O israelense Chen Alon, de 40 anos, abandonou o Exército de seu país em 2002 por discordar da política de agressão contra os palestinos. Enfrentou a Corte Marcial, foi preso, mas não voltou atrás. Hoje, lidera um movimento com mais de 200 ex-combatentes que se recusaram a obedecer as ordens dos generais sionistas. Eles promovem ações diretas junto a destacamentos militares para tentar convencer mais soldados e realizam peças de teatro com o intuito de sensibilizar os civis israelenses "que nunca viram a guerra", combatendo a desumanização dos palestinos empreendida pelo Estado de Israel. A tarefa não é nada fácil, pois além do risco sempre iminente de prisão, a doutrina de violência já faz parte da cultura política sionista. "É parte do sistema de educação, o Exército é só uma continuação. Ouvimos sempre a mesma história: somos a vítima, todos odeiam judeus, o único lugar para judeus é em Israel… E que se os palestinos pudessem nos aniquilariam". Chen Alon concedeu esta entrevista em sua passagem pelo Rio de Janeiro, em julho de 2009.
A Nova Democracia – Como e por que você decidiu desobedecer?
Chen Alon – Em Israel, cada um de nós é obrigado a servir um mês por ano, não temos escolha. Publicamos nossa declaração nos jornais em janeiro de 2002. Uma declaração assinada inicialmente por 15 soldados combatentes. Na primeira semana éramos 15, na outra semana éramos 100 e na semana seguinte já estávamos em 200 soldados combatentes. Nos recusamos a servir nos territórios ocupados. Eles chamaram de golpe de Estado o que estávamos fazendo. Simplesmente nos recusamos. Mais de duzentos de nós foram presos porque nos recusamos a servir em Gaza. Apelamos para a Corte Suprema para sermos julgados pela Justiça Comum, porque na Corte Marcial você pode ficar 35 dias preso sem julgamento. Isso significa também que você pode levar testemunhas, eles devem te dar um advogado e o processo é aberto à imprensa. Eles disseram: "Vocês sabem que podem ficar três anos presos, lá". Nós dissemos: "Sim, estamos conscientes disso". Então começamos a nos preparar. Eu havia demolido uma casa nos territórios ocupados, então eu queria levar a família para testemunhar para abrir isso para a imprensa. Então eles determinaram que o caso permanecesse na Corte Marcial, porque não quiseram abrir a discussão para a mídia. Fizemos várias coisas como essa, durante três anos. O grupo é chamado "Coragem para Recusar". Vamos aos checkpoints [postos de controle], tentamos convencer outros soldados para que façam o mesmo, vamos à imprensa para contar nossas histórias – e nós todos temos muitas histórias.
AND – Você mencionou a demolição de uma casa palestina. Como foi?
CA – Eu era comandante de uma Unidade de Tanque. Mas nos territórios ocupados não importa seu papel, os soldados estão nos checkpoints e em todas as atividades de que a ocupação é feita… Naquela noite, quando demolimos, foi numa vila palestina. Sabíamos que eles iriam resistir. Então você vai preparado. Estávamos num tanque e eles atirando. Foi como um campo de guerra. A demolição foi ao final dessa batalha, vários palestinos ficaram feridos, um de nossos soldados foi atingido no tornozelo. Mesmo que muitas dessas ações sejam contra alvos civis, preparamos fogo pesado.
AND – Não. Aqui parece que é uma luta entre forças equivalentes.
CA – Olhe para a última investida de Israel em Gaza. Oito israelenses mortos, quatro deles por erro do Exército Israel. Só dois eram civis. A investida demorou três semanas. Os números não estão claros para o outro lado, mas algo entre 300 e 500 civis palestinos foram assassinados. Então os números falam por si. 500 contra 8. Israel sabe que matou 500 pessoas. O argumento de Israel é que se eles pudessem matar 500 pessoas eles teriam feito o mesmo. Eles nos aniquilariam. Esse é o discurso israelense. Se você pergunta a um garoto israelense de 18 anos, ele responde: "tenho que ir para o Exército, servir a meu país, defender minha família". Não há escolha. Se você pergunta a um palestino adolescente, ele diz: "resistir à ocupação". O que nós dizemos é: "existe outra escolha, não vá para o Exército". Vamos nos unir contra a ocupação.
CA – É parte do sistema de educação. Não começa do início quando se chega ao Exército. O Exército é uma continuação do sistema educacional. No Exército você ouve a mesma história: somos a vítima, todos odeiam judeus, o único lugar para judeus é em Israel… No Exército você escuta as mesmas histórias. Uma coisa que aprendi no Exército é que eles não querem deixar que os palestinos sintam que vivem uma vida normal. Querem que saibam que eles têm um patrão. É para que saibam quem está no controle. As crianças estão voltando da escola e eles passam com o jipe perto, para que vejam quem manda. Então, um israelense civil não entende por que uma criança palestina treme de medo quando vê um soldado israelense. Isso é a desumanização do outro. Isso acontece regularmente.
CA – A mídia que temos em Israel deve ser a mesma que vocês têm no Brasil. Eles não cobrem com isenção, fazem propaganda de apenas um lado. Durante um ataque em Gaza, fazem parecer que Israel está em uma grande guerra. Mostram israelenses correndo em pânico nas ruas, com medo… E só mostram o lado israelense. O Exército israelense não permite que nem mesmo um jornalista israelense entre em Gaza para mostrar o que está acontecendo. Os jornalistas simplesmente são impedidos de falar a verdade. Mas usamos muito as mídias alternativas para ampliar nossa mensagem, há cada vez mais, sobretudo pela internet.
AND – Você também usa o método do Teatro do Oprimido, não?
CA – Eu vim aprender a usar o Teatro do Oprimido e uso essa arma para atacar a desumanização do outro lado. Usamos o Teatro do Oprimido para permitir que israelenses entendam que não é normal matar 500 pessoas em duas semanas. Como você pode viver com isso? A essência é a desumanização. A maioria dos israelenses não entende que em Gaza há milhões de seres humanos. Tentamos entender a estratégia da ocupação encenando peças. Por que todas as vilas palestinas estão cercadas pelo Exército israelense? Por que essa política de apartheid? Como podemos mudar nossas estratégias? Checkpoints, bloqueios nas ruas, punições coletivas. Para nós, punição coletiva é um mecanismo da ocupação israelense. Mas Israel tem que ouvir as histórias de mulheres grávidas, de estudantes ou de gente que não consegue ir para a universidade, para o hospital. Os israelenses ficam em Israel, eles nunca vêem a guerra. Meus pais, por exemplo, nunca viram a guerra.
AND – Nem checkpoints?
CA – Não. Eles sabem que há 1,5 milhão de palestinos atrás das muralhas, mas nunca viram. Não há maneira de trazê-los, então usamos o Teatro do Oprimido para levar israelenses para encenar perto dos checkpoints. Nosso público são aqueles que pensam ser a favor da ocupação. Não queremos convencer os já convencidos, mas elevar o nível de alerta sobre o significado dessa ocupação. Esse é o primeiro ponto. Muitos de meus amigos em Tel Aviv não têm idéia do que seja a ocupação. Então eles precisam conhecer, precisam ver um palestino, entender sua história, saber de seus problemas.
AND – Você já teve problemas com as autoridades?
CA – Sim, pelo ativismo que fazemos sim. Sobretudo pelas ações diretas. Eles param nossos carros, tentam nos impedir… Por exemplo, fizemos uma atividade duas semanas atrás, levamos israelenses de Hebron para os postos avançados, assentamentos judeus, colocamos uma bandeira palestina e falamos: ‘vocês estão aqui ilegalmente". Eles dizem: "vocês não tem a permissão para estar aqui". Nós rebatemos: "nem vocês". Acabamos sendo presos, mas os israelenses ficam presos apenas por umas horas, no máximo um dia.
CA – Sim, claro. Quando chegamos nos checkpoints, os soldados nos falam: "Ah, vocês são judeus! Então podem seguir por essa estrada". Eu paro e digo essa frase, a mesma frase para todos: "Você acha lógico isso? Você acha democrático? Não acha racista que exista uma estrada para árabes e outras para judeus? Diga-me: você, um soldado de um país democrático, acha essa separação democrática?". Minha estratégia é também dar esperança. Quando os presidentes foram ao USA, era possível encontrar uma solução. Pra mim, um dos principais usos do Teatro do Oprimido é mostrar aos israelenses que há esperança. Não significa que todas as pessoas que votaram na direita queiram a ocupação. Tenho que dizer que Israel é muito pró-USA e muito influenciado pelo USA, mas acho que há um pouco mais de esperança hoje na paz com os palestinos. Mas não um movimento de massa como no final dos anos 70, quando milhares de pessoas tomaram as ruas contra os massacres de Sabra e Chatila. Não vemos isso hoje.
AND – Quando foi o momento da virada na sua vida?
CA – Essa é a pergunta de um milhão de dólares. Não é um momento em que você vê a luz… É um processo, eu posso dizer alguns passos do processo, um deles foi quando eu virei pai. Então eu não podia mais desumanizar as crianças palestinas. Eu lembro a diferença de quando olhava uma criança palestina antes de virar pai. Então, alguma coisa ficou diferente. A outra coisa é a parte política. Em 2000, os líderes dos dois países foram a Camp David e disseram: "Não há como resolver o problema". Eu ouvi meu primeiro ministro dizer: "Desculpe, mas vocês vão ter que viver sob ocupação pelo resto de suas vidas". Então eu disse: "Vai se foder! Não vou cooperar com isso". Porque sei que existem outras maneiras. Tive que assumir a responsabilidade, criei um movimento e tento convencer as pessoas de que elas não são obrigadas a colaborar com essa violência.