Criar pânico para melhor reprimir

Criar pânico para melhor reprimir

O sociólogo francês Loïc Wacquant notabilizou-se mundialmente por seus trabalhos sobre o paradoxo das práticas e discursos penais no esteio da Nova Ordem: remediar com polícia e penitenciária o caos econômico e social que é a própria causa da insegurança objetiva e subjetiva generalizada — do medo do assalto ao medo de ser demitido.

Em sua dobradinha com esse penalismo fascista, o papel que cabe à cobertura criminal da imprensa a serviço do capital monopolista internacional é criar clima propício a que o “mais Estado” penal possa dar conta dos refugos humanos do “menos Estado social”, não raro mediante repressões sangrentas e encarceramento em massa, levando o preso às condições infames, atrozes e ignominiosas — ou seja lançando-o a situações desprezíveis, cruéis, vergonhosas e desonrosas, dentro e fora dos cárceres.

A presença de Loïc Wacquant no Brasil, em abril de 2001, foi solenemente ignorada por jornais e emissoras de televisão. As raríssimas exceções confirmaram apenas uma regra básica do monopólio das “comunicações”: silenciar vozes que não interessam ser ouvidas.

Em declarações dadas em entrevista ao jornal laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense, o sociólogo lembrou que, afinal, nenhum integrante desse monopólio, gostaria de assistir em seu próprio telejornal — nem tampouco de ler nas páginas de seu veículo — Wacquant dizendo que o crime, hoje, tornou-se um instrumento para vender jornais e garantir audiência, utilizado pelo monopólio dos meios de comunicação de massa para difusão do pânico, gerando uma histeria que impede a análise e o debate entre as massas.

Estado criminoso pode

Porém, em 2004, a estratégia de disseminação do medo — empreendida pela tripla parceria entre o monopólio dos meios de comunicação, sistema penal e a Nova Ordem imperialista — causou constrangimento ao principal representante na “imprensa brasileira” do suporte ideológico desse modelo.

No dia 15 de novembro daquele ano o jornal O Globo (The Globe, para quem conhece melhor sua história) publicou na capa um “antes e depois” da agressão sofrida por um assaltante no interior de uma delegacia de polícia, com duas fotos, lado a lado, mostrando o homem entrando ileso e saindo com um olho inchado e roxo. No dia seguinte, a seção dedicada ao leitor foi toda ocupada por uma chuva de cartas indignadas, acusando o jornal de “defender” um bandido — que tinha sido preso em flagrante tentando assaltar um casal de turistas estrangeiros.

Diante da insatisfação dos assinantes, o jornal respondeu entrevistando representantes de entidades de “direitos humanos” e com uma chamada de capa “noticiando” que o medo da violência levava os cariocas a passarem por cima de “valores básicos do estado de direito”.

Tudo como se o próprio jornal não tivesse influência nessa reação tresloucada de uma parcela de leitores acostumada a aplaudir a violência contra os criminosos, como se o medo que emana das páginas do noticiário criminal não tivesse a ver com uma classe “média” apavorada, e como se os exemplos do discurso sedento de sangue dos criminosos não fossem abundantes no material que chega às repartições, residências e às bancas, toda manhã.

O fato demonstra que o monopólio da imprensa no Brasil tem responsabilidade determinante na elaboração de políticas criminais que seguem a lógica da propaganda da guerra de agressão (e a guerra propriamente), identificando o fora da lei — e não o FMI, por exemplo — como o inimigo público número um e, através de metáforas biológicas, considerando esse mesmo marginal parte de um corpo doente dentro do que se acredita ser uma sadia sociedade de exploração do homem pelo homem (e ainda) num país semicolonizado.

Daí a compreensão reforçada pela imprensa dominante de que a criminalidade urbana é a única e exclusiva razão da insegurança do povo, como se um mundo inseguro não fosse a tônica do próprio modelo econômico respaldado pelos editoriais dos jornais — vide depredação das legislações trabalhistas e previdenciárias, das empresas nacionais de valor estratégico, da Amazônia, dos orçamentos públicos etc., etc. Daí, também, a divisão entre “bandidos” e “homens de bem”, tão recorrente tanto no noticiário quanto em discursos de autoridades.

Direto ao pânico

Esta divisão parte do pressuposto enganoso de que o fato de estar em conflito com a lei retira do infrator sua condição de ser humano, indicando que o destino do delinquente pobre só pode ser o inferno do cárcere ou o extermínio. Isto acarreta uma relação premeditadamente confusa entre clamor público e direitos do povo, descambando para as idéias de que “bandido bom é bandido morto” e chutando para escanteio garantias constitucionais como direito à ampla defesa e um julgamento justo.

O símbolo máximo dessa produção de pavor e conseqüente apologia à justiça pelas próprias mãos é o programa Linha Direta. Em 1999, Marcos “Capeta” foi assassinado com 22 tiros por policiais baianos dias depois de o programa exibir a tosca dramatização de um crime por ele cometido. Na edição seguinte do Linha Direta, a Rede Globo comemorou o feito. Da mesma forma, o programa apadrinhou o linchamento de um homem numa delegacia em Cabo Frio, seis horas depois de ser preso. O homicídio do qual foi acusado tinha ocupado um bloco inteiro do programa, poucas horas antes de sua prisão.

Mas o vigor punitivo e a produção do medo, via cobertura criminal feita pela Globo, assume maiores proporções quando a violência urbana atinge os profissionais da própria emissora. Pode acontecer quando meninos e meninas de rua atiram pedras nos repórteres (reconhecidamente detratores de crianças e jovens pobres), ou quando o assassinato de uma atriz bem nascida serve de pretexto para uma campanha pelo endurecimento penal, culminando na ampliação do alcance da Lei de Crimes Hediondos.

Um caso exemplar aconteceu quando Tim Lopes foi descoberto por integrantes do tráfico de drogas tentando filmar um baile funk com uma câmera escondida. O diretor da Central Globo de Jornalismo, Carlos Henrique Schroeder, publicou no Jornal do Brasil um artigo revelador das diretrizes que norteiam a prática jornalística da empresa dos Marinho. Demonstrando indignação, Schroeder fez desfilar boa parte das adjetivações comumente empregadas para se referir aos “bandidos dos morros do Rio” (“bárbaros”, “criminosos”, “facínoras”) e, assim, reproduzir e reforçar o pavor, a fim de legitimar caçadas humanas.

Quando a polícia executou um integrante do grupo comandado por Elias Pereira da Silva, apelidado pela polícia de ‘Elias Maluco’, O Globo insinuou na manchete “Morre mais um matador de Tim” que a política de segurança pública defendida por sua linha editorial obedecia à Lei de Talião.

O jornalista e o invasor

Outro episódio semelhante aconteceu no contexto do referendo do desarmamento, em outubro do ano passado. Na véspera da consulta popular, os debates acalorados terminaram mal na periferia da cidade mineira de Juiz de Fora. Após discussão envolvendo o “sim” e o “não”, Fagner Silva Torres, defensor do “não”, sacou sua calibre 38 com numeração raspada e disparou três vezes contra Willian da Silva, defensor do “sim”.

O Globo alçou o episódio à notícia de primeira página de domingo de referendo, e tentou — também ele — marcar sua posição à base da bala. Na verdade, a notícia estava numa retranca em matéria intitulada Mesária do TRE sofre assalto com arma no Rio. O universo realmente conspira a favor: uma mulher que trabalharia no dia seguinte no referendo do desarmamento sofre um assalto à mão armada perto de uma zona eleitoral.

Tendo em vista que a vinheta escolhida pelo Globo para agrupar a cobertura do referendo não poderia ser mais intimidadora (“O Brasil escolhe seu futuro”), a mensagem é clara: diante dos fatos, votar no “não” equiva-leria a entregar a arma na mão do assaltante, ou desferir três balaços no peito do adversário nos bares da vida.

Mas os o nomes dos protagonistas do fato trágico, Fagner e Willian, bandido e mocinho, vieram bem a calhar para a produção de sentido do jornal. O cantor cearense entrou de cabeça na campanha pelo “não”, e o jornalista do horário nobre, 17 páginas depois, escreveu um relato sobre “os momentos de terror” vividos com sua mulher na companhia de um “monstro” que invadiu sua casa em fevereiro. Willian Bonner tentou marcar a posição da sua empresa, e a sua própria, pelas lágrimas.

Seu texto foi uma apoteose de demonização, seja quando o editor do Jornal Nacional (nacional, por quê?) tentou imaginar quantas cuecas tem o seu agressor, seja quando derramou sarcasmo em relação ao físico do homem ali armado: “É forte. Como pode? Um desesperado como ele, trabalhador mal alimentado, forte assim?”.

Após descrever o quarto do assaltante com ar-condicionado, porta-retratos com sorrisos felizes e meias em excesso, resumiu: “Luta de classes”. A única luta de classes que “homens de bem” como ele compreendem: o corpo a corpo literal com a ralé, o bem saindo no braço com o mal num closet apertado. A mesma noção de luta de classes contra o povo que orienta a linha editorial do telejornal, com produções na orientação de soluções punitivas e policialescas para os conflitos sociais.

A mesmíssima noção que orienta o jornal da empresa que, derrotado no referendo, já acenava com a possibilidade de consultas populares sobre redução da maioridade penal e a aprovação da pena de morte. Talvez uma reedição do que Marx chamou de “legislação sanguinária contra os expropriados” do século XVI, com direito a flagelação de meninos e meninas com mais de 14 anos, através da impressão de marcas nas orelhas a ferro quente, seguindo-se de enforcamento, em caso de reincidência, quando as crianças alijadas da acumulação capitalista atingiam a idade de 18 anos.

O auto-intitulado “número um” do jornalismo brasileiro terminou o texto dizendo que quando seu teto de gesso, piso de madeira e gabinete de TV estalam, o ruído é idêntico ao de uma porta de madeira empenada sendo aberta pelo “monstro”.

Para polidos e bem pagos jornalistas, é muito mais fácil acreditar em assombração do que em seres humanos com história de vida, que não aparecem diretamente do inferno por geração espontânea, e que não vivem em algum lugar entre o condomínio de luxo e a rua Jardim Botânico.

Tráfico & nova ordem

Mas a rotina de produção do medo não é exclusividade da Rede Globo — ainda que esta verdadeira trincheira ideológica da fase mais degenerada do capital financeiro em território brasileiro seja a principal incitadora do pânico através dos “meios de comunicação”.

No domingo 26 de março, a Folha de S.Paulo comparou o esquema de venda de drogas nas favelas de Manguinhos, Vigário Geral e Complexo do Turano ao funcionamento de uma pizzaria. Os traficantes locais estariam realizando uma promoção: a cada 10 cigarros de maconha ou papelotes de cocaína, um 11º grátis. Esta espécie de vale-droga garantiria a fidelidade do cliente, faria o dinheiro girar mais rápido na “boca de fumo” e permitiria o pagamento em dia nos prazos estipulados pelos fornecedores.

Dois de abril, domingo. O Jornal do Brasil publicou a manchete “As microempresas do tráfico”. A matéria falava sobre esquemas de terceirização promovidos por traficantes do Rio para compensar momentos de queda na venda de entorpecentes. A novidade envolveria aluguel de fuzis, formação de milícias para a prática de outros tipos de crime e informações privilegiadas de origem do chamado “asfalto”. Tudo respaldado por um integrante da ONG Instituto de Defesa Nacional: “Os fuzis são um bem de capital”.

Promoções, fidelidade do cliente, circulação de dinheiro, pagamentos em dia, aluguel, terceirizações. Abordar o tráfico de drogas segundo sua lógica econômica pode ser um bom ponto de partida para desmistificar certas idéias que transitam por todos os campos do pensamento político, desde o tratamento moral da questão da criminalidade à noção não menos enganosa de que os traficantes representam uma resistência ideológica.

A Folha, naquele mesmo domingo, publicou um artigo do professor de história Marcelo Freixo que pareceu dar conta dessas falácias e criminalizações que permeiam o imaginário da classe “média” e pautam a cobertura criminal da imprensa. Freixo começa o texto dizendo que “o tráfico é uma empresa capitalista das mais eficientes e completamente adaptada à realidade neoliberal que se instalou no Brasil na década de 90”.

Opiniões avulsas, porém, não desmentem os sentidos produzidos pelos noticiários; apenas respaldam a idéia de que as páginas dos jornais estão abertas a outras opiniões.

A lógica empresarial do tráfico poderia ter sido cotejada com a lógica predatória inerente ao próprio poder infinito do mercado. Mas a preferência foi pelo sentimento de escândalo diante do fato de que os princípios sagrados do livre comércio foram apropriados pelo varejo da venda de drogas nas favelas cariocas. O título sensacionalista escolhido pelo JB, “Empresários do terror”, poderia muito bem ser utilizado para se referir aos magnatas do monopólio da imprensa “brasileira”.

Diante da cotidiana demonização do tráfico de drogas e apresentação do crime como a maior ameaça existente à sociedade, não é demais lembrar das palavras do diretor da série de cinema O Poderoso Chefão, Francis Ford Copolla: “Todo big business capitalista é uma espécie de máfia”.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: