Corporativismo do século XXI na Bolívia

Corporativismo do século XXI na Bolívia

Os resultados das eleições de 6 de dezembro do ano passado na Bolívia não envolvem apenas a consolidação de um suposto "processo de mudança" no país, como costumam chamar os responsáveis pela propaganda da campanha de Evo Morales. Mostram também o sucesso de um produto de marketing político que já conseguiu se assentar (posicionar), como um consenso sobre a cena política da Bolívia.

Antes desta eleição, já se presumia a vitória eleitoral de Evo Morales, ao menos o senso comum era que seria reeleito com mais de 50% dos votos e renovaria sua permanência no governo para os próximos cinco anos. Sua máquina de propaganda e ideologia política conseguiu construir um consenso eficaz em torno dele, mantendo apenas a incógnita sobre a maioria dos assentos no Senado, bem como a obtenção de dois terços dos assentos parlamentares da Assembléia Legislativa Plurinacional da Bolívia. Praticamente, esses dois últimos temas são os únicos que se definiram nas eleições.

Desmembrando os resultados eleitorais, a nível departamental (ver Gráfico 1) pode-se ver que algumas tendências de voto foram expressadas de acordo com a localização geográfica.

Quadro Nº 1. Resultados das eleições de 2009 na Bolívia

Departamento % obtida pelo MAS Senadores do MAS Senadores da oposição Deputados do MAS Deputados da oposição
Chuquisaca 56,05 3 1 7 4
La Paz 80,28 4 0 25 4
Cochabamba 68,82 3 1 14 5
Oruro 79,46 4 0 8 1
Potosí 78,32 4 0 13 1
Tarija 51,09 2 2 5 4
Santa Cruz 40,91 2 2 10 15
Beni 37,66 2 2 4 5
Pando 44,51 2 2 2 3
Nível nacional 64,22 26 10 88 42

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do
Órgão Eleitoral Plurinacional da Bolívia. www.cne.org.bo

Nos departamentos do Altiplano (La Paz, Oruro e Potosí), houve um amplo apoio a Evo Morales e seu partido MAS, que manifestou-se pela obtenção de 100% dos assentos para os senadores nos departamentos de Valle (Cochabamba, Chuquisaca e Tarija). Reflete também uma ligeira supremacia do apoio à reeleição de Evo Morales, mas em menores proporções do que no Altiplano, um caso particular é o departamento de Tarija, onde se conformava a agora falecida "Media Luna"1. Em ambos, o colapso da oposição pela gerência de Evo Morales tem sido expressa em um empate virtual com a oposição dos departamentos de Llano (Santa Cruz, Beni e Pando).

O caminho eleitoral de Evo Morales e do MAS tem permitido a nova elite boliviana estabelecer uma hegemonia política que dificilmente pode ser perturbada por seus adversários, cujas bandeiras foram derrotadas decisivamente em setembro de 2008, nos violentos confrontos entre os partidários dos prefeitos de Pando, Beni e Santa Cruz com militantes MAS população camponesa a favor do governo.

Morales se impôs a seus adversários através de alianças com o organizações sindicais operárias e camponesas, a repetição constante de eleições, plebiscito ou consulta, bem como através de incomuns acordos com setores com os quais esteve confrontando nos últimos anos, como os membros da Unión Juvenil Cruceñista, grupo que nos últimos anos foi identificado como racista pelas próprias hostes de Morales, com determinado setor empresarial de Santa Cruz e inclusive, com membros das barras bravas2 das equipes de futebol mais populares de Santa Cruz.

No oeste da Bolívia foi organizado alianças com o camarilha dirigentes do setor de mineração, tanto mineiros assalariados como os mineiros cooperativistas, um setor sindical camponês do Altiplano Norte de La Paz, o movimento cocaleiro do Trópico de Cochabamba, entre outros, cujos representantes foram incluídos como candidatos parlamentares nas próximas eleições.

É evidente a habilidade e capacidade do partido do governo para unir forças políticas para fins eleitorais, deixando praticamente nada para os adversários, através de nítidas fórmulas corporativas envolvendo o Estado, capital e trabalho, numa reedição da linha nacionalista e populista de 1952 na Bolívia. Além disso, a popularidade do atual governo tem sido baseada principalmente na concessão de bônus assistencialistas e construção de instalações desportivas, que cria um estado de espírito populista.

O governo de Evo Morales apresentou uma série de propostas que demonstram ecletismo, ou seja, uma indefinição ideológica que transita desde um discurso antiimperialista e anti-capitalista que se acentua em épocas de campanha eleitoral, quando muitas vezes usam grandes discursos contra o imperialismo ianque, mas que geralmente arrefece fora da eleição, quando recorre a negociação de acordos comerciais bilaterais com o USA. Em outras momentos, as posturas imperialistas foram representadas por comunicações de supostas conquistas de campos de petróleo ou nacionalização de campos de mineração, que na realidade mantiveram intactas as chamadas aplicações estrangeiras, por onde entra o capital imperialista.

Além disso, esta gerência tem utilizado o discurso do socialismo XXI, que longe de ser uma articulação de medidas políticas e econômicas que afetam as linhas gerais da política e da economia da Bolívia, costumam ser posturas — talvez o mais exato, seria dizer imposturas — ou reuniões com o gerente da Venezuela, do Equador, da Nicarágua e outros países da ALBA (Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América), com o gerente iraniano ou algum representante da Síria. Nenhum dos quais têm afetado o núcleo do capitalismo burocrático na Bolívia, ou seja, o desenvolvimento do capital em meio à complexa teia entre o imperialismo e a semifeudalidade. As alianças que o MAS tem com os movimentos camponeses e operários não são alianças de classe, são apenas sociedades realizadas com cúpulas de dirigentes para fins eleitorais, mas também para neutralizar os protestos sociais no exercício de seu governo. Uma espécie de verdadeira parceria corporativa que concilie os interesses do Estado, capital e trabalho, como indicado acima, configurando adequadamente um Corporativismo do século XXI e não um 'Socialismo do século XXI'.

Outra linha discursiva da gerência de Evo Morales tem sido o populismo. Essa ação tem colocado em evidência seu pragmatismo, pois é baseado na colocação de maneira puramente simbólica de mulheres ou homens indígenas, camponeses ou operários em cargos governamentais, a fim de simular uma incorporação das massas em seu governo, mas sem poder real para intervir nas decisões mais importantes da política e da economia boliviana. Também, a pretexto de uma pretensa redistribuição de riqueza, criou uma série de bônus, isto é, toda a política assistencialista, que destaca de forma propagandística em tempos eleitorais3, vales para crianças em idade escolar, vales para mulheres grávidas e lactantes e expansão de um vale para os idosos de menos de 30 dólares por mês, que demagogicamente chamaram de "renda" e batizaram com o nome de "dignidade".

Também reciclaram o discurso da industrialização das décadas de 50 a 70 do século passado, a chamada teoria da CEPAL, simulando através de seu hábil marketing político uma nacionalização da economia, renacionalizando a empresa Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), mantendo intacto os capitais de investimento estrangeiro (Brasil, Inglaterra e Espanha, na maior parte) e nacionalizando 50% dos fundos que supostamente eram de todos os bolivianos. Foram criadas empresas estatais têxteis, de laticínios e metalurgia, mas cujo impacto sobre o mercado de trabalho e da economia nacional são irrelevantes. A política econômica boliviana continua com base nas concessões para exploração de petróleo e minerais por empresas transnacionais, apesar da nova Constituição Política do Estado, eufemisticamente falando, ter mudado o termo 'concessões' por 'direitos'. 9/10 da economia boliviana é movida pela extração de hidrocarbonetos e minerais pelas transnacionais. A nova concessão do veio de ferro de El Mutún em Santa Cruz a uma transnacional da Índia e os anúncios de novas concessões de petróleo no norte de La Paz e de lítio no sudoeste da Bolívia (Salar de Uyuni), mostram que a gerência de Evo Morales mudou um milímetro as características da espinha dorsal do capitalismo burocrático na Bolívia. Portanto, a previsão de um suposto sucesso de crescimento do PIB da Bolívia de 3,5% em 2009, em meio a um momento de recessão do capitalismo global, foi baseado no crescimento da atividade extrativa de minérios.

Por último, a estratégia eleitoral de Evo Morales e o MAS apelam para um discurso essencialista indígena, quase religioso, que tira proveito da origem camponesa e indígena de Evo Morales para reviver uma espécie de religião andina que reinventa a história, apelando ao velho discurso de Rousseau do "bom selvagem", para falar de uma comunidade harmônica entre indígenas e a natureza. Esse discurso é periférico e não tem muito peso dentro do governo, mas tem sido repetidamente utilizado para apresentar Evo Morales como anti-capitalista e defensor do planeta em fóruns da ONU, como o da Mudança Climática, por exemplo, não deixando de ser uma pose discursiva, porque a política extrativista — no que se baseia o capitalismo burocrático na Bolívia — cobra força prática e é fortemente apoiada pelo governo Morales, independentemente de qualquer show midiático .

O indubitavelmente massivo o apoio conseguido por Morales nas últimas eleições gerais, para permitir sua reeleição, de forma alguma significa o apoio a um processo de mudança, porque a chamada 'mudança' como tal é apenas uma reestruturação do Estado boliviano, mas não a sua transformação4. Na verdade, o padrão de acumulação capitalista, como já mencionado anteriormente, mantém-se inalterado, mas nota-se também que as alegadas medidas de redistribuição de riqueza na Bolívia não vão além de bônus do tipo assistencialista. Em quatro anos do gerenciamento de Morales não se avançou significativamente na melhoria das condições de vida dos pobres deste país, nem mesmo na geração de emprego. Pelo contrário, aumentou o desemprego e o emprego precário.

Conforme demonstrado, todas as supostas conquistas do governo de Morales são parte de um plano de mídia eficaz para posicionar a imagem do "primeiro presidente indígena", que tornou possível uma nova reestruturação do velho Estado boliviano para melhorar os mecanismos de acumulação capitalista na Bolívia, que se viram interferidos no ciclo de protestos sociais, entre 2000 e 2005, mas também tornou possível a mudança dos grupos de poder, cujo discurso étnico não modificará o sistema de exploração neste país, apesar dos permanentes cantos de sereia .

_________________________
Notas:

1 – "Media Luna" foi a chamada aliança de opositores ao projeto político de Evo Morales, moldada pelas elites políticas de barricadas nos comitês cívicos dos departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz e Tarija e, aleatoriamente e oscilante, este grupo tinha relações mais estreitas com os dirigentes do comitê cívico do departamento de Chuquisaca.

2 – Barras bravas são setores mais violentos de torcidas organizadas de times de futebol na América Latina. Tais setores têm influência sobre as diretorias e obtêm seu financiamento de atletas, diretores, venda de ingressos, tráfico de drogas e frequentemente são contratadas por candidatos nas eleições para serviços mafiosos.

3 – Nos últimos 5 anos, 15 processos eleitorais foram levados a cabo na Bolívia.

4 – Após as eleições, alguns porta-vozes do MAS falaram que o "velho Estado" já ficou para trás e, portanto, se está construindo um "novo Estado" na Bolívia.

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