Complexo do São Carlos: o que o conflito revela sobre atuação da polícia

Complexo São Carlos, RJ.
Foto: Mariana Gil/EMBARQ Brasil
Complexo São Carlos, RJ.

Complexo do São Carlos: o que o conflito revela sobre atuação da polícia

Na noite do dia 26 de agosto, um dos principais grupos varejistas do tráfico de drogas do Rio de Janeiro invadiu o Complexo do São Carlos, na zona central da cidade, em disputa pelo controle do território, que hoje está nas mãos de um grupo rival. O cenário de guerra durou pelo menos três dias, envolvendo os grupos delinquentes ligados ao varejo de drogas ilícitas e as forças de repressão do velho Estado, especialmente o Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar (PM).

Uma mulher foi alvejada e morta enquanto tentava proteger seu filho de 3 anos em um tiroteio, e uma família foi feita refém por um dos bandos que participou da invasão.

Não é surpreendente, todavia, que este seja o cenário cotidiano do Rio de Janeiro, uma sociedade degradada pelo desemprego massivo e por uma imensa massa de trabalhadores lançada à miséria pelo abandono dos sucessivos governos, ambiente no qual surgem e do qual se alimentam grupos delinquentes que possuem uma relação de pacto direto com o velho Estado, especialmente com as polícias.

Em junho deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu todas as operações policiais nas favelas cariocas durante a pandemia da Covid-19, sendo permitidas apenas em “casos excepcionais”. Apesar disso, a  decisão não impediu operações clandestinas, abafadas pelo monopólio de imprensa, de acontecerem, como a última incursão policial no Complexo do Alemão em agosto.

Quase duas semanas após a guerra no São Carlos, o subsecretário da Polícia Civil, Felipe Curi, em entrevista ao monopólio de imprensa Globo, afirmou que a polícia sabia da pretensão de se invadir o Complexo há pelo menos duas semanas. A justificativa dada pela polícia foi de que  nada pôde ser feito devido ao “acatamento” da decisão do STF.

Acontece que a decisão do STF não proíbe ações policiais, mas sim as operações de guerra durante a pandemia. Isso significa que, diante das provas, a ação policial não estava proibida.

Complexo São Carlos, RJ.

Complexo São Carlos, RJ.
Foto: Mariana Gil/EMBARQ Brasil 

Interesses escusos

Se a Polícia Civil tinha informações sobre a invasão com antecedência, por que não a impediram, evitando que os moradores da favela e da cidade fossem submetidos a tamanho terror e violência? Fica evidente a sua intenção de deixar que os confrontos entre facções de traficantes ocorram livremente, constrangendo o STF pela sua suspensão de operações policiais, e insuflando na opinião pública a liberação das operações policiais nas favelas e comunidades pobres.

Buscam justificar as ações de repressão da PM em favelas estratégicas para “conter” o avanço de grupos varejistas, quando na verdade não há intenção de se prevenir mortes violentas, muito menos de proteger a população ou combater o tráfico de drogas.

Basta observar que, como analisado pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF) em junho deste ano, com a suspensão das operações policiais, o número de mortes decorrentes de incursões policiais reduziu em 72,5% e o número de pessoas feridas, em 50%, o que prova a finalidade das operações policiais, que muito longe está de “combater o tráfico de drogas”, e sim, de causar terror e sufocar as massas, principalmente as mais empobrecidas das favelas cariocas.

Em dezembro de 2018, o jornal The Intercept lançou uma matéria sobre a guerra entre tais grupos no Rio de Janeiro, que acarretou no avanço de grupos paramilitares (“milícias”) e da disputa de poder entre os dois grupos que atualmente vigoram. Nos últimos anos, ficou evidente como essa reorganização dos grupos varejistas no Rio teve em seu centro o conluio da PM com os grupos paramilitares formados por policiais e militares em sua imensa maioria e com determinados grupos delinquentes, planejando operações de guerra em favelas estratégicas para sufocar uns em detrimento de outros.

Segundo uma outra matéria divulgada pelo monopólio de imprensa UOL, em 2018, somente no Brasil, mais de R$ 17 bilhões foram movimentados nesse mesmo ano com o tráfico de drogas, evidenciando se tratar de um negócio extremamente lucrativo.

Se não se planta maconha e nem coca, se não produz armamentos de guerra dentro das favelas, por que as instituições e as forças de repressão do velho Estado não prendem e nem realizam operações sangrentas nas casas luxuosas de ricaços envolvidos nos esquemas sórdidos de tráfico internacional? Quem é complacente com as movimentações por terra, mar e ar destes produtos, fingindo não ver ou saber, senão as Forças Armadas e suas forças auxiliares?

A maior parte das últimas grandes operações realizadas antes da pandemia, e em particular no ano de 2019, a mando do governador genocida Wilson Witzel, que deixaram um inestimável rastro de sangue, serviu para abrir caminho para invasões da “milícia” na zona oeste, como a Cidade de Deus, a título de exemplo.

Como já noticiado no início deste ano no AND nº 230, ficou patente a articulação de comandantes do Bope em leilões clandestinos de armas de guerra confiscadas após operações, revendendo-as para outros traficantes. Esse esquema não é novo e longe está de ser superado neste velho sistema. Se o propósito das forças policiais fosse, de fato, proteger a população, por que casos como esse, abundantes, se somam às estranhas intervenções policiais nas quais alguns grupos são beneficiados por outros? Trata-se de um conluio.

Faz-se necessário relembrar tais casos para se compreender a ação do Bope durante a invasão do Complexo do São Carlos. A predileção da corporação policial em combater mais determinado grupo em detrimento de outro a cada operação policial, não é por antagonismo de interesses e nem no propósito de “combater um a um”, mas sim, por contradições momentâneas que, para as massas, significam apenas mais guerras injustas e sofrimento, enquanto os altos comandantes vão estabelecendo seus laços com a delinquência. Perceber como os interesses do velho Estado, em especial da PM, passam longe de combater o tráfico e proteger a população, esclarece que o alastramento da milícia, composta principalmente por policiais militares, bombeiros e dissidentes de tais grupos varejistas, é a forma como o velho Estado, em suas articulações internas, tem de disputar controle territorial.

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