Entrevista: Dra. Vera Malaguti Batista
Em entrevista concedida a AND, a Dra. Vera Malaguti Batista* falou sobre a invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão pelas forças policiais, Marinha e Exército.
— Toda essa militarização é um paradigma do modelo de segurança pública. Em termos de política, técnica, é absurdo. É toda uma tecnologia, já derrotada, adotada no Iraque, Afeganistão e Palestina. Por trás disso tem também uma certa farsa, porque a guerra contra as drogas é uma guerra perdida.
O que vemos, de fato, é um tipo de controle militarizado das favelas. O combate ao tráfico é uma cortina de fumaça. A ocupação do Alemão mobilizou um aparato completamente desproporcional. Falavam de seiscentos homens armados, mas na hora mesmo da operação você via que lá tinha uma coisa parecida com Canudos, e para isso chamaram o Exército, a Marinha e as forças federais, com uma cobertura midiática de guerra, que está sendo comparada à da FoxNews feita na ocupação do Iraque.
Tudo isso está dentro da perspectiva de uma ocupação pelo capital esportivo transnacional no Rio de Janeiro. O Rio hoje é a cidade das transnacionais, em torno dos jogos olímpicos e da Copa. É essa política de contenção da pobreza de forma que os negócios esportivos transnacionais fluam sem embaraços.
A coisa mais perigosa é jogar as forças armadas nisso. Há uma grande contradição nos meios militares da Américas em utilizar as forças armadas como polícia. As forças armadas do USA jamais entram nesse tipo de aventura. Olha o exemplo do México: a entrada das forças armadas na “guerra contra o narcotráfico” foi um desastre. Como eu havia dito, as forças armadas do USA jamais entrariam nisso, mas gostariam muito que as latino-americanas entrassem. Mas o que estão fazendo é a contenção violenta das áreas de pobreza. E essa é uma guerra derrotada desde o início.
Trata-se de uma ocupação estratégica da geopolítica do USA. O povo não tem informação crítica suficiente para discernir essa política. É aí que entra o papel da cobertura midiática. A grande mídia vai inculcando essa adesão a isso. As pessoas nem têm o mínimo de informação crítica. A Folha de São Paulo até fez um certo contraponto, não sei se é uma disputa entre o PT e o PSDB, contestando porque o governo federal entrou nessa aventura. É uma policização da vida cotidiana. No dia seguinte da operação de guerra o que se tem é aquele padrão histórico da relação das polícias com o povo nas áreas pobres do Brasil, de truculência, de pilhagem, arbitrariedades. Desde Canudos e desde sempre.
Em uma outra entrevista concedida recentemente ao boletim da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fiocruz, Vera Malaguti analiza esta questão:
“O controle totalizante sobre as comunidades pobres dentro do paradigma bélico, que é um modelo muito usado pelos Estados Unidos nas ocupações que promove. E também é um modelo usado por Israel no tratamento do Estado Palestino. Isso significa que existe um atropelo das garantias, as áreas pobres ficam transformadas em territórios de exceção, onde não regem direitos e as garantias são completamente supérfluas porque trabalham com a ideologia da segurança nacional. É o que o grande jurista argentino Raúl Zaffaroni chama de direito penal do inimigo.
O governo do Rio tem a polícia que mais mata do mundo, tem toda a ideologia do confronto. Eu pensava que a política do governo federal era diferente, apesar de ter críticas a ela também. Mas agora eu percebo que as políticas estão coordenadas mesmo, o paradigma bélico é comum, inclusive com o uso das forças armadas na segurança pública, que é uma coisa muito controvertida na discussão nas escolas superiores de guerra, por exemplo. As forças armadas norte-americanas jamais entram como polícia. A não ser em casos muito especiais, como numa situação em 1993, muito pontual, e saem imediatamente. Mas eles gostariam muito que as forças armadas da América Latina entrassem nessa função porque isso faz com que desmoronem, como é o caso do México, onde essas ações das forças armadas são um fiasco completo, como é um fiasco completo a guerra contra as drogas. Mas é um fiasco em relação aos objetivos a que ela se propõe, porque na indústria da guerra ela é um espetáculo: vende tanques e armas para os dois lados.
O capitalismo é completamente alimentado pelas guerras. Se olharmos toda a história do capitalismo, a própria história dos Estados Unidos, percebemos que nas crises econômicas a guerra levanta a economia. E nós aqui estamos incorporando esse modelito, que é um modelo fracassado. Os Estados Unidos se retiraram do Iraque fracassados, estão se retirando do Afeganistão sem possibilidade de vitória, mas a indústria bélica e seus serviços são vitoriosos.”
Voltando à entrevista para AND:
—O Rio de Janeiro sempre foi um centro de resistência. Basta lembrar dos anos de 1954, 1962, 1964, etc. O Leonel Brizola chamava o Rio e seus bairros pobres de “tambor de ressonância do Brasil”.
E para o capital ocupar dessa forma, ele necessita da truculência. Isso gera um movimento, uma venda de sucata e de aparelhagem estadunidense. Esses documentos secretos que foram recentemente divulgados falam disso, da venda de material para combate ao “terrorismo”, como eles designam a Resistência Palestina, a Resistência Afegã, ou “narcoterrorismo” feita pelo USA, sucata das derrotas do imperialismo no Oriente Médio.
O discurso da imprensa tem êxito porque é uma coisa avassaladora, porque o contraponto não aparece. As vozes que são contra não aparecem e fica aquele senso comum que a gente chama de “populismo criminológico”. As pessoas não tem informação suficiente para saberem que aquilo é uma grande fraude, como operação policial ou militar. Ela não tem como ganhar essa guerra dessa maneira. A guerra é uma indústria, algo muito lucrativo. É uma guerra funcional tanto aos interesses do imperialismo, como para a neutralização das resistências no Rio de Janeiro.
Sobre esta questão Vera Malaguti também falou à EPSV – Fiocruz:
— Até hoje eu não vi nenhum morador aplaudindo, eu só vejo a mídia dizendo isso. Você viu? Porque uma cartinha, até eu mando também dizendo isso. Eu duvido que os moradores do Alemão estejam gostando dos últimos dias.
Eu estudo esta questão de drogas há 20 anos, a polícia do Rio tem matado tanto e o mercado de drogas continua. No capitalismo, alguém irá tomar esse espaço e a pergunta é: quem? A partir da leitura da matéria da Folha de São Paulo de (2/12), você começa a desconfiar de que já estão tomando. E agora colocamos as forças armadas também nisso, naquilo que o Darcy Ribeiro chamava de o moinho de gastar gente: vão botar o recruta e daqui a dez anos, o menino estará como? O Brasil, que está na guerra contra as drogas, é um dos poucos países do mundo onde o consumo de drogas aumentou. Isso não aconteceu com Portugal e Espanha, por exemplo, que descriminalizaram as drogas. Nós estamos pegando aqui a rapa das mercadorias da era Bush. No México, as forças armadas estão tomando uma corrida, porque eles conseguem fazer igual aos Estados Unidos fizeram no Afeganistão: ocupam, matam para caramba e aí? Como se faz para ficar? Ou as tropas são corrompidas ou é preciso ficar matando, matando e matando. Por exemplo, no Afeganistão, sob o regime talibã, a produção de drogas diminuiu, mas aumentou com a ocupação americana, o outro lugar foi a Colômbia, país também ocupado pelos Estados Unidos e onde a produção de drogas também aumentou. E o modelito aqui do Rio é todo copiado de lá, e tudo aparece assim como se fosse uma grande novidade. Aí vem um monte de sociólogo, faz um quadrinho, mostra que está tudo integrado e tal. Mas apreensão de droga é agulha no palheiro.”
Concluindo a entrevista ao AND:
A operação é contra o tráfico, mas não é todo o tráfico, é apenas uma das empresas [refere-se ao Comando Vermelho], o que também já é uma coisa estranha, porque parece então que as outras empresas vão ficar com esse mercado. O pessoal que concebeu essas operações conhece o capitalismo e até gosta dele, se lambuza nele. Qualquer um que tenha o mínimo de conhecimento econômico sabe como age a oferta e a demanda. Se uma empresa é arrasada as outras vão ocupar espaço. É uma coisa estranha localizar a guerra em apenas uma das empresas e principalmente aquela que tem menos contaminação com a polícia.
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* Vera Malaguti é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense, Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professora de Criminologia, da Universidade Cândido Mendes, e Secretária Geral do Instituto Carioca de Criminologia.