O rio Capivari, em Caxias, transbordou e inundou várias casas
No Rio de Janeiro, todo verão é a mesma coisa: favelas e bairros pobres são devastados por chuvas torrenciais mais do que típicas entre os meses de dezembro e abril. Mesmo assim, empurradas para as áreas de risco por conta das péssimas condições de habitação oferecidas aos pobres, milhares de pessoas ficam desabrigadas e outras tantas morrem todos os anos por conta das chuvas de verão. Esse ano, a bola da vez foi o distrito de Xerém, no município de Duque de Caxias, região metropolitana do Rio de Janeiro. Durante uma forte chuva que atingiu o local, a passagem de uma tromba d’água pelo Rio Capivari — que corta o distrito — fez com que centenas de casas fossem arrastadas pela lama, deixando três mortos e cinco mil desabrigados.
Nos dias seguintes, foi grande a luta dos moradores atingidos para resgatar o que sobrou de seus pertences em meio a um emaranhado de lama, esgoto e lixo. Nossa reportagem esteve no local e conversou com diversos moradores. Em prantos, Dona Idelci, de 52 anos, escavava a espessa camada de barro dentro de sua casa a procura de seus documentos.
‘Tragédia’ anunciada: entulhos e destruição foram as consequências das chuvas e do descaso do poder público
— Nós não podemos dormir em casa porque não temos mais nada. Estamos na casa de uma irmã da igreja e vindo todos os dias para tirar o barro de dentro de casa. Mas não temos condições de ficar aqui, porque tem muito barro, as paredes estão cheias de rachaduras, as portas foram destruídas, nós não temos mais camas. Perdemos tudo. Nosso sentimento é de tristeza, mas você sabe como é vida de pobre: temos que estar sempre preparados para recomeçar tudo, já que, do Estado, nós só estamos recebendo promessas — conta a aposentada.
Além do desespero para tentar salvar os frutos de anos e anos de trabalho, moradores de Xerém sofrem com a ganância dos empresários locais donos de redes de supermercados. Dias depois da tragédia, panos-de-chão estavam sendo vendidos por 5 reais e garrafões de 20 litros de água por 30 reais.
— Isso é uma vergonha. Eu e minha neta ficamos bebendo água da bica nos primeiros dias por conta disso. Parece que esse povo, quanto mais dinheiro ganha, pior fica — disse Dona Idelcy.
Outra vítima, o jovem estudante Jonatas da Silva, de 18 anos, disse que estava acordado quando o nível da água do Rio Capivari começou a subir rapidamente.
‘Tragédia’ anunciada: entulhos e destruição foram as consequências das chuvas e do descaso do poder público
— Eu estava acordado na hora que tudo começou a acontecer. Começou a chover muito e o nível da água subiu. Depois, começou a sair água do ralo, das torneiras. Eu peguei o meu pai e a minha mãe e levei eles para fora de casa. Não sobrou nada. A casa foi completamente destruída. Agora haja força para comprar todas as coisas de novo. Comprar um terreninho para construir e recomeçar a vida. Até agora ninguém do Estado procurou a gente para nada. Nem para dar uma garrafa d’água. Eles dizem: ‘tem que pegar um papel’. Aí você vai, pega o papel, preenche e eles dizem: ‘agora, tem que levar o papel em outro lugar’. Você vai no lugar, entrega o papel e eles fazem você preencher outro papel e levar em outro lugar. Tudo isso para receber uma ajuda de 400 reais que ninguém recebeu de verdade ainda — protesta.
Uma notória figura local que esteve nas áreas atingidas ajudando as vítimas foi o cantor e compositor Zeca Pagodinho. Em entrevista à TV Bandeirantes, o sambista disse ter “nojo desses políticos”, já que pouco foi feito pelos desabrigados até agora. Durante a passagem de nossa reportagem por Xerém, muitos moradores desabafaram. É o caso do desempregado Carlos Alberto da Silva, de 59 anos. Diante da inércia dos gerenciamentos de turno em ajudar as vítimas das chuvas na região serrana, em 2011; e no morro do Bumba, em 2010, ele acha que o destino dos moradores de Xerém não será diferente.
— Eu moro aqui há 40 anos. O prédio onde eu morava tinha três andares. Caiu tudo. Meu sentimento é de impotência por ter perdido tudo que eu tinha já com 59 anos de idade. E, pelo visto, nós não vamos ganhar nada da prefeitura. Esse tal de aluguel social que eles falaram que iam dar, começaram dizendo que era 600 reais, depois baixou para 500, depois para 400 e agora eles não estão nem mais falando no assunto. Colocaram uma pedra em cima. Nós estamos muito tristes. Se a gente não tivesse os parentes, estaríamos na rua. Você vê que nessas regiões de Friburgo, Teresópolis, no morro do Bumba em Niterói, ainda tem muita gente flagelada que, até hoje, não recebeu nada. Você acha que aqui vai ser diferente? Até agora, nem a defesa civil veio aqui avaliar nada — conta.
Especialista em geotécnica do Departamento de Engenharia Civil da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Alberto Sayão, diz que era possível prever a catástrofe, já que, há anos, a situação dos moradores da região era visivelmente arriscada.
— Foi uma tragédia anunciada, um desastre previsto. Alguém tem que ser responsabilizado. Os escorregamentos acontecem por causa de três fatores: camada fina de solo, forte inclinação e grande quantidade de chuva. O rio vai sempre reconquistar o seu espaço. É possível prever com exatidão as áreas de inundação — explica.
O morador Wilson dos Santos, de 39 anos, reclama que, apesar de culpados pela tragédia em todos os aspectos, a prefeitura de Caxias e os gerenciamentos estadual e federal, até agora, nada fizeram pelo povo de Xerém, que segue contando apenas com a ajuda de pessoas comuns, que continuam enviando donativos para as vítimas da chuva.
— Eu fui nascido e criado aqui e nunca vi uma coisa dessas. É só tristeza. 50 a 70% da população aqui perdeu tudo que tinha. E agora a gente, que é pobre, vai ter que ficar na mão desses governos aí — acusa.
Ano novo, velha história
Todos os anos, assistimos notícias de tragédias em favelas e bairros pobres por conta das chuvas de verão e início de outono. Em janeiro de 2010, cerca de 40 pessoas morreram depois que uma série de deslizmentos atingiu o município de Angra dos Reis, no sul do estado do Rio. Em abril do mesmo ano, centenas de pessoas morreram nos morros do Bumba, em Niterói, e no morro dos Prazeres, em Santa Tereza, região central do Rio de Janeiro. Até hoje, parte das vítimas não recebeu nenhum amparo do Estado e algumas famílias seguem vivendo em abrigos improvisados em quartéis do exército.
Em janeiro de 2011, ocorreu o mais trágico de todos os desastres por conta das chuvas de verão. Na região serrana do Rio, as cidades de Friburgo, Teresópolis, Petrópolis e Itaipava foram atingidas por uma chuva torrencial que fez deslizar centenas de encostas, deixando mais de mil mortos e dezenas de milhares de desabrigados. Meses depois, a reportagem de AND foi a Friburgo e constatou que muitas famílias seguem vivendo em abrigos. Em fevereiro do ano passado, o prefeito da cidade foi acusado pelo Tribunal de Contas da União de desviar grande parte das verbas disponibilizadas para ajudar as vítimas. A gestão é acusada, inclusive, de desviar donativos enviados por ONGs para as pessoas desabrigadas.
— A gente não tem esperança de que vá receber algum amparo, porque quem lê os jornais sabe que na região serrana tem gente que recebeu aluguel social seis meses e depois ficou sem nada. Em Friburgo, o prefeito colocou no bolso o dinheiro que era para ajudar o povo. Tem muita gente aqui desesperada que não quer sair de casa com medo de ficar sem nada. A pessoa pensa “será que vai acontecer comigo o que aconteceu na serra?”. As pessoas preferem ficar em casa correndo risco. A gente aqui só conta com a ajuda de amigos, parentes e da igreja, porque o governo não quer nem saber — protesta o morador de Xerém, Wilson dos Santos.