Bolívia: Pacote econômico a ritmo de morenada

Bolívia: Pacote econômico a ritmo de morenada

No dia primeiro de fevereiro deste ano — seguido de uma grande campanha especulativa dos meios de comunicação que divulgavam, de maneira apocalíptica, medidas de ajustes econômicos, como a abrupta retirada dos subsídios aos hidrocarbonetos ou a implantação de impostos aos salários — o presidente Carlos Mesa emitiu uma mensagem anunciando medidas econômicas tendentes a atenuar menos de um terço de 8,9% do PIB de déficit fiscal, o que demonstra estar o Estado boliviano praticamente na bancarrota.

O pacote econômico foi exposto por Mesa de uma maneira muito hábil, fazendo reluzir sua vasta experiência como comunicador social, com a inédita revelação de certos dotes histriônicos desconhecidos. Tais dotes alcançaram certo impacto em algum setor ingênuo da população, vendo com bons olhos as medidas econômicas que, na realidade, somente constituem um aprofundamento das políticas pró-imperialistas e naturalmente beneficiam ao máximo uma parte da burguesia financeira e um reduzido setor da burguesia industrial. 

O imperialismo decide

Para começar, como não houve retirada dos subsídios aos hidrocarbonetos, estes subsídios serão congelados, enquanto o preço dos hidrocarbonetos flutuará sob os ditames da “mão invisível” do mercado internacional. Quer dizer, a elevação dos preços dos combustíveis para motor a explosão acontecerá por intermédio da modalidade denominada mini-desvalorização, que dependerá da especulação imperialista dos combustíveis.

Dentro dos objetivos principais de Mesa havia o de criar a falsa sensação que suas medidas econômicas estavam destinadas a afetar os setores mais poderosos — classes médias e empresas transnacionais —, o que fica demonstrado pela ostentação como apresentou seu projeto de lei do Imposto ao Patrimônio Líquido (IPL) exclusivo para aqueles que contam com um patrimônio pessoal superior a 50 mil dólares. Da mesma forma, a criação de um Imposto Complementar aos Hidrocarbonetos (ICH) que progressivamente chegaria até 32%, agravando exclusivamente as atividades das empresas petroleiras, e a criação do Imposto às Transnacionais Financeiras (ITF) de 0,30%, projetos de lei que deverão ser aprovados pelo desgastado Parlamento Nacional.

O empresariado formal manterá uma boa arrecadação, sendo afetado pelo tributo, como é o reiterado costume dos “empresários bolivianos” colocarem seus patrimônios em nome da empresa. De fato, o setor informal está representado pelo setor de transportes — na Bolívia se agrupa em sindicatos empresariais —, que emprega terceiros. Estes não recebem um único salário, muito menos benefícios sociais, clara lógica pré-capitalista, mas proporcionam ao proprietário do veículo um montante fixo que se desconta do total pago na jornada de trabalho.

Isto representa o porquê do setor de transporte ter convocado uma greve nos dias 10 e 11 de fevereiro em todo país. Greve que foi acatada de maneira unânime por este setor, mas sabotada pelo denominado transporte livre (táxis, rádio-táxis, trufis — como são chamados os automóveis que prestam serviço coletivo de transporte em La Paz), que, ao contar com máquinas que apenas contornam os 5 mil dólares, não são afetados por estes impostos.

Enquanto Mesa anunciava o ICH, franzia a testa simulando um semblante severo, falsa firmeza antiimperialista que constituiu apenas uma medida tendente a controlar a descarada evasão impositiva das transnacionais petroleiras, cujos aportes tributários somados aos demais aportes de todas as empresas capitalizadas significou um ingresso fiscal de aproximadamente 280 milhões de dólares em todo quinquênio de 1998 a 2002. Mais da metade vem da empresa de telecomunicações Entel, e o aporte das empresas dedicadas à atividade hidrocarborífera é apenas a quarta parte do total, o que explica claramente a entrega de empresas estatais, levantadas com dinheiro do povo boliviano, a preços irrisórios e sem vantagem alguma.

Por outro lado, cabe mencionar que Mesa espera obter deste imposto uns 50 milhões de dólares, que na realidade é um controle, como assinalávamos, da evasão do Imposto às Utilidades Empresariais (IUE), sendo que, em alguns casos, as petroleiras nem o pagavam, pois o IUE se deduz para os efeitos do pagamento do ICH.

O ITF é o verdadeiro pilar das medidas, porque arrecadará 100 milhões de dólares, graças à cobrança de 0,30% de cada transação bancária que realize qualquer cidadão, seja para pagar ou para cobrar serviços, salários, pensões, créditos etc. Este ITF, vigente “apenas dois anos” na Bolívia, se constitui a momentânea tábua de salvação para cobrir um pouco o elevado déficit fiscal. Vale lembrar que no Brasil e no Peru se impôs a medida propensa a atenuar a extrema pobreza e aqui, descaradamente, para salvar os apertos de um Estado em bancarrota, roubado pelos governos de turnos em colusão com as transnacionais.

Outra das medidas, tendentes a uma maior popularidade ao senhor Mesa, foi a derrogatória2 do Decreto Supremo 24.806, nefasto dispositivo legal que entregava de maneira descarada a propriedade dos hidrocarbonetos, mais especificamente o gás, às transnacionais, e que fora promulgado por Sánchez de Lozada, faltando apenas dois dias para culminar seu primeiro período governamental, de 1993 a 1997.

O que não mencionou o senhor Mesa é que a derrogatória somente funciona para o futuro e não tem efeitos retroativos, pese o que pode ter feito, porque o decreto mencionado era inconstitucional. Quer dizer, a medida,, que era um clamor do MAS (Movimento ao Socialismo) de Evo Morales, não afetará os interesses das petroleiras Amoco, Transredes ou Repsol*, situadas na Bolívia. Por outro lado, se neutraliza um possível conflito e se consolida a união com seu novo aliado: o MAS.

A habilidade encadeadora de Mesa, sua cautela em não se precipitar em cortar as rendas dos aposentados — que constituem o segundo gasto a contribuir com o déficit fiscal, depois dos pagamentos aos serviços da dívida externa — é tanta, que o presidente Mesa, muito respeitador do imperialismo, jamais atingirá a torpe convocatória de Solares, as mobilizações, sem avaliar o desgaste tático das massas depois de outubro de 2003. A ajuda de alguns guerrilheiros arrependidos, como Álvaro Garcia Linera — que catalogou as medidas de Mesa — inclusive, o permitiu dar uma voltinha pela popular Entrada Folclórica de Oruro3 e promover um baile de morenada1 muito bem acompanhado de duas “chinas morenas”4.


1 A morenada é um baile tradicional da Bolívia. A diferença de outros, este tem sua origem nos escravos negros trazidos da Guiné, Angola e Congo durante a época da Colônia para realizar todo tipo de trabalhos, como o de “pisar as uvas” para a produção do vinho.
2 Revogação parcial de uma lei feita pelo governo competente.
3 Cidade de Oruro (capital do folclore da Bolívia) é a capital do departamento de mesmo nome. Encontra-se a 3.706 metros de altitude com 395.321 habitantes.
4 É como se denominam as bailarinas da “morenada”, dança típica boliviana, principalmente da zona altiplana da Bolívia.

*Nota do Editor:

Amoco – Hoje denomina-se BP Amoco, companhia inglesa resultante da fusão da British Petroleum, com a norte-americana American Oil Company.
Transredes – Transportes de Hidrocarbonetos Sociedade Anônima, empresa boliviana formada em maio de 1997 e dedicada ao transporte de petróleo cru, GLP (Gás Liquefeito de Petróleo) e gás por meio de uma rede de dutos.
Repsol – Empresa petroleira espanhola.
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