Caso Césio 137 revela crimes contra o povo

Caso Césio 137 revela crimes contra o povo

Os 20 anos da tragédia com o Césio 137, em Goiânia, revelam, além do descaso do Estado com as vítimas, a ausência de um projeto de tecnologia nuclear para o país.

O "acidente" com o Césio 137 ocorreu em Goiânia (GO), em setembro de 1987. Dois catadores de papel recolheram de um prédio em escombros uma cápsula contendo material radioativo (ver box). O uso deste tipo de material deveria ser fiscalizado pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN). O "acidente", portanto, ocorreu porque a CNEN não realizou sua tarefa.

A CNEN é um órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia que deveria funcionar como órgão superior de "planejamento, orientação, supervisão e fiscalização, estabelecendo normas e regulamentos em radioproteção e licenciando, fiscalizando e controlando a atividade nuclear no Brasil. A CNEN desenvolve ainda pesquisas na utilização de técnicas nucleares em benefício da sociedade".

O correto emprego da tecnologia nuclear poderia representar avanços consideráveis na medicina, na agricultura, indústria e no ambiente, se não estiver nas mãos dos monopólios imperialistas, mas servindo aos povos e nações em seus programas de independência nacional. Porém, no atual sistema, o que se vê é a utilização das mais avançadas técnicas em proveito da obtenção do lucro máximo.

Em se tratando da energia nuclear, há ainda a ameaça do imperialismo da utilização de armamentos atômicos na agressão aos povos que lutam por sua libertação nas diferentes semicolônias, onde não há fiscalização e muito menos pesquisa que se preocupe em resolver os problemas latentes do povo e do país. De fato, o avanço científico que pode salvar vidas e melhorar as condições de existência de todo o povo, só é possível num país onde o povo tenha o poder nas mãos.

O atual sistema de Estado, que privilegia os interesses da grande burguesia nativa, serviçal do imperialismo, favorece o tipo de acidentes como o caso do Césio 137, ocorrido em Goiânia. A história é bem conhecida: o material altamente perigoso, depois de encerrada sua capacidade de dar lucro, foi "esquecido" em um canto qualquer, o que ocasionou o maior acidente nuclear da história brasileira. Como sempre também, o Estado se eximiu de culpa e cometeu ainda crime maior, deixando as vítimas sem tratamento médico. Milhares de pessoas até hoje buscam o reconhecimento da condição de vítimas desta tragédia.

Vítimas do descaso

Após duas décadas da tragédia com o Césio 137, as vítimas contaminadas com o pó radioativo ainda sofrem as sequelas do acidente e o descaso do Estado.

A quantidade de vítimas ainda é uma das maiores controvérsias do caso.

— O estado de Goiás reconhece apenas 120 pessoas como vítimas diretas do acidente. Essas 120 pessoas, segundo o Estado, têm assistência médica integral até a terceira geração. Mas isso não acontece. Estas pessoas ficaram um ano sem receber os medicamentos. Agora estamos recebendo, mas não sabemos até quando. A Associação das Vítimas e o Ministério Público do Estado de Goiás acreditam que 1500 pessoas tiveram envolvimento direto e indireto com o Césio 137 — esclarece Odesson Alves, Presidente da Associação das Vítimas do Césio (Avcésio).

Atualmente, para ser considerada vítima pelo Estado, é preciso comprovar a contaminação pelo material radioativo ou apresentar algum tipo de doença relacionada ao acidente.

O governo estadual dividiu as vítimas em três grupos, de acordo com o nível de contaminação, para o pagamento das pensões. No grupo 1, estão os que tiveram contato direto com o material radioativo e devem receber assistência por toda a vida e pensão. No grupo 2, estão aqueles que sofreram contaminação indireta. No grupo 3, os que tiveram perda de bens e problemas financeiros por causa do acidente.

Esta divisão revela a velha e carcomida tática de jogar umas vítimas contra as outras, uma vez que uns recebem mais benefícios que outros. Isso já foi percebido pela Avcésio e acabar com tal diferenciação é uma das reivindicações da entidade, que quer todas as vítimas sendo tratadas igualmente.

— Tem que acabar com essa hipocrisia de grupo 1, 2 e 3. Todos nós somos vítimas do acidente — desabafa Marilene Gonçalves Silveira, que ainda não foi reconhecida como vítima.

Muito além das perdas físicas, das mortes, das sequelas físicas visíveis, as vítimas sofrem violência psíquica. Ainda hoje, são vítimas do preconceito. Na época do acidente, foram proibidas de sair do estado. A pequena Leide das Neves teve o caixão apedrejado porque a população — totalmente desinformada — acreditava que os restos mortais da menina poderiam contaminar o solo da cidade.

— Essa tortura psicológica mata a gente. Nossos processos estão há anos na justiça. Tem gente se suicidando. Meus dias estão contados e estou com 56 anos de idade — desabafa o Sargento reserva da PM, Antônio Eustáquio de Souza.

Trabalho para a morte

Muitas das pessoas que trabalharam na descontaminação da cidade, realizaram as atividades sem saber que se tratava de material radioativo e contaminante. Equipamentos de segurança adequados não foram distribuídos aos trabalhadores. É o que revela Mário Rodrigues da Cunha, funcionário do Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa) — que realizou a descontaminação da cidade — à época do acidente:

— Ninguém falava que esse trabalho traria sequelas. Na época o pessoal ganhava uma diária e hora extra, e chegava a fazer muita hora extra. A gente não sabia o que era, só depois que fizemos um curso é que começamos a ter noção do tamanho do problema. Aí nós ficamos sabendo da radiação e todo mundo começou a sair do trabalho.

— Nós tivemos que lavar a área sem nenhuma proteção. A gente era escalado para trabalhar sem informação ou esclarecimento — completa Charles Alves Bento, bombeiro na época.

Segundo Mário Rodrigues, o governador do estado na época, Henrique Santillo, deu ordens para que apenas quem fosse mais velho (acima de 40 anos) e não tivesse família trabalhasse na descontaminação. Precaução, certamente, para evitar pedidos de indenização em longo prazo. Mas a medida não foi tomada e, segundo o funcionário do Crisa, os filhos dos jovens que trabalharam na descontaminação estão nascendo doentes.

Mário lembra que quando a gestão que sucedeu a tragédia com o Césio assumiu o estado, 90% dos funcionários do Crisa que trabalharam na descontaminação foram sumariamente demitidos. Isso porque, apesar de empresa pública, o Crisa contratava pelo regime da CLT, sem estabilidade para o funcionário público.

— O governo faz tudo para não pagar a indenização. Ele assina termo de compromisso, mas depois escorrega. Política é política. Agora vai começar de novo a falar um monte de coisas. Todo mundo conhece o Estado. A idéia deles é essa — diz Mário Rodrigues, enfático, ao se lembrar do tratamento que o Estado tem dado às vítimas:

Até hoje também não se sabe ao certo quais serão as sequelas deixadas pela tragédia. Odesson Alves explica:

— Nós não sabemos a gravidade do acidente. Muitas crianças estão nascendo com problemas que não são normais em crianças e há muitos adultos doentes, mas quando nós vamos aos médicos, eles sempre dizem que não há relação com o acidente.

A Avcésio realizou, em setembro, um seminário para discutir a situação das vítimas e estabelecer um plano de lutas para 2007/2008. Odesson Alves explica as principais reivindicações da Associação:

— Nossas principais reivindicações são fazer com que o governo reconheça como vítimas as pessoas que trabalharam no acidente e tiveram de alguma forma prejuízo; fazer com o governo garanta até a 3ª geração o tratamento médico a todas as vítimas; criação de um centro de referência para tratamento, pesquisa e treinamento de profissionais que vão lidar com as vítimas do Césio.

Como foi o "acidente"

A contaminação com o Césio 137, ocorrido em Goiânia (GO), em 1987, não pode ser tratada como um simples acidente. Quando se fala em acidente, há uma certa dificuldade em determinar a responsabilidade pelo fato. Além disso, cultiva na população um sentimento de impotência, aplacando a indiscutível revolta. Óbvio que o fato não foi planejando, mas não teria ocorrido sem a negligência estatal, tão comum num país em que não se governa para o povo. Neste caso, sabemos muito bem quem são as vítimas e os culpados.

O Instituto Goiano de Radioterapia — IGR — funcionava no centro de Goiânia. O prédio onde funcionava — que era propriedade da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia — foi vendido ao Instituto Goiano de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás (Ipasgo), e o IGR mudou-se do local, mas abandonou uma bomba de Césio 137, utilizada na prestação de serviços radiológicos. O IGR deveria ter comunicado o fato à Comissão Nacional de Energia Nuclear — CNEN — e solicitado o recolhimento da bomba, mas não o fez. Em maio de 1987, o antigo prédio do IGR começou a ser demolido.

Em setembro daquele ano, dois catadores de papel entraram no prédio em escombros e levaram a bomba de Césio 137. A bomba foi partida em dois pedaços, um de 300 e outro de 120 quilogramas. A parte menor foi quebrada até atingir o material radioativo. A peça maior foi vendida a Devair Alves Ferreira, dono de um ferro velho. Devair ficou encantado com o pó que emitia um brilho azul no escuro. Ele mostrou a descoberta à esposa, Maria Gabriela, e a distribuiu entre amigos. Pouco tempo após a exposição, as pessoas começaram a sentir náuseas, tontura, vômito e diarréia e começaram a procurar tratamento médico.

Maria Gabriela desconfiou que o mal estar que sentia poderia ter sido causado pelo pó azul e levou a cápsula de Césio até a Vigilância Sanitária de Goiânia e relatou o fato aos médicos. Dias depois, em 29 de setembro, foi dado o alerta de contaminação por material radioativo.

Maria Gabriela faleceu no dia 23 de outubro daquele ano, no Hospital Marcílio Dias, no Rio de Janeiro, onde realizou tratamento médico. No mesmo dia também faleceu Leide das Neves, de apenas seis anos, sobrinha de Maria Gabriela. Ela foi a vítima com maior dose de radiação. A menina ingeriu o Césio 137. Leide das Neves foi enterrada em um caixão blindado e sob os protestos da população que tinha medo da contaminação. Devair passou pelo tratamento de descontaminação no Hospital Marcílio Dias, no Rio, e morreu sete anos depois.

O governo estadual tentou, a todo custo, esconder o acidente radiológico. Inicialmente, afirmava a todos que se tratava de um vazamento de gás. Assim, muita gente trabalhou na descontaminação totalmente desprotegido, acreditando na explicação mentirosa.

A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) examinou uma parte da população da região do acidente. Foram constatados 244 níveis de radioatividade e quatro pessoas morreram logo após a contaminação. A descontaminação da cidade foi feita através da demolição de casas, com tudo o que havia dentro. Esta limpeza produziu 13,4 toneladas de lixo atômico, que foram colocadas em 14 contêineres completamente fechados. Todo este lixo — depositado no município de Abadia de Goiás, próximo a Goiânia — permanecerá como um perigo para a sociedade por 180 anos.

A sentença da Ação Civil Pública movida pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual, em 1995, condenou a CNEN ao pagamento de indenização de R$ 1 milhão, bem como a assegurar amplo tratamento às vítimas e monitoramento contínuo das populações afetadas ou que possam vir a ser atingidas. Também foram condenados o Instituto de Previdência e Assistência Social do Estado de Goiás, bem como dois responsáveis pelo hospital de onde foi retirada a máquina de raios-X, ao pagamento de multa individual de R$ 100 mil. O Estado de Goiás não foi condenado, por ter sido reconhecida a prescrição da ação a ele relativa.

Mas o que tem ocorrido até hoje é a completa inação do Estado no que se refere ao acompanhamento médico das vítimas. Por vezes faltam os remédios necessários aos tratamentos, os médicos insistem em dizer que novas doenças diagnosticadas não têm relação com a contaminação pelo césio.

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