Em abril, começou a ser julgado na Argentina o caso de 34, dos cerca de 500, bebês roubados durante o regime militar. Eles eram filhos de militantes da resistência e nasceram em cativeiro. Após o nascimento, foram apropriados por torturadores ou dados à adoção para mantê-los longe da influência “comunista”.
Oito militares são acusados na causa conhecida como “Plano sistemático de roubo de bebês”. Dentre eles, dois ex-presidentes. O julgamento é resultado de um processo movido pelas Madres de Plaza de Mayo. Estão previstos cerca de 370 depoimentos e deve durar, no mínimo, oito meses. A Associação Madres de Plaza de Mayo estima em 30 mil o número de desaparecidos, dentre eles, cerca de 500 militantes grávidas.
Nesta edição, AND entrevista Agustín Federico Cetrangolo, da agrupação “HIJOS pela identidade e justiça e contra o esquecimento e o silêncio”.
AND: Primeiramente, poderia explicar o que é HIJOS?
Agustín: Em 1993 e 1994 foram criadas as Oficinas Cortázar para trabalhar com filhos de desaparecidos. Em 1995, tivemos um encontro em Córdoba, onde HIJOS foi criado oficialmente. Na verdade, muitos já militavam na causa. A organização é criada, talvez, no momento de maior impunidade no país. Em 1995, governo de Carlos Menem, são promulgados os indultos, deixando impunes os poucos militares condenados. O principal motivo pelo qual nos juntamos é lutar contra a impunidade, pelo julgamento e castigo, por cadeia comum para os genocidas e para buscar nossos irmãos. A organização foi conformada por jovens, nesse momento: filhos de assassinados, de exilados, de desaparecidos e de ex-presos políticos. Por volta de 2001, abrimos o movimento a todos porque entendemos que todos éramos HIJOS, todos havíamos sido afetados pelo genocídio.
E como funciona a busca pelos bebês roubados?
Para cada caso é diferente. Há denúncias dizendo que a mãe nunca esteve grávida e apareceram de repente com o bebê. Então, investigamos quem são essas pessoas, se houve vinculação com os repressores, obviamente, dividindo os dados com Abuelas** e Conadi (Comissão Nacional pelo Direito à Identidade), órgão estatal encarregado da busca. Sabemos que, se um jovem nasceu durante a ditadura e está claro que seus pais não são os biológicos, é preciso ir ao Banco Nacional de Amostra Genética e comparar seu sangue com as amostras das famílias que estão buscando os bebês, que são em torno de 180 a 220 famílias. Esse banco vem se completando dia a dia, estamos falando de 500 crianças sequestradas, das quais 103 foram identificadas e há mais 400 casos, por mais que não existam todas as denúncias, já que esse número é uma estimativa. Há casos em que os filhos encontrados não querem fazer o DNA, então, é preciso entrar na justiça para que o exame seja realizado. Casos em que foram apropriados pelos próprios repressores e criados como filhos, outros em que foram mal tratados. Em cada história, são atravessadas coisas diferentes.
Houve um plano sistemático de apropriação de menores, foram montadas maternidades clandestinas, na ESMA (Escola de Mecânica da Armada), por exemplo. Lá, as militantes grávidas eram assassinadas assim que davam à luz, outras eram levadas para o local especialmente para terem seus bebês. Haviam até listas de adoção. Mas não foi implementado no país da mesma maneira. Acreditamos, por exemplo, que os bebês que procuramos em Tucumán foram todos assassinados.
Qual a importância do julgamento do Plano sistemático de apropriação de menores?
Vai permitir provar que houve um plano sistemático de apropriação de menores, mesmo que não entrem todos os casos, todos os repressores ou todos os apropriadores, porque trata 34 casos.
Vocês acreditam que havia critérios na hora de fazer a “distribuição” dos menores?
Em cada centro havia critérios diferentes. Não posso analisar a totalidade, mas muitos bebês foram apropriados por repressores. Creio que havia uma lógica de amizade e proximidade, muitas pessoas solicitavam os bebês. Poucas crianças foram devolvidas às famílias. Os próprios militares declararam que o objetivo era que os bebês não fossem criados por uma “famílias de subversivos”. Há, inclusive, militares que justificaram a apropriação como uma saída cristã!
Qual a importância do trabalho de memória realizado pelas organizações argentinas para o que está acontecendo hoje?
Queremos manter viva a memória popular, que fala sobre seus desaparecidos e reinvidica seus mártires. Essa memória começa a transcender, já não é um militante que coloca uma placa por seu companheiro desaparecido, mas o Banco da Nação fazendo uma homenagem ou um sindicato, por exemplo. Hoje, são cerca de dez centros clandestinos recuperados como centros de memória. HIJOS tem uma prática de memória desde sua criação. O trabalho que fazemos é por uma reconstrução coletiva e não individual.
Como vocês veem o desaparecimento de Julio Lopez*?
Há desaparecidos em democracia, como Luciano Arruga, mas Lopez foi desaparecido por sua militância política. Acredito que isso é obra de um grupo de pessoas que queriam amedrontar as testemunhas das causas. Nós somos ameçados em todo o país, recebemos ligações e diversos tipos de ameças. Depois de Julio Lopez, houve mais duas tentativas de sequestro e nós conseguimos que fossem recuperados.
Vocês acreditam que os julgamentos podem ser anulados como aconteceu anos atrás?
Hoje, a Argentina é um exemplo para o mundo. Recentemente, a Corte Suprema declarou que não importa o que aconteça com os governos, os julgamentos terão continuidade porque é um reclamo da sociedade. Acredito que vamos ter mais cinco ou seis anos de julgamentos, depois, precisaremos de um trabalho forte de fiscalização do cumprimento das penas.
O momento dos julgamentos é agora. Na Argentina, já começou, no Uruguay está começando e o Brasil precisa começar a responsabilizar os genocidas também. É um momento favorável. Eu sei que o Brasil tem diferenças grandes em relação à Argentina. Mas também penso que as organizações brasileiras não podem abandonar a luta por julgamento e castigo. Precisamos de justiça, julgamento e castigo para que não se repita. Não podemos conclamar os direitos humanos hoje se não pedimos justiça para os crimes da ditadura militar.
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Nota
* Júlio Lopez foi vítima do regime militar argentino, tendo sido sequestrado em 1976 e libertado em 1979. Em 2006, foi um dos querelantes em um processo que condenou Miguel Etchecolatz (Diretor de Investigações da Província de Buenos Aires na época de seu desaparecimento) a prisão perpétua. Lopez era uma testemunha chave, já que suas declarações envolviam diretamente 62 militares e policiais nos crimes do Estado argentino. Desapareceu sem deixar rastros em 18 de setembro de 2007 e, até hoje, não foi visto, alimentando forte suspeita de que tenha sido novamente sequestrado.
**Segundo elas próprias, as Abuelas de Plaza de Mayo são uma organização que tem como finalidade localizar e restituir a suas legítimas famílias todas as crianças sequestradas pela repressão política e criar as condições para que nunca mais se repita tão terrível violação dos direitos das crianças, exigindo o castigo de todos os responsáveis.