Responsáveis diretos pelos booms sob encomenda do capital financeiro transnacional, os meios de comunicação dedicam cada vez mais tempo e espaço para as novidades no setor de cosméticos, equipamentos de fisicultura, suplementos alimentares e cirurgia plástica.
A televisão fabrica em série personagens estandardizados que entram e saem de cena sugerindo imitação de, ao menos, algumas de suas particularidades — expressões fisionômicas, gestos, indumentária, verbosidade, objetos de uso pessoal, tatuagens, porte físico. Nos intervalos comerciais, as fórmulas milagrosas de aproximação com um pormenor da personalidade-piloto: capacidade de aquisição de bens materiais de última geração, inclusive de gente, de prestígio, da compleição imitada.
Mais do que programações estúpidas, de um ambiente falto de informações e transbordante de tolices, essas redes estrangeiras de comunicação, particularmente as de TV, introduzem doutrinas meticulosamente trabalhadas nas expressões ideológicas diversas: na arte, nas ciências, na política, etc.
Sob o american way of life, coincidente com o desmantelamento do espaço público, a modelagem dos corpos é a da percepção vazia, da imagem que tenta apagar o sujeito do desejo e da ação política. A cultura do corpo, nesses termos, substitui a cultura da saúde, orgânica e mental, separa a forma da realidade, da verdadeira vida social. Neste aspecto desenvolvem-se os sintomas sociais do uso de drogas de comercialização lícita, incluindo hormônios e anabolizantes, produzindo corpos fora dos padrões da normalidade. Como se pudesse dizer: é o excesso do imoderado.
A forma física nos modelos propostos pelo aliciamento mercantilista é propositalmente nociva, confundida com felicidade e realização social, seguida, às vezes imediatamente, de imensas frustrações pelas deformidades adquiridas no processo de imitação do “biotipo”, quase sempre made in USA.
A obsessão pela aparência se tornou uma das principais causas de desequilíbrio homeostático e de ansiedade, tornando infelizes e deprimidas pessoas que atingem o “padrão de beleza” que o consumismo exigiu. Os primeiros resultados, sob uma chuva de campanhas publicitárias, não permitem, principalmente às classes mais privilegiadas (baixando até os “remediados”), perceber a inversão de valores que dizem respeito à saúde.
O negócio da aparência
“Toda mulher pode ser bonita. Bastam 15 minutos diários e 5 dólares ao ano em creme facial”, ludibriava Helena Rubinstein em 1902, ao lançar na Austrália seu Crème Valaze, produto que inaugurou o primeiro e um dos maiores impérios do setor de ornamentação e enfeite facial, consolidado a partir de 1915 quando, então, a milionária indústria da fatuidade, da ilusória aparência de saúde, fez transbordar de capitais empreendimentos semelhantes. A receita do ramo de produtos de “higiene”, cosméticos e perfumaria, no Brasil, foi de R$ 7,5 bilhões em 2002. Quase 14% mais que os R$ 6,6 bilhões de 1999.
Desde o começo dos anos 90, circula 73% mais dinheiro nesse setor no Brasil. Apenas a Avon, líder mundial em venda direta de cosméticos, teve aqui faturamento de R$ 1,9 bilhão em 2000. Com sede em Nova York e 18 fábricas em 15 países, a empresa tem faturamento líquido de U$ 5,7 bilhões ao ano.
No campo das intervenções cirúrgicas com fins estéticos, o Brasil só perdeu, em 1999, para o USA. Mesmo assim, as 5 mil cirurgias plásticas em jovens entre 15 e 25 anos, em 1994, haviam subido, em 1999, para 30 mil. O crescimento vertiginoso de 600%, na maioria das cirurgias, não representava preocupação de restaurar tecidos em decorrência de deformidades congênitas, adquiridas, mutilações, etc. Somente em 2002, ocorreram mais de 400 mil cirurgias plásticas, a ponto de cirurgiões aguardarem a aprovação do Banco Central para criarem consórcios destinados a movimentar as despesas desse tipo de processo operatório.
Relações entre peso e beleza também revelam a dimensão da histeria estética. Há vinte anos, uma top model pesava 8% menos que a média das mulheres. Hoje a diferença saltou para 25%. Em estudo recente, a pesquisadora Patricia Owen, concluiu que quase metade das mulheres que servem à Playboy e um terço das 500 modelos pesquisadas em sites de agências estavam dentro dos critérios internacionais de desnutrição e de peso perigosamente reduzido.
A condição para o sucesso
Já a historiadora Mary Del Priore resume o desatino dessa imposição cultural narcisista: “Com a tirania da perfeição física, todos querem participar da sintonia do corpo magnífico, quase atualizando a intolerante estética nazista.” Um drama de resultados terríveis.
A Organização Mundial da Saúde admite que a bulimia e a anorexia já são algumas das causas fundamentais — sem desconsiderar a fome causada pela miséria, causa principal — de morte de mulheres jovens (entre 11 e 20 anos) em todo o mundo, enquanto que, de cada dez casos, dois são fatais. Entre as doenças próprias de um mundo devotado à superficialidade, o bulímico ingere grande quantidade de comida para depois provocar o vômito, que o livrará da nutrição indesejável, enquanto o anoréxico é dominado por um medo intenso de engordar, mesmo estando extremamente magro, e por isso se submete à fome contínua. No USA, uma em cada 100 meninas é anoréxica. No Brasil, uma em cada 250.
Cada gota de sangue
São exércitos de jovens e adultos, homens e mulheres, lotando academias e clínicas de cirurgia plástica. Corpos esguios, músculos e abdomens que vão se moldando segundo os padrões pretendidos. O corpo usado — e, principalmente, ostentado — para esses fins, aparenta determinar oportunidades, chances de uma rápida ascensão social.
Acima de tudo, o corpo que veste — preparado cuidadosamente à custa de muita ginástica e dieta, aperfeiçoado por meio de modernas intervenções cirúrgicas e bioquímicas, o corpo que resume praticamente tudo o que restou do ser— é a primeira condição de realização, garante a máquina de propaganda do capital financeiro. Não porque o corpo seja a sede pulsante da vida biológica e social, pela alegria de experimentar os apetites, os impulsos, as excitações, a intensa e contínua troca que o corpo efetua com o mundo. O decisivo é que a aparência no espelho vai determinar a inclusão social, torneado à imagem e perfeição do lucro máximo.
Nesses termos, o corpo é simultaneamente o principal objeto de investimento, submetido à rigorosa disciplina da indústria da forma (enganosamente chamada de indústria da saúde) e ao que se sacrificam o tempo (que deveria ser) livre, prazeres e o que sobra das suadas economias, do vigor físico e intelectual.
Por detrás das campanhas publicitárias e toda a movimentação que enaltece o porte físico e os recursos que devem ser despendidos para assegurá-lo, vai se delineando todo um regulamento de bem-estar; uma interminável falácia religiosa sobre o trabalho, sobre a conformização com o modo de vida e a intolerância com o próximo — por coincidência, é também um assalariado, transformado em concorrente.
Mas quem é o alienado?
Proliferam as academias de ginástica e fisicultura. Em dezembro de 2003 havia mais de 7 mil registradas e, para cada uma que fecha, três são abertas.
Obviamente, o negócio deve receber um banho de vocabulário gringolófilo, também atendendo as “exigências do mercado”. Nesse ramo, tudo ocorre de maneira muito dinâmica, porque a recessão e a depressão, algumas das características do capital financeiro, acentuam a necessidade de maior investimento, de capital constante e aceleram o aparecimento infindável de novas técnicas e produtos. São lançadas continuamente muitas outras máquinas, equipamentos, marcas, kits, rações e suplementos, etc., o que obriga a reduzir os próprios prazos de renovação e inovação das mercadorias.
Nas gym centers, hoje, são encontradas as mais variadas “modalidades” de fitness, como bottom, spinnning, cardiofunk, aeroboxe, power yoga, street dance, step local hight, power ou light stretch, body pump, hidro bike, aerofight, bodybalance, bodycombat, bob class, e etc., etc.
Na área de suplementos alimentares (que a maioria consome apenas com preocupações estéticas) os números também são altos. O ramo, de quem diz haver se “transformado num setor da economia”, tem receita anual de U$ 17 bilhões no USA e de R$ 1,5 bilhão no Brasil. Ou seja, atividades e insumos, com seus suplementos à base de fat burners (para queima de gorduras), anfetaminas, compostos polivitamínicos, aminoácidos, energéticos, esteróides anabolizantes, GH (hormônio do crescimento) e outros, dos mais variados.
Numa praia carioca, escreve a pesquisadora Stéphane Malysse, as pessoas parecem “cobertas por um sobre-corpo, como uma vestimenta muscular usada sob a pele fina e esticada…”. São corpos em permanente produtividade, que trabalham a forma física ao mesmo tempo em que exibem o resultado entre os passantes. São corpos-mensagem, que falam pelos sujeitos. O rapaz “sarado”, a loira “siliconada”, a perna musculosa; ostentam seus corpos como se fossem aqueles cartazes que os homens-sanduíche carregam nas ruas do Centro da cidade: “Compra-se ouro”; “Vendem-se cartões telefônicos”.
Admitir que a vítima se deixa enganar, pura e simplesmente, que se torna alienada diante da publicidade, é perder a perspectiva histórica. As pessoas das mais diversas faixas etárias que procuram as academias para o condicionamento físico, que buscam cirurgias de correção, etc., estão absolutamente certas. Alienados e alienantes são os monopólios transnacionais, cujos interesses se limitam exclusivamente à obtenção do lucro máximo e não à satisfação das necessidades sociais. Ao contrário, esses monopólios se aproveitam das necessidades concretas e as desvirtuam. Criam, inclusive, necessidades que não existem, exceto para seguir explorando a humanidade.
O ser humano, nas mais diversas faixas etárias, necessita de todas as suas potencialidades, de tempo livre, mais do que nunca, de se desenvolver, de alimentos mais saudáveis, aumentar qualitativamente suas faculdades físicas e intelectuais, de verdadeiros seguros sociais, de dispor de clubes, sanatórios, condições de trabalho humanas, inclusive devidamente remuneradas. Necessita, numa palavra, ser dono dos grandes meios de produção e, por fim, eliminar o divórcio entre o trabalho manual e o trabalho intelectual e sair da pré-história do condicionamento físico.
A estética dos monopólios
No início do século XX, as mulheres, sob o impacto combinado das indústrias dos cosméticos, da moda, da publicidade, incorporaram de vez o uso da maquiagem em seu cotidiano. Após a Segunda Guerra Mundial, mais um momento importante foi acentuado nesse processo. A explosão publicitária “surgiu” vendendo fórmulas de sucesso, ratificadas através dos veículos audiovisuais, principalmente a televisão, que passa a disseminar, com sua rede de olimpianos modelos, padrões estéticos obtidos pelos mais diferentes produtos.
E se os primeiros passos da ditadura estética começaram a ser dados ainda na década de 20, nem mesmo as ciências biomédicas escaparam às ordens emanadas de uma variada indústria do corpo, em contínua expansão no Brasil, cujos imperativos, a pretexto de vida, felicidade e saúde conquistam mercados e mentes. O cuidado de si volta-se para o corte de despesas familiares em prol do esplendor do mercado financeiro da aparência, reforçado pelo enganoso enunciado muito difundido de que a qualidade do invólucro muscular, a textura da pele e a cor dos cabelos revelam o grau de sucesso de seus “proprietários”.
Que a beleza é parte essencial da natureza humana, e que a civilização a reverencia, todos sabem, mas só pode ser belo o que é, ou se torna, saudável — física e intelectualmente.