Nesta oportunidade, José Ricardo Prieto, de A Nova Democracia entrevista numa fala exclusiva, Julián Guzmán, liderança boliviana que se pronuncia pela organização denominada Frente Revolucionária do Povo (MLM), presente como observador no 4º Congresso da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas, realizado em julho último.
Manifestação em Alto Agua – 8 de março de 2005
RP – Qual é a atual situação na Bolívia?
JG – Atualmente, um dos nossos primeiros problemas é, indiscutivelmente, o problema da terra. Esse não tem sido tocado como deve porque no momento a Bolívia se encontra em uma luta (antiimperialista) de defesa de seus recursos naturais, fundamentalmente de suas reservas de gás.
Porém, nós acreditamos que o problema da terra explodirá mais cedo ou mais tarde. É um problema central na formação econômico-social boliviana. Mas, conjunturalmente, pela dinâmica do terreno político do país, a questão dos hidrocarbonetos, especialmente a exploração do gás, se encontra em primeiro plano.
As lutas que tiveram lugar em 2003, em fevereiro e principalmente em outubro, e as que estão se desenvolvendo ultimamente têm muito a ver com isso.
Poderíamos marcar um novo impulso do movimento popular na Bolívia a partir de 2000, quando se dá uma luta em defesa da água, porque as transnacionais, especialmente francesas, são as que detém o controle sobre a administração da água potável. Em Cochabamba teve início um movimento muito forte contra a privatização da água, posto que esta privatização não incluía somente a administração de água potável, mas também os poços de água domiciliares. As pessoas que tinham um poço particular em casa teriam que passá-los para as mãos da empresa transnacional. Isso gerou uma luta muito dura, muito forte, que ficou conhecida como a "guerra da água". Os setores populares, camponeses e, finalmente, os cocaleros se empenharam em massa.
Esse é o primeiro sintoma que caracteriza o auge do movimento popular e para nós é claramente uma luta antiimperialista, uma vez que está marcada pela vontade de recuperar, para a administração dos próprios bolivianos, as empresas que agora estão nas mãos do capital transnacional.
Toda essa massa teve enfrentamentos com o exército, com franco-atiradores e, finalmente — e isso é muito peculiar nas contradições do exército boliviano —, algumas tropas não sairam para reprimir o povo. Isso é uma característica muito interessante dentro do exército e vem de longa data.
Os oportunistas e revisionistas pretendem dizer que essa luta massiva é "de multidões", "auto-determinada", como as correntes influenciadas por Toni Negri, que buscam essencialmente contrariar a necessidade de uma vanguarda, de uma organização que possa coordenar, ser o estado-maior da luta do povo.
Amparados na participação — em muitos casos espontânea — das massas (mas, em todo grau de espontaneísmo existe um grau de organização), eles pretendem negar que, por exemplo, na guerra da água, o núcleo dirigente foram os operários. Mesmo tendo variado as formas de direção tradicionais, porque na Bolívia a experiência do sindicato operário mineiro foi muito grande, hoje já não é. E muitas dessas formas de direção têm evoluído por caminhos distintos. Para nós, essa evolução não se identifica com o fato de que a organização sindical e popular tenha perdido seu caráter classista. Ao contrário, em termos gerais, essa luta prossegue de maneira espontânea, e isso o próprio povo reconhece, necessita de uma direção para obter vitórias mais objetivas.
Nesse processo, mesmo em 2000, o campesinato repete o cerco à cidade de La Paz, que havia sido feito há muitos anos.
Em 2003 há uma insurgência muito forte em outubro, onde a demanda concreta se sintetiza na consigna da nacionalização do gás — que tem, mais uma vez, que ser feita frente ao capital financeiro internacional.
Isto se reflete este ano da mesma maneira, e essa consigna unificou muitos setores. A nacionalização do gás não é uma consigna desenvolvida, é simplesmente uma consigna. Entendemos que a debilidade do movimento popular está precisamente em não ter claro seus objetivos, de não ter um programa concreto, único, nem uma direção esclarecida que possa elaborar essa proposta. Há uma série de interpretações sobre a nacionalização — desde as oportunistas até as mais progresistas nos setores populares — que variam do confisco à nacionalização, que indeniza sem expulsar o capital transnacional.
Existem os que advogam que a nacionalização não é uma solução, porque no fim das contas depende de quem realmente detém o Poder.
RP – Como você vê o desvio do foco político-econômico para o chamado "racial-étnico"?
JG – Uma coisa que cremos que deve ficar claro é que as contendas internas — inclusive quando apresentam características étnicas — somente expressam a luta de classes.
Em Santa Cruz de la Sierra se falou muito dos cruzenhos e da região que detêm grande poder econômico, dona de grandes meios de produção, onde se desenvolve uma agro-indústria bastante grande em termos de desenvolvimento do país e onde se encontra a maior quantidade de grandes latifundiários. Houve um forte enfrentamento entre grupos fascistas organizados por esses setores e dirigidos pela União Juvenil Cruzenista, e os camponeses e indígenas que estavam entrando na cidade de Santa Cruz. Aí se disse que era um enfrentamento racial, étnico, uma vez que a gente da União é, na maioria, gente branca, ligada aos latifundiários, gente que reivindica um absurdo, para nós, que se chama "nação Camba", que está integrada por sérvios, croatas, árabes, que não tem nada a ver com Santa Cruz.
Por que esta "nação Camba" não ataca e golpeia a todos os pacenhos, colas e aymaras que trabalham na cidade de Santa Cruz? Se o enfrentamento é racial seria natural que esses também fossem atacados, mas isso não acontece.
Quando a UJC deu uma declaração à imprensa no mesmo dia do enfrentamento, disseram: — Nós queremos defender nossa cidade e qualquer um é bem-vindo, menos os sem-terra e a gente do MAS . Assim deixaram claro que têm contradições de classe, políticas, muito sérias com esses setores. Mesmo a luta, às vezes, estando revestida de um discurso racista, no fundo não se devem ressaltar essas contradições porque assim se pretende desviar e negar a luta de classes. Na Bolívia, nos círculos intelectuais, falar de luta de classes é pouco mais que um sacrilégio, um delito,"é algo do passado", ou comportamento de "alguém que está fora de foco". Muitos intelectuais pensam assim e encaram o movimento popular dessa forma: enfrentamentos por reclamos indígenas, entre "setores da população", por ocupar espaços sem o poder. Todo movimento reformista só busca fazer com que as demandas das massas estejam circunscritos ao sistema "democrático". Portanto, dizem:
— Bem, esses companheiros, sendo indígenas, foram excluídos do poder há muitos anos. Portanto, é a hora de incluí-los.
Felipe Quispe disse certa vez:
— Queremos que os indígenas sejam reconhecidos em todos os âmbitos da sociedade.
Como o exército boliviano — oficialato — sempre foi uma entidade altamente excludente, se resolve esse problema colocando alguns indígenas entre os oficiais do exército. Isso significa somente introduzi-los no sistema para que matem seus irmãos.
Ou seja, significa desviar, na essência, o que a massa mesma pede, que é transformar o sistema. Ela exige isso quando peleja contra o sistema, quando enfrenta a polícia e quando diz:
— Esse Estado não serve para nós!
Mas os dirigentes desviam esta orientação.
Não esqueçamos, como dizia Mariátegui, que em nossa sociedade, especialmente no Equador, Bolívia e Peru, há uma coincidência de raças com classes. A classe operária e a classe camponesa são compostas fundamentalmente por aymaras, enquanto que a grande burguesia e os latifundiários são, na maioria, espanhóis, desde o primeiro momento, e agora sérvios, croatas e árabes. Há brasileiros proprietários de terras na região de Cobija, mas são poucos.
JG – A perspectiva de poder ainda não se expressa em nenhum setor, devido à falta de direção política. Em El Alto o que existe de mais forte é uma organização vecinal*. A Federação de Juntas Vecinais é muito poderosa e El Alto tem uma capacidade muito grande de gerar líderes. Em outubro de 2003, El Alto desempenhou um papel fundamental, vindo dos setores camponeses de La Paz, que são cidades próximas a El Alto, porque o primeiro massacre foi em Huarisata. Como a maioria da população de El Alto é indígena-camponesa, todos têm laços muito estreitos com todas as províncias camponesas de La Paz. Esses assassinatos e massacres que houveram sobre essas populações repercutiram em El Alto, que se organiza sobre a base de uma direção vecinal muito forte, bastante organizada e com uma capacidade de gerar líderes bastante impressionante. Os líderes de 2003, que foram dirigentes em El Alto. Já estão participando em partidos do Governo, ganhos para serem alcaides e outros cargos.
Quase nenhum dos que lideraram em 2003, estão à frente agora. Mas, de 2003 a 2005 surgiram outros líderes.
El Alto adquiriu uma consciência democrática muito grande. Nós acreditamos que, se é certo que não existe uma perspectiva de Poder, existe uma energia democrática muito grande por defender o território e o país. El Alto sente que está lutando pelo país.
Se fala muito que a Bolívia está fracionada, atribuindo isso aos setores populares, como se não lhes interessasse o país, como se não tivessem uma visão de país. Apesar de todo esse discurso, que viceja nos setores médios da população, na burguesia nacional, que se dizem muito patriotas, que cantam o hino nacional todos os dias, quem realmente defende o país e seus recursos são os companheiros trabalhadores da cidade de El Alto.
Está se concentrando um sentimento nacional muito grande que se frustra quando vê que seus êxitos são temporários. Em 2003, Sánchez de Lozada foi expulso e se exigiu o referendo dos hidrocarbonetos para se consultar o povo sobre a nacionalização. Carlos Mesa fez uma pergunta muito enganadora, que denunciamos na ocasião. Achamos que o referendo foi um artifício para poder legitimar a venda do gás, dissemos que o referendo serviria para legalizar os contratos que com Gonzalo Sánches de Lozada eram ilegais. E foi assim.
Isso frustra bastante as massas, porque conseguem êxitos e logo os perdem. Voltam a triunfar e tornam a perder.
A cidade de El Alto é vanguarda do país nessas lutas, mas não existe uma perspectiva de poder, mantendo a luta — em nível nacional — um caráter reivindicativo.
Em 2003, El Alto foi um baluarte importante dessas lutas. Em 2004, quase todos os êxitos se perderam. Em 2005, em maio/junho, El Alto voltou a iniciar um processo de luta muito grande. Aglutinou os camponeses, os operários mineiros e, como era de se esperar, o MAS, de Evo Morales, se introduz na peleja, tendo influência entre os cocaleros e os camponeses do oriente do país.
A peleja pela nacionalização do gás apresentada em El Alto, pelos camponeses de La Paz sofreu uma derrota por causa da traição do MAS. Após a troca de presidente, o Mas disse: — Logramos um triunfo, uma vitória. Vamos para nossas casas, dar um tempo ao novo presidente para que dê seguimento às demandas do povo.
Isso tudo dá uma sensação de impotência.
Portanto, não há uma direção clara e não se rompe o ciclo reivindicativo na Bolívia. É preciso que esse ciclo se rompa, mas são necessários outros fatores.
RP – Como está se dando a presença dos estudantes nesses levantes populares?
JG – Isso é outro grande problema, porque há o que chamamos de "geração 21.060", que foi o decreto que implantou o chamado "modelo neoliberal". Isso se introduziu em todas as esferas da sociedade boliviana, inclusive na educação. E afastou o movimento estudantil universitário de sua combatividade tradicional. As autoridades universitárias passaram a compor as filas dos partidos reacionários e muitos dirigentes estudantis foram cooptados por esses partidos. Durante esse tempo implantaram um forte controle sobre as demandas democráticas dos estudantes e reduziram os protestos, a luta e a combatividade dos universitários ao término do curso, fundamentalmente na Universidade de La Paz, na Faculdade de Ciências Sociais, que é uma espécie de reduto dos estudantes combativos.
Depois, um grande número de universidades tem atravessado um processo muito grande de privatizações.
Há pouco fizeram uma auditoria na cadeira de Direito da Universidade de La Paz. O decano não tinha um título legal; descobriram que suas notas em um determinado período haviam sido compradas. Isso é só um exemplo de um montão de crimes encontrados em uma das universidades mais "excelentes". Excelentes entre aspas porque ela postula a excelência do Fundo Monetário Internacional.
Muitos na univerdade têm levantado o discurso da excelência acadêmica e, para conquistá-la, é preciso que haja bons jardins, bons banheiros, uma biblioteca muito bonita, um pátio para os estudantes tomarem sol…
O movimento universitário perdeu muito do seu protagonismo. O único movimento universitário que merece este nome — porque existem companheiros que participam da luta do povo de maneira comprometida —, é o pessoal da Universidade Pública de El Alto (UPEA). Isso tem a ver com o fato de que a UPEA é nova dentro do sistema universitário. Eles têm enfrentado uma luta muito dura para ser reconhecida como universidade plena, com todos os direitos, posto que o sistema educacional a reconhecia como de segunda categoria. Essa luta pelo reconhecimento foi apoiada por todo povo altenho.
Os estudantes de El Alto sabem bem que se não lutam não conseguem êxitos. Lutam muito; são muito combativos. Conseguiram o voto universal para manejar sua administração, coisa que não existe em nenhuma universidade do país. Esse é outro motivo pelo qual o sistema universitário não aceita a Universidade de El Alto, já que tal sistema de voto não existe dentro do sistema. Porém, os universitários altenhos têm ensinado que é possível lograr o voto universal para acabar com as organizações que usam docentes e estudantes para implantar as políticas do governo, que são fundamentalmente a privatização, a perda de autonomia universitária…
RP – Assim como Luiz Inácio no Brasil, Evo Morales pode ser a aposta do imperialismo na Bolívia?
JG – Exatamente. Nos círculos intelectuais se diz que Evo Morales está constantemente flanqueando. Ou seja, ele tem, há muito tempo, a intenção de se aproximar dos setores médios. Por isso deixou de ser um dirigente tipicamente cocalero para se converter em um "dirigente nacional" capaz de aglutinar os setores médios da população. Não está sendo muito eficaz, mas ganhou muito desses setores médios.
Quando o povo exige que Evo Morales demonstre algo para merecer confiança, esses setores médios se distanciam. Isso se viu ultimamente. Evo Morales foi forçado a participar da luta popular. Ele mesmo era um dos que não defendiam a nacionalização, advogando que fosse meio a meio dos lucros do gás. Depois se atreveu a afirmar que o discurso da nacionalização havia crescido e que era preciso reconhecer sua importância.
Há uns oito meses disse:
— Quando eu era ignorante, defendia a nacionalização. Agora que aprendi, temos que trabalhar com as empresas transnacionais.
É um tipo claramente oportunista, que muda seu discurso na medida em que a luta de classe lhe marca uma pauta.
Ele chegou a pedir abertamente o mesmo que Mesa pediu: conciliar as propostas do povo, como nacionalização e assembléia constituinte — no ocidente — e a proposta das oligarquias de autonomias departamentais — no oriente.
Sua vontade é aparecer como a pessoa que pode abarcar todos os problemas dos diferentes setores. Um discurso de unidade nacional, "integrador", que evite a violência (como dizem seus teóricos). Usa habilmente um discurso que o aproxima dos indígenas, porque no pensamento indígena existe a dualidade. Aí ele usa essa dualidade para dizer que o sistema capitalista e o indígena tem que estar unidos. Não querem destruir o sistema capitalista que o explora. Dizem que o indígena não é excludente. Não querem excluir os latifundiários, mas deve haver meios que moderem sua exploração. É incrível, mas é isso que o MAS está defendendo hoje em dia, para traficar e enganar o povo em suas lutas.
RP – Qual é a importância da questão agrária na Bolívia?
JG- O problema da terra ainda não está manifestado conjunturalmente, mas de maneira muito sensível, vemos a história da seguinte forma: nos anos 50, com a insurreição de abril, que muitos chamam de "revolução de 1952", o campesinato conquistou terras, expulsando latifundiários, num processo chamado de reforma agrária.
Apesar de ser uma reforma, foi uma conquista importante para os camponeses, porque gerou uma consciência de que eles, armados, poderiam conseguir coisas que pareciam impossíveis conquistar. Em contrapartida, os dirigentes de então, da burguesia nacional, fizeram uma troca de terras entre os latifundiários e distribuíram o restante aos camponeses. Claro que, como acontece geralmente, distribuíram terras pouco produtivas. O que fizeram foi indenizar, capitalizar, os latifundiários.
Concentraram grande quantidade de camponeses no altiplano. O camponês que recebeu três ou quatro hectares de terra teve que dividir entre seus filhos e esses, por sua vez, dividiram entre seus filhos, restando pedaços muito pequenos de terra, agravado pela localização no altiplano, porque se dão apenas alguns sulcos para cada família e isso é insustentável, o que ocasiona uma grande migração.
Em 70, a política de Banzer Suárez foi expandir a fronteira agrícola, levando o latifúndio para a Amazônia e o Chaco boliviano. Ali já existiam latifundiários que exploravam o caucho. Sobre essa base se montou um sistema latifundiário muito grande e que cresceu ainda mais.
A população que foi deslocada para o altiplano e os camponeses que viviam na Amazônia e no Chaco começaram a ter duros enfrentamentos com os latifundiários. Houve confrontos com bandos armados.
Há mais de um mês houve uma ocupação de um grupo indígenas de camponeses yuquizes que se confrontaram com um mini-exército de latifundiários.
Esse e outros governos anteriores começaram a distribuição de terra. Em Cobija e em Pando se distribuiu terra a comunidades indígenas e camponesas. Quais seriam os planos do governo nesse sentido? O governo está distribuindo terras em muitos setores, mas o Banco Mundial está bem interessado em construir estradas nesses setores. A história já nos ensinou muitas vezes que quando se distribui terras aos camponeses, logo os latifundiários as expropriam de mil maneiras. Elas já estarão trabalhadas, aptas e se abrirá o mercado de terras nessas regiões. Os latifundiários demandam certos níveis de produção de soja e castanha, principalmente para atender às necessidades do mercado internacional, coisa que os camponeses, como ainda não têm uma organização da produção, não podem atender.
A única coisa que faz a reforma é dar um pedaço de terra. Assim, os camponeses recebem a terra, mas não tem instrumentos, técnica, não podem organizar a produção e, finalmente, não tem mercado. O mercado é monopolizado pelos setor latifundiário. O camponês se converte em um simples acessório, um empregado e, finalmente, em um subalimentado.
No oriente da Amazônia esse problema é latente. No ocidente há escassez de terras. Se aproximam fortes enfrentamentos. O que o governo está fazendo agora com a distribuição de terras e com a mensagem de que cada camponês cuide de sua terra é buscar um enfrentamento do ocidente com o oriente. Os ocidentais irão para o oriente em busca de terras e os orientais irão "defender suas terras", para que não haja tomadas de terra.
Essa é a situação que vemos como explosiva.
RP – Como você vê a luta camponesa desenvolvida pela Liga, no Brasil?
JG – A luta camponesa (a autêntica) no Brasil traz uma grande alegria para nós, porque se origina de um bom programa, para organizar o campesinato com uma produção própria, que não o obriga a depender do mercado. Varre definitivamente as bases semifeudias implantadas no campo. Na Bolívia, no altiplano, a semifeudalidade é sumamente poderosa. Como as parcelas são pequenas, a necessidade de trabalho camponês é muito grande, se reproduzindo todas as relações patriarcais; o pai faz trabalhar a esposa, os filhos. E os intelectuais dizem: — Isso é muito bom, porque aprendem a trabalhar. Mas, é um trabalho não remunerado e à custa do ensino das crianças, que têm que abandonar tudo em prol da subsistência familiar. A essa característica está atada toda a família camponesa.
A experiência da Liga dos Camponeses Pobres é muito importante porque é um exemplo de como romper essas relações semifeudais, como organizar a produção de maneira eficiente, como combater os latifundiários, a grande burguesia e o imperialismo.
Sabemos que não é possível se livrar de um sem se livrar do outro.
A experiência de 52 e 70 nos ensinou que não basta tomar a terra, é preciso tomar o Poder. Não basta acabar com o latifúndio, há que acabar com a burguesia; e não basta acabar com ambos se não se acaba com o imperialismo.
Nesse sentido são extremamente importantes as relações entre camponeses e operários, mas não somente dentro dos países, mas entre os países, posto que há um inimigo comum, que é o imperialismo.
RP – Onde atua seu movimento?
JG – Nós atuamos fundamentalmente nas universidades, mas há muito temos colocado em prática a clara intenção de trabalhar com os camponeses, e muitos companheiros já ingressaram nesse trabalho; dirigentes que têm desempenhado um papel importante nessas lutas.
RP – Qual o caráter do trabalho das mulheres nas lutas populares?
JG – A mulher boliviana, a camponesa sobretudo, é bastante combativa. Em outubro, quando o povo boliviano enfrentava os soldados, estes apontavam sempre para os homens da massa — reflexo do patriarcalismo — e disparavam. Quando as mulheres viam isso, saiam na frente, abriam o peito e desafiavam os soldados, que não se atreviam a disparar.
Participam de maneira decisiva em todos os processos. Existem organizações de mulheres campesinas e de outros setores, mas não são preponderantes na organização das lutas. Elas entram diretamente, lutando, mas na organização ainda não tem tanta presença.
Isso é um problema, porque, como dizem os companheiros da LCP, não permite desencadear a fúria revolucionária da mulher. Temos trabalhado nisso, mas esse aspecto ainda é muito germinal. Na medida em que as mulheres se incorporem mais ao processo organizado, esse trabalho vai exigir de todos uma luta muito mais comprometida, porque a experiência nos ensina que quando a mulher se liberta de suas correntes não há quem as detenha.
*Vecinal – População vizinha, ou conjunto de povoados vizinhos, parte desses povoados vizinhos. Nesse sentido, emprega-se também: carga vecinal, estrada vecinal etc.