Cantor das águas, da terra e do trabalho

Cantor das águas, da terra e do trabalho

Hay os que cantam desditas de amores,
por conveniência, agradando senhores.
Mas os que vivem a cantar sem patrão
tocam nas cordas do seu coração.
(Cenair Maicá, Canto dos Livres)

Cenair Maicá (1947-1989) foi o responsável por inscrever estes e outros versos na história do Rio Grande do Sul. Do cantor e compositor nascido em Águas Frias, no atual município de Tucunduva (então distrito de Santa Rosa) em 3 de maio de 1947, disse o grande poeta Jayme Caetano Braun:

Outro é o Cenair Maicá
do canto bárbaro e doce,
que com certeza extraviou-se
da flor do caraguatá.
(Troncos missioneiros)

Com sua voz encorpada e ao mesmo tempo suave, Cenair gravou indelevelmente também seu nome entre os grandes da arte popular gaúcha. Homem e artista da melhor extração missioneira, colocou sempre sua voz e seu talento a serviço de sua terra e de sua gente. A exemplo e ao lado dos outros "troncos missioneiros" (seus parceiros e amigos Noel Guarany, Jayme Caetano Braun e Pedro Ortaça), personificou a identidade histórica e cultural de sua região. Também junto a eles, foi responsável por inserir as Missões no mapa histórico e cultural oficial do estado, desencadeando a redefinição de uma identidade gaúcha até então calcada quase exclusivamente na exaltação dos senhores feudais da região da campanha.

Dupla histórica

Músico desde os 10 anos de idade — quando começou a se apresentar em público ao lado de seu irmão Adelqui — , Cenair faria sua entrada triunfal na história da música gaúcha ao vencer o 7º Festival do Folclore Correntino em 1970, em Santo Tomé, na Argentina com Fandango na Fronteira. Na apresentação, Cenair dividiu o palco com quem a havia composto: Noel Guarany (ver AND 33). Foi a consagração de ambos e de cada um como artista e também dos esforços iniciados pelos dois e por Ortaça em 1966, quando lançaram um manifesto reivindicando a herança guarani e anunciando a intenção de criar, a partir dela, uma nova arte missioneira. O espírito da iniciativa é bem representado por estes versos de Cenair:

Sou seiva pura
de uma raça
que não morre;
meu sangue corre
através das gerações,
a força viva
e secular
do nativismo
no atavismo
deste povo
das missões.
(Cepa Missioneira)

A vitória no festival rendeu a Cenair e Noel a gravação de um disco compacto, Filosofia de Gaudério (1970). Apenas em 1978, porém, viria o disco solo de Cenair, Rio de Minha Infância. Solo talvez não seja a palavra adequada: a produção e a direção couberam a Noel, autor, também, de quatro das dez músicas que o integram.

Da terra e da gente

O resultado é um dos discos mais bonitos da música brasileira. A harmonia entre letras, interpretação e arranjos é tamanha que o ouvinte chega a sentir que navega nas águas do Uruguai enquanto vê, refletido em suas águas, o sol que ilumina a terra missioneira — ainda que não tenha a mais vaga idéia de onde ela fica.

Um dos pilares da identidade missioneira, o rio Uruguai é o mote do disco. Mas seu universo temático não se resume à paisagem da região. Tanto ou mais do que sua terra e suas águas, Cenair retrata, sob vários prismas, sua gente e a relação que ela mantém com o meio que a circunda. O tom intimista da canção que dá nome ao disco, de sua autoria, convive com a descrição do trabalho e do cotidiano dos homens que vivem nele em Balseiros do Rio Uruguai, de Barbosa Lessa.

Seria, contudo, um grande erro deduzir da singeleza das letras e da aparente despretensão do universo temático que se está diante de um artista despolitizado ou ingênuo. Isto nem seria possível nas Missões, onde a dimensão do cotidiano e a da história se entrelaçam. Cenair, a exemplo dos outros missioneiros, sabia exatamente o que estava fazendo. O compositor que recorda, saudoso, o rio de sua infância seja o mesmo que escreve, um pouco depois, em Homem Rural, que "enxada em terra alheia nunca traz dia melhor".

Servir ao povo

Os propósitos de Cenair e o grau de consciência que ele tinha do que estava em jogo no momento histórico que lhe coube viver no Rio Grande do Sul ficam muito claros em várias de suas entrevistas.

"Eu acho que o músico, além de cantar as coisa alegres, a paisagem, a história, tem o dever de ser útil ao povo com o qual convive no dia-a-dia. Então eu procuro, dentro da minha música, dizer alguma coisa que possa motivar ou sensibilizar pessoas no sentido de resolver certos problemas de nosso povo. Porque nós, os artistas, temos uma força na mão, que é o instrumento, e temos a oportunidade de nos comunicar com o povo através dos canais de divulgação. Então temos o dever de ser útil ao povo" — declarou ao jornal Cotrifatos, da Cooperativa Tritícola de Santa Rosa (Cotrisa), em agosto de 1983.

Foi certamente esta preocupação que inspirou várias de suas letras, como Homem Rural e Balaio, Lança e Taquara, em que fala das agruras que atravessava a gente simples do interior gaúcho: camponeses, balseiros, índios… Ou João Sem Terra, na qual satiriza a política habitacional do regime de 64 descrevendo as agruras imaginárias de um conhecido passarinho:

Ainda bem que o João Barreiro
não precisa de alvará:
não paga o BNH
e usa o barro brasileiro.
Mas te cuida, João Barreiro,
que os 'hôme' vão te pegar…

Cenair sabia também dos obstáculos que existiam no caminho que escolheu. O enfrentamento com os monopólios fonográficos fazia parte de suas preocupações. "As multinacionais do disco infiltravam a música norte-americana" — recordou em outra entrevista, realizada em 1982 no Museu Antropológico Augusto Pestana — "mas nós tínhamos um compromisso de manter a cultura missioneira". Nisto, como em muitas coisas, comungava das mesmas idéias de seu parceiro Noel Guarany.

Missões sem fronteiras

Outro aspecto que Cenair e Noel compartilharam foi o fato de terem passado parte da juventude na Argentina, mais precisamente na província de Misiones. Aos três anos, Cenair cruzou a fronteira com sua família para viver em acampamentos de extração de madeira às margens do Uruguai.
Este dado foi decisivo para a formação de sua personalidade musical. Criado no meio de madeireiros, balseiros e pescadores, absorveu desde cedo a musicalidade de suas formas de expressão. Com os peões argentinos e paraguaios que trabalhavam com seu pai, Cenair aprendeu os primeiros acordes da guitarra. Em Rio Ibicuí, lembraria o ambiente dos acampamentos:

E de volta ao acampamento
passa o trago, corre o chimarrão.
Contam causos, proeza, alegria.
Lindas melodias brotam do
coração.

Esta convivência despertaria nele outro traço comum aos troncos missioneiros: a postura fraternal para com os países vizinhos. "A história missioneira não pertence somente ao Rio Grande do Sul, mas também à Argentina e ao Uruguai" — pode-se ouvi-lo dizer na entrevista gravada no Museu Antropológico Augusto Pestana.

A biografia de Cenair tem também um outro aspecto — este de cunho trágico — em comum com a de seu grande amigo. Como Noel, Cenair viveu pouco. Uma infecção hospitalar contraída durante a colocação de uma prótese femural levou-o embora aos 41 anos, em 2 de janeiro de 1989.

Longa é a arte

Sua arte, porém — transcorridos, agora, tantos anos desde sua morte quantos se passaram entre sua consagração no Festival de Santo Tomé até ela —, permanece viva, confirmando o dito Hipócrates.

Cenair Maicá é, hoje, uma referência para todos aqueles que se propõem defender o patrimônio natural, histórico, cultural, econômico e, principalmente, humano do Rio Grande do Sul. Um episódio que ilustra bem sua importância é narrado pela cantora Maria Luiza Benítez, que o homenageia no CD Ouro Azul. Uma noite, ela sonhou que Cenair lhe dizia: "grava um disco só com canções de rio, porque canções e rios unem os povos". "Acordei às 4 horas da manhã e anotei as músicas" — conta.

Caminhos
(Cenair Maicá)

Pelos Caminhos que me levam a meu povo,
quero chegar nas torres de São Miguel.
Olhar ao longe, beber dos horizontes,
cruzar os rios, campos e montes
num tropel.

Sentir nos ventos que sopraram em outros tempos
a história viva dessa raça-guarani:
traço de união simbolizando essa verdade.
A mesma casa, o mesmo pão a dividir.

Que Deus me guie
ao bravo povo de Sepé
e junto olharmos para o céu com igualdade
e ver que o sangue derramado nesta luta
regou na terra semente da liberdade.

Pois na memória de seus filhos vive ainda
os mesmos caminhos que trilharam outros pés.
Pelas noites, entre o brilho das estrelas,
reluz de guia o lunar do índio Sepé.
Pela noite, entre o brilho das estrelas,
reluz de guia o lunar de São Sepé.

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