Um dos romances mais admirados pelos leitores de Jorge Amado, Capitães da Areia é conhecido no Brasil e no exterior devido ao grande realismo com que retrata a luta de classes e o censo de justiça que carrega em seu bojo. Traduzido para mais de uma dúzia de idiomas, também foi adaptado para o teatro, cinema e televisão.
Escrito na primeira fase da carreira de Jorge Amado, Capitães da Areia teve sua primeira edição pela Livraria José Olympio Editora. O aparecimento do romance se dá quando, no plano político, o Estado Novo está prestes a ser implantado, culminando um processo de escalada fascista iniciado anos antes e aprofundado após o Levante de 35. O pretexto para reacender o clima golpista emerge em setembro de 1937, quando o general Góis Monteiro, chefe do Estado-maior do Exército, divulga à nação o "tenebroso" Plano Cohen: uma suposta manobra comunista para a tomada do poder através da luta armada, assassinatos e invasão de lares. O Plano não passa de uma fraude forjada por membros da Ação Integralista para justificar o golpe de Estado. Frente à "ameaça vermelha" o governo pede ao Congresso a decretação de estado de guerra, concedido em 10 de outubro de 1937. É o início do golpe.
O Estado da Bahia, de 17 de dezembro de 1937, confirma que foram incinerados, em Salvador, no dia 19 de novembro do mesmo ano, na presença dos membros da Comissão de Busca e Apreensão de Livros, nomeada pela Comissão Executora do Estado de Guerra, e a mando do comandante da Sexta Região Militar, mais de mil e setecentos exemplares da produção de Jorge Amado, todos incluídos entre "os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da Areia, 233 exemplares de Mar Morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do Carnaval".
Mesmo com essas medidas, um bom número de estudantes e profissionais liberais encontrava formas para encontrar as obras de Jorge Amado, sobretudo o Capitães da Areia. A história das crianças e jovens lideradas por Pedro Bala despertava interesse e a propaganda "boca-a-boca" só fazia aumentar o número de leitores. A luta pela sobrevivência e a resistência dos capitães da areia já era considerada, juntamente com o futebol, uma "conversa fácil" nas rodas de bate-papo.
"Sob a lua, num velho trapiche abandonado"
Centrando a ação na vida dos menores abandonados da cidade de Salvador, Jorge Amado aproveita para mostrar as brutais diferenças de classe, a concentração de renda e os efeitos da marginalidade nas crianças e adolescentes discriminados por um sistema social perverso. Capitães da areia narra o cotidiano de pobres crianças que vivem num velho trapiche abandonado. Liderados por Pedro Bala, menino corajoso, filho de um grevista morto, entregam-se a pequenos furtos para sobreviver.
A narrativa, de cunho realista, descreve o cotidiano do grupo e seus expedientes para arranjar alimento e dinheiro. O romance supervaloriza a humanidade das crianças e ironiza a ganância, o egoísmo das classes dominantes. Conduzindo a história em função dos destinos individuais de cada participante do bando, Jorge Amado acaba por ilustrar, de um lado, a marginalização definitiva de uns (o Sem-Pernas e o Volta Seca, por exemplo) e, de outro, a tomada de consciência de Pedro Bala.
O enredo
Sob a lua, num velho trapiche abandonado, as crianças dormem. Essa é uma cena vista no cotidiano das cidades da década de 30. As crianças dessa época, devido a problemas familiares, buscavam refúgio na liberdade das ruas. Sobreviviam através do furto, com uma imaginação aventureira, gozando de prazeres proibidos pela sociedade e prezando, acima de tudo, o companheirismo do grupo. De acordo com a classe social que ocupavam, eram vistas de forma diferenciada, estando frequentemente sob o julgamento da população.
Um sistema capitalista e ditador somado à condição de existência dos menores abandonados, leva à busca pelo companheirismo e apreciação da vida, pois, de certa maneira, isso significa sentir o gosto de viver intensamente cada segundo ao lado de quem realmente se identifica, quer pela semelhança de ideais e aspirações, quer pelo sofrimento, demasiado igual para todos.
Na segunda parte do livro, intitulada de Noite da Grande Paz, da grande paz dos teus olhos, é apontada a relação dos jovens com Dora (a única mulher do grupo) e a referência que os capitães tinham nela, como mostra a passagem abaixo:
"Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha Dora, Dora noiva, Professor vê Dora, sua amada. Os Capitães da Areia olham em silêncio. A mãe-de-santo Don’Aninha reza oração forte, para febre, que consome Dora, desaparecer. Com um galho de sabugueiro manda que a febre se vá. Os olhos febris de Dora sorriem. Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos seus olhos."
Nos capítulos seguintes, Reformatório e Orfanato, o narrador trata das terríveis condições de vida nessas duas instituições. Presos num assalto frustrado a uma casa, Pedro Bala e Dora, sacrificando-se para que o grupo possa fugir, são recolhidos a um reformatório e a um orfanato respectivamente. Resistindo de forma heróica às torturas, o menino não delata os companheiros e, por isso mesmo, passa alguns dias na solitária. Dora, por sua vez, não sendo "uma flor de estufa" e amando "o sol, a rua, a liberdade", acaba adoecendo. Com a ajuda dos meninos, Pedro Bala e Dora conseguem fugir. O narrador fecha a segunda parte do livro com a morte e enterro de Dora, que, afinal, se entrega a Pedro Bala, em Dora, esposa.
O Destino dos Capitães
Jorge Amado fecha o romance relatando o destino de cada membro do grupo. O primeiro a ir embora do trapiche é o Professor, que estudará pintura no Rio e se transformará num grande artista. Em seguida sai o Pirulito, que se torna frade capuchinho. Boa-Vida, por sua vez, escolhe a vida de malandro das ruas, Gato parte para Ilhéus e se torna vigarista e jogador profissional, Volta Seca integra-se ao grupo de Lampião, e Sem-Pernas morre em luta com a polícia. Para dar destaque ao destino das personagens, o narrador, no capítulo Notícias de jornal, utiliza-se de um expediente muito comum ao longo do livro: o relato indireto, por meio de textos jornalísticos. Assim, acompanhamos a trajetória de Professor, Gato, Boa-Vida e Volta Seca.
Contudo, diferentes são os destinos de João Grande e Pedro Bala. O primeiro torna-se marinheiro e embarca num navio. Já o segundo toma consciência das injustiças sociais, luta ao lado dos grevistas, transforma-se num militante proletário e passa a lutar contra as opressões, como se poderá verificar no capítulo que fecha o livro, Uma pátria e uma família:
Os trechos abaixo elucidam o destino de Pedro Bala, que foi ser como seu pai, um lutador a serviço de seu povo:
Anos depois os jornais de classe, pequenos jornais, dos quais vários não tinham existência legal e se imprimiam em tipografias clandestinas, jornais que circulavam nas fábricas, passados de mão em mão, e que eram lidos à luz de fifós, publicavam sempre notícias sobre um militante proletário, o camarada Pedro Bala, que estava perseguido pela polícia de cinco estados como organizador de greves, como dirigente de partidos ilegais, como perigoso inimigo da ordem estabelecida.
E, no dia em que ele fugiu, em inúmeros lares, na hora pobre do jantar, rostos se iluminaram ao saber da notícia. E, apesar de que lá fora era o terror, qualquer daqueles lares era um lar que se abriria para Pedro Bala, fugitivo da polícia. Porque a revolução é uma pátria e uma família.
Capitães da Areia pode ser considerado "um daqueles livros que se lê de uma sentada só". O romance elucida a importância da luta pela sobrevivência e aponta a certeza de que só a luta revolucionária muda à vida.
* Rômulo Radicchi é professor da Escola Popular Orocílio Martins Gonçalves, em Belo Horizonte