Formada em agronomia, a paraibana Vânia Perazzo, 56 anos, abandonou o doutorado de botânica em Paris, para se dedicar ao cinema. Depois de fazer cinco documentários, que já foram exibidos em várias partes da Europa, Vânia está vencendo todas as barreiras existentes à produção cinematográfica no Brasil, principalmente no nordeste, e preparando seu primeiro longa-metragem em ficção: uma história sobre um circo mambembe nordestino, que apresenta espetáculos teatrais. Sabendo das dificuldades de distribuição e divulgação, principalmente pela concorrência com o cinema ianque, que ocupa quase todas as salas de cinema no Brasil, Vânia está disposta a sair pelo país apresentando seu filme.
Ela sempre teve um grande interesse pela arte e literatura, que era bastante viva em Areia, interior da Paraíba, onde nasceu e passou a infância e adolescência, mas optou por fazer agronomia, a contragosto, para dar continuidade a tradição familiar, e da cidade. "Existe em Areia a Escola de Agronomia do Nordeste, Universidade da Paraíba. Por isso, as mulheres areienheses tinham um destino praticamente traçado, que era de serem agrônomas ou casarem com agrônomos. Até brincam na cidade que o escritor José Américo de Almeida, criou a Escola para casar as conterrâneas", diz Vânia, rindo.
O escritor paraibano José Américo de Almeida, nasceu em Areia, em 1887. Em 1928 escreveu A Bagaceira, marco do romance regionalista moderno. Além de escritor, ocupou cargos políticos: foi deputado, senador e governador da Paraíba. Faleceu em 1980.
Segundo Vânia, Areia já foi um dos mais importantes centros comerciais da Paraíba. Situada na região do brejo, entre o litoral e o sertão, no alto da serra, onde chove, é como um oásis circundado pela Caatinga. Nas décadas de cinquenta, sessenta e setenta, foi um pólo relevante, onde aconteceram muitos eventos de cinema, música e teatro. "Em Areia foi fundado o primeiro teatro da Paraíba, em 1859, o Teatro Minerva, que funciona até hoje e funcionou muito tempo como cinema também", diz, acrescentando que, atualmente, a parte cultural de Areia decaiu muito.
" Eu comecei a freqüentar o cinema do Teatro Minerva por volta dos dois anos de idade, no colo do meu avô. Uma coisa muito interessante e também triste deste cinema é que a tela ficava no palco, e a sociedade areinhense ia ver o filme na parte da frente, e na parte de trás da tela ficavam os pobres, pagando ingresso menor", conta.
Vânia se lembra que durante a exibição dos filmes, por trás da tela, havia um homem do povo, que possuía grande habilidade para ler de trás para frente, quando eram exibidos filmes estrangeiros. Ele lia em voz alta para a platéia na qual muitos eram analfabetos. Depois de formada em agronomia, Vânia se especializou em plantas, fazendo mestrado em botânica, mas nunca perdeu seu interesse por arte, que foi partindo para o seguimento cinema. Naquela época, década de 70, costumavam acontecer festivais de cinema em Areia, e Vânia não perdia nenhum. "Vinham cineastas de todo o país e do mundo e alguns davam cursos de cinema durante os festivais. Eu sempre fazia todos eles", lembra.
Foi durante um desses cursos de cinema que Vânia participou de um projeto entre o núcleo de documentação cinematográfica da Universidade da Paraíba e a França, que oferecia estágio de cinema, para pessoas das mais diferentes profissões. "Fui uma das escolhidas para ir para Paris, e lá aproveitei para começar a fazer, paralelo ao estágio, doutorado em botânica, porque já tinha uma tese praticamente pronta. Depois vi que não dava para fazer as duas coisas e abandonei botânica, sendo transferida para o departamento de comunicação e terminando a minha tese de doutorado em cinema", conta.
Durante o período na França, Vânia realizou dois documentários, um em super 8, sobre o economista paraibano, Celso Furtado, que na época, anos setenta, estava exilado em Paris, e o outro em 16 mm, sobre uma vidente francesa. De volta ao Brasil, na década de 80, Vânia fez o documentário Carnaval Sujo, sobre um bloco de sujos, carnaval de rua, em Areia. Esse filme foi apresentado em Portugal, na Bulgária e em festivais na França quando foi comprado pela televisão francesa.
Em ligação com produtores búlgaros, que conheceu durante um Festival de Cinema de Veneza, Itália, Vânia realizou mais dois documentários no Brasil, um mostrando uma igreja evangélica por dentro, a Igreja Universal do Reino de Deus, que já foi apresentado várias vezes na França, e o outro mostrando um circo mambembe de João Pessoa, PB, surgindo, então a idéia do seu primeiro filme ficção, Por trinta dinheiros, que atualmente está em período de finalização e edição. A história é sobre um circo mambembe da Paraíba, que apresenta peças teatrais. Vânia conta que esses circos ainda são comuns por todo o nordeste do Brasil — com menos intensidade do que alguns anos atrás — e que atores famosos como Renée de Vielmond e Luis Carlos Vasconcelos, já passaram por eles.
"Por falta de dinheiro, eles não costumam viajar para as outras regiões do país. Alguns circos mambembes da Paraíba, por exemplo, não podem viajar nem mesmo para o interior, transitando pela periferia de João Pessoa. Geralmente, são circos como todos os outros, com palhaços, malabaristas, trapezistas, mágicos, todos atores durante as apresentações das peças. Somente não têm muitos animais, sobretudo animais como leões, que necessitam de muita despesa com carne", relata Vânia.
Por trinta dinheiros é uma comédia dramática. O núcleo central da história é: durante uma noite em que apresentam a peça A Paixão de Cristo, os atores que fazem o Cristo e São Pedro, fogem com todo o dinheiro e a partir daí passam a ser perseguidos pelo Judas, que é o diretor do circo. Vai se mostrando um pouco a vida do circo, a perseguição e uma visão diferente do misticismo nordestino", explica Vânia.
O filme tem uma hora e quarenta minutos de duração e foi rodado integralmente na Paraíba — João Pessoa e arredores, como a praia de Cabedelo. No elenco estão: Ilya São Paulo, Osvaldo Mil, Cláudia Alencar e Emilio de Melo, entre outros.
Vânia está muito feliz com a realização do seu primeiro ficção, mas diz não ser fácil fazer cinema no Brasil e muito menos no nordeste. "Se o Brasil é periferia, o nordeste é periferia da periferia. Nosso filme foi aprovado no Ministério da Cultura para captação pela Lei do Audiovisual, que permite ao empresário investir até três por centro do imposto de renda na produção cinematográfica, mas a maioria das empresas que investem em cinema estão situadas no eixo Rio-São Paulo e preferem investir na produção desse eixo", diz Vânia acrescentando que conseguiu investimento, principalmente, do Banco do Nordeste, para uma produção de baixo orçamento.
"Por termos pouco dinheiro, além de dirigir o filme, juntamente com Ivan Hledarov, fui secretária, digitadora e diretora de arte — visitava feiras e comprava objetos, fazia pesquisas de figurino, a figurinista foi minha irmã, Leonora Perazzo Mendes —, escolhia a trilha sonora, composta de coisas do Nordeste, com o Quinteto da Paraíba tocando uma música do cantor e compositor pernambucano Antônio Nóbrega, e algumas músicas de Pedro Osmar, que é um compositor de música experimental".
O diretor de fotografia é Roberto Henkin, um gaúcho que acabou de ser premiado em Madri, Espanha, pela fotografia de Netto perde sua alma, de Tabajara Ruas e Beto Souza. Segundo Vânia, ele saiu de um universo de produção de alto orçamento, comum no Rio Grande do Sul, onde existe um pólo cinematográfico brasileiro muito bem organizado, para cair em uma produção de baixo orçamento no Nordeste. "Roberto teve que improvisar. Por exemplo, tem um monólogo no final do filme que para realizá-lo necessitávamos de trilho e carrinho com a câmera. Como não tínhamos nada disso, ele teve a idéia de fazer um balanço com as cordas do circo e que as pessoas girassem em torno do ator com ele. Ficou belíssimo", conta.
Vencido a barreira da produção, "filme na lata", vem uma barreira tão grande quanto: a distribuição, divulgação. Vânia as considera fundamentais, porque sem isso o povo não vai ao cinema ver o filme. Mas as salas de cinema, em sua maioria, estão reservadas para os filmes ianques, hollywoodianos.
"Várias salas de cinemas estão sendo inauguradas em shoppings em todo o Brasil, mas prestemos atenção que nestas estão passando filmes ianques, em sua maioria. Esses filmes acostumaram o espectador a verdadeiras receitas de bolo, sem inovação. Além disso, os ianques substituíram a dramaturgia pela ação. Existem filmes, por exemplo, em que noventa por cento das cenas é de pauleira, quebra-quebra, carro virando, e outros. A maioria dos filmes americanos é assim", declara.
Vânia planeja ir em busca de um bom distribuidor, mas se não conseguir, ela pretende colocar "a lata" debaixo do braço e sair distribuindo e apresentando o seu filme. "Acredito que Por trinta dinheiros tem possibilidade de ter um bom público. Hoje ouvimos falar que o Brasil precisa fazer cinema industrial, que cinema tem que ser indústria. Mas eu acho que isso até pode acontecer, no entanto, não deve deixar de existir o cinema artesanal, diferente, cinema de autor", defende.
Por trinta dinheiros deve estar pronto para ser distribuído até o final deste ano e Vânia vê isso como um privilégio. "Não se imagina a quantidade de filmes emperrados que existem. Foram aprovados muitos projetos de filmes pela Lei do Audiovisual e, atualmente, muita gente, ou já filmou e não tem como finalizar, ou filmou e parou, porque não tinha mais dinheiro para continuar a filmagem", diz Vânia.
Feliz em realizar o seu sonho de fazer cinema, Vânia dá conselhos para aqueles que querem iniciar neste mundo. "Acredito que o documentário é excelente como iniciação em cinema, porque com ele se aprende a observar a realidade. Um outro conselho importante é que aquele que pense em fazer um filme de ficção escolha falar sobre aquilo que conhece, a menos que faça uma séria inserção em uma realidade desconhecida, porque se alguém só anda de avião e vai falar de gente que anda de ônibus, ou faz uma pesquisa profunda e se integra neste meio ou cometerá gafes", finaliza Vânia Perazzo.