refletiram na cidade de Sucre5, onde extraordinariamente se reuniu o Congresso Nacional da República.
O separatismo e o racismo na Bolívia
As características de cada uma das forças políticas, econômicas e sociais em disputa; uma empresarial, branca e proveniente da região oriental de Santa Cruz, cujo discurso propaga às elites de outros departamentos (leia-se latifundiários) como em Tarija, Beni e Pando; a outra de ligação popular, indígena e mestiça com maior presença na região do altiplano e valluna6 de La Paz, Potosí, Oruro e Cochabamba; no momento tiraram de foco a luta de ordem econômica e política, priorizando a diferença regional e étnica, apresentando-se como uma das formas desse fenômeno. Devido a isso, o conflito tenha dado origem a exóticas abordagens minoritárias, mas superestimadas pelos meios de comunicação como a abordagem da Nação Camba7, a República do Kollasuyo8 que impulsionaram de alguma forma matizes racistas e regionalistas às pressões, que como dissemos a pouco; são de caráter político e econômico.
A intensidade popular excessos da direção do MAS e do MIP
Por último, mas não menos importante, é que desde o ano 2000, as mobilizações e lutas populares, num primeiro momento, se apresentaram como expressão de exigências dos partidos do MAS e do MIP. Acontece que esses manifestantes ultrapassaram essas organizações e passaram a expressar claramente sua intenção de uma profunda transformação social que vai além de meras conquistas de espaços burocráticos no Estado. No entanto, essa intenção de poder, ao ser expressada espontaneamente, necessita de uma estrutura ideológica, política e organizativa que esteja de acordo com essa aspiração de transformação social. Tais mobilizações são apreendidas pela sedutora linguagem popular do MAS e do MIP, que aparentemente se opõe ao sistema, mas, na prática, é útil ao capital.
Em vista disso, as mobilizações — utilizadas permanentemente como parte da fortaleza do MAS e do MIP, principalmente do MAS, na luta política — geraram, além da consequência inegável e adversa que é o desgaste popular, mas também uma função pedagógica e lições valiosas que elevam a consciência política e ideológica do povo boliviano.
1 Os interesses econômicos da burguesia com sede em Santa Cruz de la Sierra, se encontram misturados à agro-indústria, à grande exportação e aos bancos. Foram beneficiados pelo modelo do intervencionismo estatal de 1952 (Plano Boham impulsionado pelo USA), logo pelo modelo neoliberal a partir de 1985. Esta situação permitiu a eles acumulação de capitais com o apoio do estado e o logro de um peso econômico superior ao anteriormente ostentado pelo departamento de La Paz. 2 Entre as organizações populares, em que alguns líderes mantêm fortes vinculos com o MAS, de Evo Morales Ayma e o MIP, de Felipe Quispe Huanca, podemos apontar a Federação de Juntas Vizinhas de El Alto, a Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses, a Federação de Trabalhadores Fabrís de Cochabamba, a Coordenadora das Águas em Cochabamba, a Central Operária Boliviana, a Federação de Camponeses Cocaleiros do Trópico de Chapare e de Los Yungas etc. Essas organizações foram as bases que sustentaram socialmente as mobilizações dos últimos 5 anos. Seria faltar com a verdade se se afirmasse que a relação entre o MAS e o MIP fosse com todas as bases dessas organizações ou com todos seus dirigentes, além dos dirigentes que em si são propensos ao MAS e ao MIP, não mantêm uma relação unilateral com esses partidos, porque existe uma permanente disputa de lideranças. 3 A lista de latifundiários que são parlamentares do MNR, MIR, NFR, ADN, UCS é enorme, como um pequeno exemplo basta assinalar que o presidente do Senado, Hornando Vaca Díez, do MIR, conta com grandes extensões de terras improdutivas no departamento de Santa Cruz e Beni. 4A planta principal das Jazidas Petrolíferas Fiscais Bolivianas (YPFB), que fornece combustível as cidades de La Paz e El Alto está situada no bairro de Senkata, na saída de El Alto em direção à cidade de Oruro. 5 Nesta cidade localizada no sul do país foram realizadas manifestações de protestos por diversas organizações populares dessa cidade, da mesma forma por contingentes de mineiros e camponeses vindos de Potosí com a finalidade de frear a posse, no mando presidencial de Hormando Vaca Díez. 6 A Reforma Agrária de 1953 só dividiu e entregou terras a camponeses na região do Altiplano e Valle da Bolívia; as pequenas extensões entregues chegavam a 10 hectares e o incremento da população camponesa fez com que as economias camponesas entrassem em colapso há aproximadamente 30 anos, consequentemente houve um contínuo e crescente processo migratório às cidades ou a outras regiões agrícolas do leste, Chaco e Amazônia, onde se manteve o padrão latifundiário de detenções de terra. 7 O Movimento Nação Camba de Libertação (MNC-L) é uma organização da “sociedade civil”, que tem entre seus objetivos fundamentais, ratificar o princípio da Livre Determinação dos Povos, com a finalidade de conceder a Nação Camba (Santa Cruz e região Amazônica), o poder de decisão para exercer soberania plena sobre sua economia, seu território e sua cultura. 8 O planejamento da “República do Kollasuyo” foi esboçado por Felipe Quispe Huanca desde 2000, mas foi ignorado quando conformou o partido MIP e participou das eleições gerais de 2002. Consiste na conformação de uma república independente nos territórios que abrangem parte de Oruro e La Paz, incluindo o departamento de Puno, no Peru.