Apresentando um dos grandes trabalhos do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, adaptado dentro da realidade de censura econômica do teatro brasileiro, que reduziu em mais da metade a quantidade de pessoas no palco, o diretor teatral Marco Antônio Braz e a atriz Denise Fraga viajam pelo país com a dicotomia de Chen Te e Chui Ta, em A Alma Boa de Setsuan, uma metáfora passada numa China imaginada por Brecht, de forma bem humorada, gerando reflexões sobre o bem e o mal e suas consequências nas relações sociais, em todos os setores da vida.
Esse espetáculo iniciou-se há seis anos através da amizade entre a atriz Denise Fraga e o extinto grupo Círculo dos comediantes, do qual Braz fazia parte.
— Na verdade já conhecia Denise desde a época em que fazíamos escola de teatro. Inclusive ela foi assistir a primeira montagem de Brecht que fiz na universidade: O casamento do pequeno burguês — conta Braz.
Depois de pensar a peça, Braz e Denise saíram em busca de patrocínio, só conseguindo depois de quatro anos de luta.
— São muitas as dificuldades para montar uma produção, tanto individual quanto de grupo, seja com os ditos atores "globais" ou não, porque estamos vivendo um momento onde de fato ‘o cobertor não dá para todos’, e aí se aplica uma lógica da luta de classes para dentro da própria categoria. Mesmo tendo uma atriz ‘global’ não foi nada fácil conseguir patrocínio, e só depois de muita conversa, explicações, jantares, projetos deixados, alguém disse: ‘posso dar tanto para produzir vocês’, e mesmo assim não o suficiente para dar conta da montagem que pensamos originalmente. A peça pede pelo menos trinta e cinco pessoas em cena, e hoje isso se tornou absolutamente impraticável, e tivemos que fazer com onze atores. É um momento de censura econômica, em que somos limitados a pensar, já na criação, naquilo que podemos fazer e não no que temos vontade — constata Braz.
Segundo Braz, esse corte só não prejudicou a peça por conta da coragem que ele e o ator Marcos Cesana tiveram na hora da adaptação, utilizando todo um instrumental, de certa forma, deixado pelo próprio Brecht.
— Brecht adaptava clássicos usando o fato real do ensaio cotidiano, algo importantíssimo e fundamental para ele. Quando pegamos certas remontagens suas, vemos que age com total liberdade, por saber que não está fazendo um levantamento arqueológico, mas sim trazendo uma obra que tem um conteúdo para as pessoas de seu tempo. Ele nos dá essa liberdade de mexer, trocar, inverter ordens e usamos esse instrumental em favor da sua própria narrativa. Mas tenho que admitir que de alguma maneira lamento, porque quando escolho um texto por amor, qualquer frase que corto dói tanto quanto se eu fosse o próprio dramaturgo — confessa Braz.
Brecht, fundamental para o teatro
Marco Antônio Braz é formado em Artes Cênicas pela Unirio, e passou três anos e meio atuando na CPT (Cia. Paulista de Teatro), o que considera uma pós-graduação, e se diz um apaixonado pela obra de Brecht desde seus primeiros contatos com o teatro.
— Costumava brincar com os colegas da faculdade que ‘sem Brecht você não entra em uma sala de ensaio’. Ele é fundamental, talvez seja a grande criatura do século XX a pensar o teatro como um acontecimento do nosso tempo, e essa é a grande pergunta do Brecht: ‘pode o teatro interessar as pessoas de hoje em dia?’, e é obvio que ele não está fazendo uma reflexão na comparação que outras artes vão ter como sedução desse público, como é o caso do cinema, por exemplo, e sim perguntando ao teatro o que ele pode oferecer — diz, acrescentando que, para os atores, Brecht é fundamental na formação ideológica, na responsabilidade social que ele deve ter.
— Foi Brecht quem mandou tirar as coxias e mostrar esse arcabouço que antes era misterioso, porque compreendeu que nisso existe uma sedução talvez maior do que a de querer iludir. Quando o público vê a realização sendo feita, se impõe uma relação de representação absolutamente honesta, e ainda assim, como o teatro tem a força da convenção, ele acredita. Brecht seduz, mas não dá uma letargia. Ele coloca o público o tempo todo em alerta — continua.
Braz considera a comédia um elemento fundamental dentro do teatro e diz que o humor fazia parte da vida de Brecht.
— Essa sua característica está presente de alguma forma em todas as peças, mesmo nas mais didáticas que têm uma função política muito clara. Existem situações que talvez se não fosse através do riso as pessoas não aceitariam discutir, e ele usava o humor como um instrumento, mas não artificial e fabricado para seduzir o público, e sim de coração. Era muito crítico e bem humorado, escrevendo também canções e poemas maravilhosos. Tanto que foi perseguido por Hitler, sendo um dos cinco primeiros nomes em sua lista, principalmente por causa da ‘canção do soldado morto’, uma das maiores críticas a idéia de exército nos moldes que enxergava — fala.
Público: o grande prêmio
O espetáculo já ganhou muitos prêmios, mas Braz acredita que o maior de todos acontece no final de cada apresentação, notando-se reflexões próprias dos textos de Brecht.
— Sem nenhuma demagogia, eu e a Denise falamos que o nosso grande prêmio é a relação com o público, o fato de realmente termos conseguido fazer um espetáculo que tem um diálogo com as pessoas. Antes de vir para o Rio, rodamos pelo Brasil, e em alguns lugares encontramos um público que, em sua maioria, era virgem de teatro. Muitos foram tocados pela sedução da atriz global, e acabaram gostando do texto, numa relação extremamente positiva: sendo atraídos por um motivo torpe, acabaram sendo seduzidos pelo teatro em si — fala com entusiasmo.
— E foi casa lotada em toda parte, alguns lugares em teatro para duas mil pessoas, de Porto Alegre a Recife, passando por Brasília e interior de São Paulo, notando sempre uma influência positiva da obra nas pessoas, não em um nível consciente, ‘ah! Brecht me despertou’, mas, por exemplo, quando saem discutindo quem deve reger as decisões daquela alma boa, mostrando reflexões, principalmente entre as camadas mais populares — continua.
O espetáculo ficará no Teatro dos 4, no Rio, até agosto, seguindo em setembro para uma temporada popular de três meses no teatro Tuca, em São Paulo.