Tido há alguns anos como um dos mais clássicos e tradicionais do país, o futebol carioca vem enfrentando nos últimos anos uma terrível crise. E, ao contrário do que muitos pensam, o pesadelo carioca não parece dar sinais de melhoras. Todos estão se perguntando como é possível um futebol de tamanha tradição e capacidade técnica viver ameaçado. A primeira preocupação recai sobre o lado técnico, e o fato dos times cariocas sofrerem indefinidamente derrotas consecutivas e históricas para equipes de menor tradição no esporte.
É fato que a péssima administração não é um luxo exclusivo do Rio de Janeiro. Todos os clubes no país passam por dificuldades, mas como o futebol carioca esteve sempre em mais evidência é natural que suas mazelas sejam o alvo principal do monopólio dos meios de comunicação. Os clubes e a Federação estão entregues a uma casta de dirigentes representantes do que há de mais ultrapassado, incompetente e corrupto na sociedade brasileira. Podemos perceber ainda no futebol atitudes características de nepotismo, coronelismo rural e ditadura, exercida por seus dirigentes.
As diversas modernizações sofridas no mercado parecem não ter atingido o único setor onde surtiriam mais efeito. Em todo o país, clubes resistem à idéia de se tornarem profissionais porque seriam administrados como empresas — organizações socialmente responsáveis. Com os clubes deixando o amadorismo e passando ao profissionalismo, seriam obrigados a prestar contas à sociedade, aos seus acionistas e investidores. Todas as operações ilegais seriam descobertas, porque passariam, ao menos por força da lei, a apresentar um balanço contábil e demonstrações financeiras que demonstrassem suas receitas e despesas. Além disso, há a exigência de auditoria dos balanços apresentados.
Tudo pela exportação
A radiografia da administração, entretanto, seguramente revelaria uma enorme mancha escura, carregada de complicações. Dirigentes que venderam jogadores para a Europa e embolsaram o dinheiro, não teriam como explicar porque seus clubes estão sempre no prejuízo. Tudo nos leva a crer que por uma questão de interesse corporativo da classe dos dirigentes cariocas e brasileiros não se consegue implantar a modernização profissional nos clubes. Se um for desmascarado, todos os outros serão. Clubes que já passaram a se organizar como empresa, dão sinais de melhora, são os casos do Botafogo no Rio, Cruzeiro em Minas e São Paulo, na capital paulista.
Como pode o futebol que já contou com craques como Garrincha, Gérson, Rivelino, Roberto Dinamite e Zico tenha como seus atuais representantes Eduardo Vianna e Eurico Miranda? Se o futebol carioca está nessa situação tão caótica é graças a essas duas figuras bastante representativas no esporte. É importante lembrar (e mencionar) aqui as tão marcantes e desastrosa administrações de Kleber Leite, David Fischel e Mauro Ney Palmeiro. Mas, sem dúvida, os anos de crise vêm sendo motivados pelo excesso de desmandos e de poder da dupla Eduardo Vianna, presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, e Eurico Miranda, presidente do Vasco da Gama.
A influência dos dois é tão forte nos rumos do esporte no estado, que nem mesmo uma união feita entre Flamengo, Fluminense e Botafogo foram capazes de deter essa dupla. Na tentativa de acabar com o poder de Eurico e Viana, em 1994 os três clubes tiveram a idéia de realizar um campeonato regional com a participação de Atlético Mineiro, Cruzeiro, Goiás e América (RJ) sem a participação do Vasco. Esta competição substituiria o campeonato estadual e seria disputada no primeiro semestre de cada ano. Mais uma vez, por articulações feitas por Eduardo Viana, a idéia não foi adiante. O presidente da Federação fez com que os clubes rebeldes desistissem do novo torneio, prometendo ajuda na composição da tabela do próximo Estadual e outras vantagens mais. Eurico Miranda tem o temperamento explosivo e é pouco disposto a diálogo. Em sua vida como dirigente coleciona episódios curiosos, desde levar a renda de uma partida para casa e ser assaltado no trajeto até à proibição de entrada da imprensa na sede do Vasco da Gama.
Rebaixamentos dão lucro
Mesmo sabendo dos erros de planejamento, dificuldades econômicas, times enfraquecidos, campanhas desastrosas e quem são os seus responsáveis, é muito difícil indicar a origem desse ciclo vicioso do futebol carioca.
Apontado como um dos maiores responsáveis pelo rebaixamento do Botafogo, o ex-presidente do clube, Mauro Ney Palmeiro não se considera o único culpado. “A crise do Botafogo não foi só culpa minha. Houve uma sucessão de erros ao longo de 20 anos e o que vemos hoje é um acúmulo de prejuízos desse tempo todo”, afirmou.
No Fluminense, clube que chegou a ser rebaixado para a terceira divisão e que atualmente volta a ser perturbado pelo fantasma do rebaixamento, o presidente David Fischel também culpa as administrações anteriores pela crise. “É muito difícil para nós convivermos com ações trabalhistas, penhoras, etc. Passei dois meses sem receita. Não há mais orçamento. Pagamos de acordo com o que dispomos”, revela o presidente tricolor, que tem contado com o apoio de patrocinadores para reforçar a equipe.
Os números mostram que os torcedores estão se distanciando do Maracanã, com rendas e atrações em queda. Entre 1995 e 2002, a média de público anual do estádio caiu vertiginosamente. Há oito anos, a média era de 34 mil pessoas, em 2001, essa média fechou em 13 mil. Segundo dirigentes, outro fator que vem obrigando os clubes a procurar outros estádios para a realização de jogos de menor porte são as taxas caríssimas cobradas no Maracanã. O estádio comporta 80 mil pessoas e se paga com dez mil ingressos vendidos de arquibancada. Aí está o problema. Com os clubes apresentando um futebol fraco tecnicamente e sofrendo derrotas consecutivas, fica muito difícil para um torcedor ir ao estádio, pagar para ver seu time ser humilhado. O que mostra ser o problema bem mais profundo.
No atual Campeonato Brasileiro, os clubes cariocas vão de mal a pior, e a única regularidade que mostram são as derrotas. Parece que está longe de acabar a falta de profissionalismo no Rio de Janeiro. Permanece a venda de jogadores formados no clube para a Europa e a contratação de atletas tecnicamente inferiores aos que saem.
A ciranda da compra e venda no Rio de Janeiro é muito complicada. Por exemplo, o meio campo Lopes chegou como um dos principais reforços do Flamengo no início do ano, mas durante o Brasileiro já estava no Fluminense, trocado por Fernando Diniz. Paulo Miranda foi jogador do Flamengo por menos de dois meses. Uma cláusula no contrato do jogador permitia que seu clube, o Bordeaux da França, o requisitasse de volta nos primeiros 45 dias do empréstimo. E assim foi feito, apesar de o Flamengo ter pago uma comissão de R$ 150 mil a um empresário. A diretoria rubro-negra alegou que Paulo Miranda foi devolvido por não ter se adaptado ao clube e que a quantia paga estaria sendo restituída.
Talvez por sua grandeza, tudo no Flamengo tome grandes dimensões. Exemplo disso é a folha salarial. Antigos aliados do presidente rubro-negro, como Hélio Ferraz, não escondem a decepção com a falta de seriedade na gestão do futebol “profissional”. Até o Estadual, a folha de pagamento permanecia em torno dos R$ 800 mil mensais, correspondendo ao compromisso prioritário de sanear as finanças do clube. Com as derrotas e ansiedades que sempre tomam conta dos cartolas nestas situações, vieram as contratações. A folha hoje beira os R$ 1,9 milhão mensais, os salários voltaram a atrasar, telefones já foram cortados e até água faltou na sede do clube por falta de pagamento. Apenas no que diz respeito aos seus dirigentes remunerados, o Flamengo passou a pagar R$ 50 mil mensais, sem contar os salários das comissões técnicas de Nelsinho Batista e, agora, de Oswaldo de Oliveira, além dos jogadores que chegaram mais recentemente.
Mas quem lucra?
No Fluminense, nem a redução de custos impediu o atraso dos salários, já em torno de dois meses. Ano passado, a folha do clube tricolor girava em torno de R$ 1,3 milhão e hoje caiu pela metade.
Após o episódio de falta de água no Flamengo, membros da diretoria tentaram mostrar os avanços da atual administração Hélio Ferraz. O vice-presidente de finanças Luís Felipe Brandão lembrou que o clube precisa passar por uma reforma institucional para poder superar a crise financeira. Atualmente o clube tem uma receita mensal de R$ 2,95 milhões e gasta R$ 2,35 milhões — R$ 1,65 milhão com a folha de pagamento do departamento de futebol e R$ 700 mil com a folha dos funcionários do clube. Os R$ 600 mil que restam são destinados à quitação de dívidas com antigos credores, como o técnico Joel Santana (R$ 64 mil mensais), o supervisor do Vasco Isaías Tinoco (R$ 60 mil) e o ex-lateral Bruno Carvalho, a quem a diretoria ainda paga uma dívida de R$ 600 mil. Esse é um triste retrato da situação dos clubes cariocas.
Contudo, isso não acontece apenas no Rio de Janeiro. O futebol nacional vive uma terrível fase; caminha para um abismo provocado pelo capitalismo desvairado no esporte, inclusive com os ricos clubes europeus contratando atletas brasileiros antes mesmo que se tornem profissionais. Como nos demais casos, a riqueza nacional é extraída e vendida, ou até mesmo contrabandeada, sem gerar nenhum tipo de benefício para nosso país — comparável à época do pau-brasil, quando estrangeiros nos entregavam bugigangas em troca de mercadorias muito valiosas. Atualmente, os índios são representados pelos caciques que mandam nos clubes, com a diferença que os da época da descoberta não eram corruptos.
Enquanto os dirigentes vão enriquecendo, os clubes vão se degradando e torcedores chegam ao desespero. Equipes são montadas e desmontadas e ídolos trocam de camisa a todo instante. Em poucas palavras, o ex-jogador Sócrates definiu bem a situação. “Os clubes brasileiros, incapazes de vender o espetáculo, vendem os seus artistas”. O pensamento do doutor Sócrates também sugere que falta aos cartolas pensar com grandeza e inteligência. Seria lógico que o país — por possuir os melhores jogadores e uma torcida cuja paixão pelo futebol chega a beirar a loucura — estivesse constantemente revelando talentos no melhor campeonato do mundo. Mas na prática, não é isso que acontece.
A fórmula para acabar com todas essas mazelas é simples: organização, competência, transparência, equidade, respeito às regras e credibilidade. É triste reconhecer que dirigentes assim não se identificam com essas qualidades, nem revelam o menor interesse em retificar seu comportamento. Visam apenas o lucro imediato e exclusivo. Não há para eles um segundo momento, um dia depois do outro. A máfia pensa pequeno e prefere garantir o “seu”. Nas suas cabeças não há lugar para um campeonato organizado, com clubes bem administrados, uma disputa justa, o reconhecimento da população e, por fim, uma atração economicamente equilibrada para todos.
Antigamente o maior sonho dos atletas era defender a seleção brasileira. Hoje, a etapa mais podre do capitalismo impregnou o esporte, a ponto do jogador chegar à seleção exclusivamente para ficar em evidência, na vitrine, e se transferir rapidamente para o futebol estrangeiro. A seleção não representa mais o país, ela se tornou apenas mais uma equipe a serviço do interesse de dirigentes. Aquilo que deveria ser tratado como identidade e orgulho nacional vem sendo encarado como mais uma atividade qualquer, porque nossa cultura, toda ela, recebe o tratamento de coisa secundária.
No país do jeitinho brasileiro, onde a esperança é a última que morre, muitos continuarão nas arquibancadas, aguardando a recuperação de nosso orgulho e da identidade que, por tanto anos, nos trouxe o futebol.