Christiano Câmara: Um acervo da memória musical e fotográfica

Christiano Câmara: Um acervo da memória musical e fotográfica

Homenageado no XIII Cine Ceará — Festival Nacional de Cinema e Vídeo — em maio, com o documentário Rua da Escadinha 162, do sobrinho Márcio Câmara, Christiano Câmara nos mostra um pouco da sua história, seu trabalho como crítico de cinema, de música e seu acervo de discos (28 mil em cera e vinil), que vão do clássico ao popular, além de centenas de fotos e quadros espalhados por toda a casa.

Seu interesse por discos surgiu na década de 50. Christiano fez um longo percurso nos sebos e lojas de discos para formar seu patrimônio histórico — à fonte sonora está associada a sua habilidade de pesquisador de todo esse processo cultural que foi a evolução do ato de ouvir música ainda nas audições íntimas do século XIX, como ele nos relata: “Antes do disco, você só podia conhecer uma música através das partituras. Antes do disco, o ato de se ouvir música era muito mais profundo e muito mais social, porque tinha que haver sempre presente alguém que entendesse de música e a executasse em qualquer instrumento. Nas casas de família normalmente era o piano. Depois tivemos uma ascensão muito grande do violão. E essa música ao vivo era bem mais interessante, não só do ponto de vista auditivo, como do ponto de vista social, porque havia um congraçamento. Existia um instrumento qualquer numa casa, e lá recebia-se visitas. Era o que chamavam sarau.”

O colecionador

Seu acervo contém milhares de discos em cera e vinil, livros, fotografias, filmes, e CDs espalhados por toda a casa, ocupando cadeiras, mesas e sofá. Estima-se em 20 mil os discos de cera e 8 mil os de vinil catalogados, além de 800 quadros e livros sobre a história da música. Da tradicional gravação em 78 rotações à revolucionária 45 ou 33 rpm, os discos diversificam-se no popular, erudito, instrumental com grandes orquestras, piano, violão e clássicos do cinema.

Mostra-nos um vinil: A arte de Vicente Gomes, em solos clássicos de violão (gravação de 1960, Decca) e um de Francisco Alves (Odeon, 1957). A estimação fica por conta da soprano lírico Miliza Korjus, a polonesa cantora no filme A grande valsa, gravada em 1959 (RCA Camden Cal).

Christiano vê a deficiência no campo da pesquisa e expõe as dificuldades trilhadas pelo pesquisador: “Há uma diferença muito grande entre um pesquisador, historiador e o colecionador. Mas no Brasil a deficiência é tão grande de objetos a serem pesquisados nos museus, que qualquer um que se meta a historiar ou a pesquisar — e qualquer brasileiro tem direito a isso, independente de sexo e idade, porque a pesquisa e o amor a verdade histórica é algo que nasce com a pessoa — tem que ser, antes de mais nada, um colecionador. Por isso é que acho que as coleções são indispensáveis.”

O crítico

Com a peculiaridade de quem domina o assunto quando fala do violão clássico, sua técnica e virtuosidade, destacando inclusive peças da literatura violonística, bem como seus intérpretes virtuosos (Lívia São Marcos, Julian Bream, etc.), ressaltando, ainda, músicas eruditas e populares que se imortalizaram através do tempo, Christiano Câmara discorda daqueles que vêem na crítica uma habilidade acadêmica: “Só querem aceitar o crítico musical se ele entender da parte escrita da música. Se ele não souber onde colocar o dó, o ré, o mi, o fá, a escala musical toda, ninguém quer aceitá-lo como crítico, quando, na realidade, é uma desobrigação. O grande flautista brasileiro Benedito Lacerda, ao ser obrigado a fazer teste na Marinha para arranjar emprego, não sabia um dó de música. Já tinha composto quantos choros?”

A elitização da música

O disco nunca foi barato, o que sempre foi obstáculo à sua aquisição, segundo o próprio Christiano. No seu entender, o que estimulava o consumo era o forte apelo publicitário, movido pela capa, litografia, fotografia e texto. Havia um trabalho cujo processo gráfico tornou-se mais simples. Para ele, o vinil talvez até fosse mais caro do que o CD, que era pra ser a preço de “banana”. Tudo por conta da produção e vendagem, sem esquecer, contudo, a vulnerabilidade do mecanismo de reprodução que dá acesso fácil à pirataria.

A música brasileira passou por um processo de refinamento na década de 50, o que representou para muitos o distanciamento das tradições populares, tudo por conta da contribuição acadêmica de jovens universitários, estudantes de música que encontraram no jazz americano a fonte de inspiração e aprimoramento, o que, segundo Christiano, favoreceu a elitização da música, que passou a render dinheiro para os seus autores também.

“Até a cartelização da economia — década de 50 — a música não dava dinheiro. O compositor era tido como “pé de chinelo”, como humilde. Ele compunha e recebia o seu cachê. Porque sempre quem ganhou com a música foram os donos das gravadoras, quando muito, os maestros, intérpretes. Mas os autores, em si, morreram na miséria. Veja o Papai Noel do Brasil, Assis Valente, suicidou-se por falta de dinheiro. Só o Boas festas dele (Eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel, cantarola) rende milhões às gravadoras. Isso é que precisava se dar um jeito. Com o compositor, quando a coisa começa a dar dinheiro, o que menos interessa é a música. Faz qualquer porcaria por dinheiro, porque ele está visando antes de qualquer nota musical, a nota bancária. Quando a música começou a dar status e a render dinheiro também para o seu autor, surgiu a elitização.”

A boa música não morre

Mas se é na arte popular que se manifesta a alma do povo, e que está bem expressa na música tradicional — a música que nasce dos fatos, da vida — para ser aceita e cantada, ela tem que ser ritmada e metrificada, como bem define Christiano Câmara, alertando ainda que houve um distanciamento, marginalizando o compositor simples, com o surgimento da chamada música de classe média, rompendo-se as antigas parcerias sem distinção de classe. Exemplifica na parceria de Heitor dos Prazeres e Noel Rosa, na música Pierrô apaixonado e detalha:

“Olha a parceria: a música de um semi-analfabeto e a letra de um doutor. Essa parceria hoje é possível? … Não é possível. Houve uma separação, uma divisão de classe. O Ari Barroso era de classe média, era advogado. Chegou a ser nomeado juiz de Direito da cidade de Rezende. Joubert de Carvalho, autor de Maringá, era médico. Hoje em dia o médico compõe no círculo dele e o povo não toma conhecimento. Exatamente uma contribuição fabulosa do intelecto da classe média para o povo. Em compensação, o povo fornecia muitas vezes a melodia, fornecia o ritmo, fornecia o ‘molho'. Um autor como Assis Valente tinha certas tiradas filosóficas. Numa marchinha de São João ele fala, naturalmente, que o povo estava dançando para se iludir, quando diz ‘escutando a multidão / sempre a cantar pra se iludir / eu também tentei cantar/eu também tentei sorrir / nesta noite de balões / eu não me canso de esperar / vão chegando as emoções / só você não quer chegar…' É lindo! Ele fazia isso espontaneamente. Aí você vê: a cozinheira estava preparando o almoço, cantarolando ‘aquela' música e a sua patroa, lá no seu gabinete, estava cantarolando a mesma música. Atualmente, a coisa ficou bem separada. Existe a chamada música de bom-gosto, que é a música do intelectual, do universitário, e a música do pé de chinelo.”

A boa música não morre, não fica velha, como bem diz Christiano Câmara. Ou se morre é ressuscitada em nova roupagem, novos arranjos e orquestrações. E permanece o mesmo sucesso de sempre, para o deleite e emoção das novas gerações.

“Daí porque quando uma música antiga é reciclada, a aceitação é total. Você vê Kubanacam. Foi gravada em 1936 pela orquestra de Ernesto Lecuona em Paris, pela Columbia. Quando o Brasil perdeu a Copa em 1950 dentro do Maracanã, o maior sucesso das radiolas de bar era Kubanacam. Ora, meu amigo, em 1950 já fazia 14 anos que tinha sido gravada, tocada e ouvida, e Kubanacam ainda era sucesso. Então, a música nunca teve idade. A música sempre tinha qualidade. Siboney, tantas vezes você grave, faça um arranjo diferente, é sucesso deste 1907. La Cumparsita é citada desde 1917. Agora no Brasil não foi ressuscitada Aquarela do Brasil? É de 39. Saint-Louis Blues, pouca gente sabe, é de 1914. O repertório do Glenn Miller, In the mood, Moonlight serenade, é todo da década de 30. Agora mesmo, Kubanacam é o maior sucesso em novela da televisão. Todo mundo gostando.”

Em mais uma incursão no repertório clássico de violão — objeto de nossa pesquisa — descobrimos a gravação original de João Pernambuco, das suas composições Interrogando, Pó de mico, Magoado, Dengoso,etc.; Américo Jacomino “Canhoto” executando as suas clássicas composições Abismo de rosas e a Marcha dos marinheiros, que notabilizaram o saudoso Dilermando Reis; e Nesta rua, canção de Isaías Sávio, na interpretação da violonista Maria Lívia São Marcos: “Para mim, foi uma surpresa a maneira séria como a filha de um professor de violão, Maria Lívia São Marcos, levou o estudo do violão, e hoje é catedrática em Genebra, Suíça — curso superior de violão. Aqui no Brasil mesmo o violão é levado a sério.”

Se a Praça do Ferreira ainda mantém a tradição de ser o centro histórico de Fortaleza, não é por isso que rua Baturité, antiga rua da Escadinha deixa de ter também o seu espaço histórico ocupado por este acervo de discos no número 162, bem próximo à igreja da Sé, pois foi de lá que saímos levando a gravação em solos de violão de Capricho Árabe, de Tarrega, em interpretação de Lívia São Marcos; concerto para violão e orquestra de Villa-Lobos com Narciso Yepes; Granada de Alberniz com Segóvia, e, é claro, a gravação original de João Pernambuco e Américo Jacomino “Canhoto”.

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