O carnaval antecipado das ONGs em Porto Alegre, no final de janeiro último, em meio a baixa umidade do ar, graças aos 40 dias sem chuva e com sol forte na capital do Rio Grande do Sul, contou com nada menos que 150 mil participantes.
Dessas milhares de pessoas, uma parte significativa realmente acreditava que passos decisivos poderiam ser dados na realização do tão decantado encontro que no Brasil traduzem por Fórum Social Mundial1.
A grande estrutura montada às margens do rio Guaíba custou, segundo a organização do evento, 16 milhões de reais, e incluiu um acampamento gigante, dezenas de locais de debate, estrutura para imprensa, veículos de apoio, transporte de personalidades social-democratas do Brasil e do exterior. Segundo a própria organização, houve um gasto de R$ 2 milhões além do orçamento. Todo dinheiro foi aportado por ONGs como a EED (Evangelischer Entwicklungsdienst — Serviço das Igrejas evangélicas para o Desenvolvimento, Alemanha), a ICCO (Organização Intereclesiástica para a Cooperação ao Desenvolvimento, Holanda), a Christian Aid (Socorro Cristão, Reino Unido e Irlanda), a Cafod (Agência Católica para o Desenvolvimento, Inglaterra), a CCFD (Comitê católico contra a fome e pelo desenvolvimento, França), a Rockefeller Brothers Found (que tem como lema um curioso filantropia para um mundo independente), Novib (Holandesa, ligada à King Ong Oxfam). Além das ONGs, outros patrocinadores foram os brasileiros Petrobras, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Furnas Centrais Elétricas, Eletrobrás, Correios, bem como os governos Federal e do Rio Grande do Sul e a prefeitura de Porto Alegre, além dos 155 mil participantes inscritos —número oficial — que pagaram a taxa de R$ 30,00.
Woodstock ressucitado
O denominado Acampamento Intercontinental da Juventude acolheu cerca de 50 mil pessoas num clima semelhante a Woodstock2, para satisfação incontida de elementos do governo e de seus supervisores gringos que por ali transitavam. Não raro se via gente abandonando o acampamento e o Fórum, desanimada, desiludida…
A imundície woodstockiana certamente não tratou de construir sanitários para atender ao público, aproveitando o ensejo para lançar mão dos chamados banheiros químicos (casinhas de plástico), que funcionavam como uma verdadeira bomba de efeito moral para os necessitados. Como para os organizadores do “outro mundo”, os banhos são inteiramente dispensáveis, repetiu-se a tradição dos fóruns em Porto Alegre, uma espécie de chuveiro coletivo a céu aberto, com os mais “liberais”, entre obscenidades e o ato de se lavar nu em público, ironizando os que lhes dirigiam reprovações, com frases como “se não quer ver estrelas, não olhe para o céu”.
À noite, o barulho da mais infernal e variada anti-música desabava sobre as cabeças dos que lutavam para dormir. Juntava-se à barulheira um nauseante cheiro de maconha que era sentido em todo ambiente, inclusive durante o dia. Como parte imprescindível do show, por três dias os acampados tiveram que assistir a uma patética “marcha dos pelados” composta por um pequeno grupo de pessoas nuas, que gritavam palavras de ordem despolitizadas como a própria manifestação. Como o próprio fórum.
Pacifismo, ecologismo, sexismo…
Difícil acreditar que todas aquelas pessoas estivessem ali para mudar o mundo. Porém havia entre elas uns poucos, mas valorosos homens e mulheres antiimperialistas, apesar do Fórum promovido pelas ONGs do imperialismo europeu encharcado de capital ianque.
A ladainha do pacifismo e “humanização do capitalismo”, capitaneada pelos Estados europeus encobertos pelo manto das ONGs gigantes (king ONGs), tentou esconder, por exemplo, a heróica resistência do povo iraquiano à invasão de seu país, assim como não deu voz a nenhum representante dos países e nacionalidades que efetivamente lutam no mundo todo pela libertação nacional, ou seja, as legítimas forças antiimperialistas não estavam representadas no Fórum. Nunca estiveram.
Buscava-se criar a ilusão de que subitamente a luta de classes havia desaparecido, e que nada mais restava que as estéreis discussões sobre gêneros, sexualidades, ecologias, religiões, softwares, como se verdadeiramente essas fossem as fontes da exploração do homem pelo homem e das guerras.
A visita do gerente
O gerente Luis Inácio, a caminho de uma de suas genuflexões obrigatórias dedicadas aos grandes patrões do norte — que falem inglês ou não —, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, deu uma passada por lá, de avião novo. O PT gaúcho arranjou tudo para a recepção, colocando no ginásio Gigantinho milhares de militantes petistas com camisas vermelhas em que se lia 100% Lula. Esses entraram primeiro e pela porta dos fundos, se assenhoreando dos lugares próximos à mesa de onde Luis Inácio cometeria mais um discurso. As demais pessoas tiveram que se arranjar com os lugares restantes.
Entretanto, o esquema de segurança nunca visto por aquelas paragens não conseguiu deter um pequeno mas barulhento grupo, que passou por policiais, detectores de metais, mais policiais e outro detector de metais que proibiam a entrada no ginásio de mastros de bandeira, megafones, e outras coisas que pudessem servir para responder o operário-padrão do FMI.
Contando somente com suas próprias vozes, esse grupo de não mais de 50 pessoas polarizou as atenções, deixando claro que o gerente do Estado brasileiro não era bem-vindo ali. Visivelmente surpreendido, o cerimonial se esqueceu da execução do Hino Nacional. Luis Inácio desferiu outra de suas pérolas, desta vez em direção do gerente do Estado argentino, Néstor Kirschner, chamando-o de “companheiro Ménen”. E seguiu viagem…
Adiamentos, cancelamentos…
A programação do World Social Forum foi uma história a parte. A pretexto de uma auto-gestão dos debates nos diversos espaços, o que se viu foi o cancelamento em série das atividades, transferências de local, adiamentos, etc, o que não aconteceu com os shows e “atividades culturais”. As pessoas se transferiam, sob o sol causticante, de uma tenda a outra reclamando a todo momento da falta de organização; na realidade, premeditada porque atingia inteiramente o objetivo de diluir, pulverizar, aplacar o ânimo de luta, principalmente dos jovens presentes em massa.
O oportunismo órfão
Mas, engana-se quem pensa que o WSF foi só o Forum oficial. Se em torno dele se reuniu uma gama de oportunistas de todos os matizes, por outro lado organizações efetivamente antiimperialistas e democráticas promoveram atividades combativas e internacionalistas contra o imperialismo, principalmente contra a invasão do Iraque pela coalizão encabeçada pelo USA.
Um setor minoritário do oportunismo aproveitou o ensejo para realizar eventos “paralelos”, mas que convergiam para o mesmo objetivo do WSF, ou seja, uma “alternativa eleitoral”, uma “alternativa à UNE”, uma “alternativa à CUT” e coisas do tipo, direções amorfas que continuam se afundando no eleitoralismo, ou seja, no oportunismo.
Na disputa entre os oportunistas para hegemonizar o setor dos desiludidos com a gerência FMI-PT, o P-SOL, encabeçado pelos parlamentares expulsos de casa em 2003, realizou um Encontro Nacional em 29 de janeiro, durante as atividades do WSF em Porto Alegre, quando, cinicamente, apresentaram a sua “alternativa” à gerência FMI-PT: a candidatura de Heloísa Helena para presidente em 2006.
O PSTU, vendo ameaçado seu projeto eleitoral, dirigiu em 27 de janeiro, por ocasião do Encontro, uma carta aberta aos militantes do P-SOL, onde textualmente conclama os companheiros a romperem com as negociações com partidos burgueses, e virem conformar uma frente eleitoral de esquerda, socialista e classista. Evidentemente com Zé Maria encabeçando a chapa eleitoreira.
O socialismo de Chávez
O travesso Hugo também foi recebido como popstar pelos que ainda acreditam que o chavismo é a prova de que se pode fazer a revolução através do voto. Afinal, as bravatas de Chávez contra o USA e o relativo apoio popular que tem em seu país dão a impressão de um governo antiimperialista.
Chávez não demorou a mostrar a que veio, dizendo em entrevista coletiva que:
— Não há solução dentro do capitalismo… Temos que reivindicar o socialismo como tese, como projeto, como caminho. Um outro socialismo, que ponha o homem e não a máquina em primeiro plano, que enfoque o ser humano e não o Estado.
O discurso aparentemente radical foge do principal, que é a perspectiva de poder para o povo. Na sua versão, o caminho para o socialismo é a participação em parlamentos e eleições. E nada mais. Ou seja, a emancipação das classes oprimidas está definitivamente fora de questão. Afinal, falar libertação das classes oprimidas, libertação nacional e guerras justas como no Iraque, não é permitido no WSF.
Apesar dos impropérios, a Venezuela continua mantendo relações com o USA, tendo inclusive vários monopólios ianques instalados em seu território, sendo a condição de semicolônia um de seus traços característicos.
Um porto seguro
Em um canto do acampamento, entretanto, tremulava uma bandeira diferente, a do país para onde hoje estão voltados os olhos de todas as pessoas democráticas e verdadeiramente antiimperialistas, onde a luta contra o imperialismo é uma das mais heróicas e efetivas, onde existe um povo que luta não apenas por seu território e soberania, mas em defesa de toda a humanidade.
Sob a bandeira do Iraque, a mais visível, assim como das faixas em defesa da heróica resistência do povo iraquiano, estava armada a tenda da Frente de Defesa dos Direitos do Povo. Da Frente faziam parte a Internacional de Liga dos Povos ( ILPS na sigla em inglês), Liga Operária, Movimento Estudantil Popular e Revolucionário (MEPR), Movimento Feminino Popular (MFP), Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, Norte de Minas e Centro Oeste, Movimento pela Educação Popular (MEP), sindicatos dos rodoviários e da construção civil de Belo Horizonte, Sindicato dos comerciários de Betim, MG. Alguns deles já haviam concedido entrevista ao A Nova Democracia.
Era o acampamento de maior afluência, não apenas devido a sua posição estratégica, mas pelas atividades que incluíam a exibição de filmes sobre lutas de libertação em vários países. No terceiro dia ocorreu um debate muito participativo sobre as lutas antiimperialistas na América Latina, sendo a mesa composta pelo delegado camponês Xisto, da Federación Nacional Campesina (ver matéria na página 22), do Paraguai, e por dois militantes Argentinos. Uma das grandes personalidades presentes aos debates promovidos pela Frente foi Sammi Alaa, integrante da Aliança Patriótica Iraquiana (ver matéria na página 24).
Em defesa do povo iraquiano
No dia 30 de janeiro, às margens do rio Guaíba, ocorreu a marcha de apoio à resistência do povo iraquiano, que contou com a participação de várias organizações (partidos, sindicatos e movimentos) nacionais e internacionais. Independentemente das contradições que haviam entre si, cerraram fileiras em torno do apoio da causa iraquiana.
Durante a marcha, de aproximadamente duas horas, as palavras de ordem antiimperialistas deram o tom, tanto em português, espanhol ou inglês, até o ato final do protesto, na altura do anfiteatro Pôr do Sol. Sob o calor intenso do começo da tarde, Sammi Alla se pronunciou em nome da Aliança Patriótica Iraquiana e, por que não, dos valorosos iraquianos que estão infligindo mais uma derrota ao imperialismo ianque, quiçá a maior.
O WSF terminaria só no dia seguinte. Mas, a exemplo do que houve em Mumbai 2004, aos que passaram por Porto Alegre ficou a sensação de que a luta antiimperialista existe, mesmo contra a vontade do Fórum oportunista.
1 FSM é a sigla da imortal Federação Sindical Mundial, a maior associação internacional de sindicatos revolucionários, criada em 1945, em Paris, no I Congresso Mundial dos Sindicatos. Seus principais objetivos eram: a luta conta a guerra imperialista e suas causas; a defesa dos interesses dos trabalhadores onde quer que se encontrassem; a luta comum dos mais legítimos sindicatos contra qualquer atentado aos direitos econômicos e sociais dos trabalhadores. A FSM chegou a contar com 190 milhões de membros e o Congresso Sindical Mundial era o seu órgão supremo.
Em 1949, dirigentes sindicais de direita, a serviço dos magnatas ingleses e ianques, fomentaram a cisão na FSM e um grupelho se organizou com o nome de CIOLS (Confederação Internacional dos Sindicatos Livres). Esse grupelho lançou a consigna de “parceria social” e se fortaleceu graças à colaboração dos governos fascistas nos diversos continentes, sendo que hoje governa as mais importantes confederações sindicais no mundo, inclusive a CUT e a Força Sindical. O último congresso da FSM aconteceu na China revolucionária, em 1960, mas foi levada de roldão pelos revisionistas do social-imperialismo russo que se instauraram no poder desde Kruschov. A tal sigla FSM é, portanto, um arranjo espúrio em nosso idioma, pura provocação imperialista e revisionista. A partir de agora, AND tratará o tal Fórum impostor de Wolrd Social Forum, no idioma em que é conhecido, com a sigla que lhe corresponde mundialmente: WSF.
2 Festival, realizado em 1969, em Nova Iorque, USA, com que o imperialismo ianque pretendeu conclamar a juventude para se opor à Revolução Cultural que se desenvolvia na China revolucionária. Sua consigna era ‘Sexo, drogas e rock’n roll’, com muita ‘paz e amor’.