Os primeiros raios de sol já podiam ser sentidos. O frescor da terra molhada, o viço do fruto brotando. Tudo ia tão bem que Marciano Pereira chegava a ter uma pontinha de incerteza e parecia não poder crer que tudo aquilo fosse verdade. Ter um chão para plantar, seu, verdadeiramente seu e de sua gente, um sonho acalentado desde criança.
Hábito adquirido dos camponeses, quando chega a época de colher, também em dias assim Marciano passou a relembrar acontecimentos marcantes de sua vida. Acostumou-se a contar: a mãe teve 18 filhos. No sertão sergipano só havia água na casa grande. Os empregados tinham que buscar água no córrego. A mãe colocava um pote de barro de 30 litros na cabeça, um filho no braço, o outro — que já podia andar — seguia agarrando-se na saia, e o da barriga lhe chutava por dentro, pelos 12 quilômetros que separavam a velha casinha de pau-a-pique do córrego.
A família toda, agregada, vivia na fazenda Boa Esperança, sob a tradicional condição de cultivar a terra e entregar muitos dias de trabalho extra ao latifundiário como "aluguel" e outros pretextos de sobretrabalho. A família também era obrigada a comprar suas ferramentas e qualquer outra mercadoria na venda mantida pelo dono de tudo ali. Ela tinha direito a 1/5 da produção. E na parcela de terra que eles podiam plantar para si nem erva daninha nascia.
Aos sete anos, Marciano, menino magrelo e amarelo, corria descalço e nu pelas fazendas afora. Os mais velhos mesmo diziam que "muleque não precisa de roupa". Assim, o pequeno pelado chamava os carros de boi que pelo sertão passavam em troca de uma moeda e mesmo de comida. Apesar da vida de penúria, Marciano sonhava com um mundo melhor. Queria ser garimpeiro até o dia em que ouviu o tio contar a façanha de um grupo de camponeses que, armados com suas velhas espingardas, estavam distribuindo as terras do Nordeste aos outros pobres. Dizia o tio que em todo o país — e ele contava que o país era grande, para mais de mil fazendas do tamanho da do coronel — os camponeses estavam agindo assim. O tio dizia que isso era coisa das Ligas Camponesas.
Marciano imaginava trabalhar nas Ligas Camponesas, distribuindo terra ao povo. Sonho que seguiria acalentando por muitos anos.
A cada dia aumentava o ódio de Marciano que, com 10 anos, já era mais um escravo do latifúndio. Ele nada recebia. Seu trabalho entrava na conta da produção do pai, assim como ocorria com os irmãos adolescentes e com a mãe.
Era o que havia
Em 1965, seu pai resolveu vender um pequeno pedaço de chão deixado pelo avô para ir em busca do progresso na cidade. E eis toda a família na grande aventura do pau-de-arara, rumo a São Paulo. Foram 19 dias num caminhão. Às vezes, um desentendimento interno. O caminhão andava demais, não parava e, aí, tinham que brigar para fazer "as necessidades". Mas a maior briga era com os cães de guarda dos latifundiários. Nesta época, podia contar nos dedos da mão os trechos das rodovias em que havia asfalto. Os latifundiários colocavam cavaletes no meio da estrada, corrente na porteira e cães de guarda para vigiar. Para ultrapassar aquela barreira, era preciso reunir todos os camponeses, quebrar os cavaletes, as correntes e meter o guarda na pancada.
E foi assim por quase todo o percurso.
Em São Paulo, a fome quase acabou com a família de Marciano. Ele trabalhou de engraxate, entregador de compras, faxineiro e mais uma infinidade de coisas. Não podia recusar nenhum serviço, era preciso comer e pagar o aluguel de um cômodo no bairro de Santa Fé, local aonde se amontoava a maioria das famílias que chegavam do Nordeste.
Marciano estudou até a 4º série. Tinha muito orgulho de poder ler os jornais. Sempre que havia uma oportunidade comprava, pelo menos, a edição de domingo. Gostava de saber as "notícias".
Aos 20 anos, casou-se. Nessa época trabalhava numa oficina mecânica. Havia entrado como aprendiz aos 18, mas já sabia fazer de tudo um pouco.
As "grandes" obras
Em 1977, aos 22 anos, Marciano viu a possibilidade de mudar de vida. Estavam contratando gente para uma obra muito grande. Além do mais, diziam que o salário daria para ficar rico. E lá foi Marciano parar no Paraná, em meio à construção da Usina de Upiati. Sua função: operador de máquinas pesadas. O salário era realmente bom.
Marciano desconfiou, deveria haver alguma coisa errada. Logo no segundo dia de trabalho, descobriu. Ouviu, por acaso, no refeitório dois operários de outra seção falando sobre a morte de um colega em serviço. A partir daí, as coisas começaram a ficar mais claras. Apesar de vários treinamentos e "medidas de segurança", aconteciam muitas coisas, entre elas falecimentos que não podiam chegar aos ouvidos dos operários. Se a morte ocoresse numa seção, lá ficava a notícia, quieta como o morto. Ninguém podia sair enquanto não "se arrumasse tudo". Assim os operários só sabiam dos acidentes e mortes da sua própria seção. Mas todos tinham uma história para contar sobre os acidentes misteriosos na Usina.
No terceiro mês de trabalho, Marciano sentiu a proximidade da morte. Ao contar esse fato, ele sempre repetia que gente ruim não morria, por isso havia sobrevivido às agruras da desnutrição na infância e a esse acidente.
Ele trabalhava numa seção de dois andares, mas ficava sempre no de baixo. Um dia, sua máquina havia enguiçado e quando ele estava saindo de dentro dela, desabou um tanque cheio de concreto do primeiro andar. Sentiu um frio na barriga e o coração disparar. Por um momento perdeu o controle, teve medo de morrer, mas conseguiu recuperar-se a tempo de jogar seu corpo contra uma parede de ferro, um pouco acima da máquina de onde saíra. Murchou até a barriga para ver se ficava mais "fininho". Ficou ali como uma estátua, olhos vidrados, por mais de 10 minutos, assistindo o desespero de sessenta operários sufocados pelo concreto. Na hora em que o concreto parou de cair, sentiu um fogo nas pernas. Deu vontade de correr. Já não aguentava tanta aflição. Subiu a escada num só fôlego, transtornado.
Ao final, deu de cara com um dos seguranças da empresa que disse:
— Agora que você já viu, vai ficar aqui, quietinho.
Foi obrigado a operar a máquina laminadora sobre a massa de concreto, máquinas e corpos em que havia se transformado o segundo andar da sua seção. Ele passava a máquina e saía barriga, pescoço, cabeça, braços; postas de corpo humano. Tudo era lançado num latão, apelidado de "sardinha". Não havia a menor condição de identificar a que corpo pertencia os pedaços esquartejados. A identidade dos mortos só era descoberta comparando as fichas das "chapeiras" (empresas de mão-de-obra terceirizada) com as dos sobreviventes.
Após o acidente, Marciano foi transferido para o "treinamento". Eram sessões de interrogatórios, com várias entrevistas durante o dia, em que usavam filmadoras, gravadores de voz para todos os lados, além de duas moças bonitas e bem educadas — diziam que eram psicólogas — que falavam sem parar.
Elas faziam muitas perguntas difíceis. Perguntavam o que ele iria dizer da empresa depois que acabasse o trabalho, coisas sobre a família, e perguntavam sobre política. Queriam saber se Marciano conhecia algum sindicato, algum agitador, mas ele não conhecia nenhum. E Marciano tratava de falar o que eles queriam ouvir, precisava garantir o emprego e a própria vida. Ele pensava que se não ficasse com o bico bem fechado a empresa poderia muito bem fazer com que ele se envolvesse em "um pequeno acidente de trabalho, desses que ocorriam todos os dias". Continuava sofrendo coações. Vez ou outra tinha que fazer "treinamento". Trabalhou mais um ano na empresa e pediu demissão.
As corporações viajam
Mas a maior aventura da vida operária de Marciano ainda estava por vir. Havia rumores de que as empresas Mendes Correa e Camargo Júnior estavam contratando gente na praça do Brás, bairro da cidade de São Paulo.
Marciano se dirigiu para lá. Deparou-se com um homem vestido elegantemente e de fala macia, anunciando vagas das duas empresas. Ele perguntava aos "candidatos" se tinham coragem para trabalhar fora do país, e andar de avião. Marciano queria era saber do salário. Uma vez confirmado o valor de 380 mil cruzeiros, ficou com os olhos brilhando de felicidade. Era muito dinheiro. Respondeu sem pestanejar que iria. Pensou que não poderia desperdiçar essa chance. Nunca tinha comprado um palmo de terra ou uma casa para morar. Mas com um salário assim, poderia conseguir pelo menos uma dessas coisas.
Iraque. Foi o destino de Marciano, o Iraque do patriota Saddam Hussein. Nos primeiros 90 dias foi submetido a um "treinamento" em que tinha de estudar por "tele-aulas" a história e a geografia do país, além das questões técnicas do trabalho. Até aula de inglês teve, para que aprendessem pelo menos a pedir ajuda e adquirir comida. Somente concluído o treinamento é que se podia sair para o trabalho. Eles iriam construir estradas e pontes por todo o país. Havia cerca de 10 mil brasileiros lá.
O alarme tocou às 5 horas da manhã. Era hora de levantar. Em 30 minutos o café seria servido e Marciano enfrentaria o primeiro dia de trabalho no heróico Iraque. No refeitório chegou a notícia: ninguém podia sair do alojamento. Foi quando Marciano assistiu um filme de guerra pela janela. Os operários, após o primeiro momento de pânico, se amontoavam para ver os aviõezinhos caindo. Era bomba para todo lado. Havia estourado a primeira guerra do Golfo.
Uma semana de conflito se passou. Marciano deixou o Iraque no último vôo que trazia os operários da empresa.
Retorno ao campo
Na década de 90, o operário mudou-se com a família para o Triângulo Mineiro, lugar "bão de serviço", como diziam muitos. Trabalhou como operador de colheitadeira, na lavoura de café e de laranja. Não havia serviço durante o ano todo, mas Marciano dava um jeitinho. Fazia uns bicos aqui, outros acolá.
Em 2002, inventaram que um tal "Banco da Terra" iria fazer a reforma agrária. Diziam que era só ir ao banco, mostrar os documentos, levar o técnico para ver a terra e o dinheiro para a compra seria liberado. Os trabalhadores teriam carência de três anos para pagar um valor de até R$20 mil. Marciano montou, então, uma "parceirada" junto com outras 30 famílias. Procuraram uma terra, arrumaram tudo e levaram lá o engenheiro do tal Banco da Terra para fazer a vistoria. O engenheiro prometeu que em três dias o empréstimo estaria liberado. Cada família gastou R$2.800,00 para pagar a escritura da fazenda e impostos atrasados. Após três dias, as famílias se dirigiram ao banco, mas o dinheiro não havia sido liberado. Dezenas de camponeses permaneceram na agência reclamando da demora do processo.
Durante seis meses, Marciano foi ao banco todas as semanas, mas nenhum centavo foi liberado e ele aprendeu muito bem o significado da expressão "reforma agrária".O ódio adquirido pelos latifundiários quando criança fazia arder ainda mais seu coração. Marciano sentiu que nunca mais iria confiar nas conversas de governo dos ricos. E entendeu que a sua terra iria ser conquistada na marra. Marciano não conseguia se esquecer das histórias das Ligas Camponesas que povoaram suas lembranças da infância.
Um dia Marciano, encontrou debaixo do tapete que cobria a entrada de sua casa um panfleto: "Desse governo não sai reforma agrária nenhuma. Para o povo pobre conquistar os seus direitos é necessário maior organização e luta decidida pela revolução agrária…".
Ela existe mesmo!
No domingo, alguns camponeses, acampados em um latifúndio da região, chegaram à sua casa. Marciano contou que há tempos acreditava que seria outro o caminho dos camponeses pobres e sem terra. Mas nunca se decidira ingressar numa dessas organizações, porque estavam cheios de politiqueiros. Agora, francamente, tinha "botado confiança" no argumento daqueles vizinhos.
Como estava sem trabalho, dirigiu-se ao acampamento da Liga dos Camponeses Pobres, numa segunda-feira. Gostou ainda mais do que ouviu e do que também viu. Havia uma cozinha coletiva e as famílias estavam bem organizadas. Todos estavam presentes nas discussões e, também, nas decisões. Não era gente de conversa covarde, nem falava como os bandidos. Eram palavras cheias de razão e de vida, opiniões de homens e de mulheres que viviam por suas próprias mãos, gente que não explora ninguém, e que no entanto, agora, não queria ser explorada mais.
Passou-se talvez um mês. De madrugada, Marciano estava entre as duzentas famílias camponesas que puseram abaixo as cercas de um latifúndio e ali fincaram sua bandeira de liberdade.
Antes de ali chegarem, apareceu gente que tentava desencorajar os camponeses.
Um dia, Marciano falou:
— Eu quero é a terra! Toda essa terra brasileira para o povo trabalhador. O latifúndio não tem direito a coisa alguma, não é dono de nada, porque toda essa terra foi roubada. Aqui, elas foram roubadas. Nós vamos descobrir tudo isso e os camponeses vão reaver todas essas terras. Como uma pessoa tem condição de ter 30 mil ha.? Obrigando os pais de família a vender sua terra por um preço de banana, ameaçando arruinar e matar os pobres se não as venderem, outras vezes, já expulsando, matando. E mais: para que serve milhares de hectares sem nada dentro quando milhares de trabalhadores precisam fazer brotar o fruto da terra para alimentar a si e ao povo? Por isso nós temos é que partir para a posse da terra mesmo.
Marciano fala contemplando a terra retomada pelos camponeses pobres, agora livre, com a plantação quase na hora de colher. Ainda que com todas as dificuldades, sem possuir melhores instrumentos de trabalho, algumas máquinas que sejam, ali, aonde as famílias se ajudam mutuamente na produção, o milho espalha seu loiro cabelo por todos os lados, da proximidade da vista até o horizonte. Milhares de folhas verdes anunciam o mandiocal que cresce no peito da terra. A um canto, a horta floresce como que orgulhosa.
Aquela gente não vai passar fome. E é certo que centenas de milhões de camponeses se erguerão pondo fim ao latifúndio criminoso, à ignorância, ao analfabetismo e tudo o mais que compõe as degradantes relações semifeudais.