Crimes de guerra em tempos de “paz”

Crimes de guerra em tempos de “paz”

Fome programada, esterilização em massa, racismo e cobaias humanas: a política demográfica do USA e a estratégia do complexo militar-industrial contra os povos do 3º mundo.

Cartaz chinês da década de 70 homenageando a combatividade das mulheres das colônias e semicolônias

Esta história tem todos os ingredientes de uma teoria conspiratória mirabolante. Trata-se, porém, de uma conspiração real. No dia 24 de abril de 1974, o então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, enviou à cúpula de seu governo um estudo do Conselho de Segurança Nacional (NSC, pela sigla em inglês) intitulado Implications of Worldwide Population Growth for US Security and Overseas Interests (Consequências do Cres cimento da População Mundial sobre a Segurança e os Interesses Transcontinentais dos Estados Unidos).

Mais conhecido por sua sigla de arquivo (NSSM1 200) o relatório traçava uma estratégia para a redução do crescimento populacional do 3º mundo, definindo como prioritários 13 países: Brasil, Índia, Bangladesh, Paquistão, Nigéria, México, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Egito, Turquia, Colômbia e Etiópia. Praticamente sem ressalvas, foi aprovado em 26 de novembro de 1975, através do NSDM2 314 — subscrito por Brent Scowcroft, que havia substituído Kissinger na presidência do NSC.

Elaborado em segredo e mantido assim por 15 anos, o NSSM 200 veio a público em 1989. Parcialmente abandonadas na metade dos anos 80 nos marcos da aliança entre Reagan e o Vaticano, suas recomendações foram retomadas na década de 90. Os programas de esterilização química de moças pobres das prefeituras de Porto Alegre3, Cuiabá (MT) e Camaquã (RS), financiados pelo laboratório holandês Organon e pelas fundações ianques MacArthur e Summit revelam sua plena vigência — que se confirma também em âmbito internacional por acontecimentos como a esterilização forçada de 320 mil camponesas no Peru, entre 1995 e 2000.

1Como

Em 1996, a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde, realizada pela associação Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam) mostrou que 27,3% das brasileiras entre 15 e 49 anos estavam esterilizadas. Era o resultado de duas décadas de financiamento ianque à realização de laqueaduras tubárias, tendo como carro-chefe a própria Bemfam.

Atualmente, a laqueadura — realizada em geral no pós-parto, em mulheres adultas — parece estar sendo substituída pelos implantes de progesterona em adolescentes. Num caso como noutro, a desinformação é uma arma poderosa: nos anos 70, uma cartilha do governo de São Paulo dizia que a laqueadura era um procedimento reversível; hoje, a prefeitura de Porto Alegre e o Instituto Mulher Consciente (IMC), biombo do Organon, afirmam que os implantes são seguros, quando até sua bula diz o contrário.

O uso de todos os meios para reduzir a natalidade no 3º mundo é uma recomendação do NSSM 200. Com exceção de um: o estímulo à educação e ao trabalho formal das mulheres. Os redatores do documento citam uma pesquisa do Departamento de Estudos Popu lacionais da Universidade de Harvard: “Estudos recentes identificaram fatores mais específicos atuando sobre o declínio da fertilidade, especialmente a conquista do acesso à educação e o desempenho de papéis não-tradicionais pelas mulheres. Em situações de rápido crescimento populacional, no entanto, isto se choca com poderosas forças de mercado”.

A pretensão de controle
dos recursos do planeta
é o que move a política
de contenção populacional
do establishment ianque

Por obra dessas forças, não seria possível garantir o amplo acesso à escola, devendo-se descartar — para não afrontá-las — a idéia de que a natalidade poderia cair como resultado de um planejamento realizado livremente pela mulher ou casal. Ao contrário, trata-se exatamente de, a curto prazo, “reduzir a demanda por comida e serviços de saúde, educação e outros”.

“A maioria dos especialistas concorda” — prosseguem os autores do estudo — “que os gastos com serviços de planejamento familiar são, geralmente, um dos investimentos mais rentáveis nos países subdesenvolvidos”.

Mais Infiltrações

O relatório ocupa-se também da estratégia a ser empregada. “É importante evitar a aparência de coerção” — lê-se. Por isso, recomenda-se não a ação direta, mas o patrocínio a agentes internos nos países-alvo, até mesmo para evitar que o controle de natalidade seja visto como “uma forma de imperialismo econômico ou racial”.

“Devemos, principalmente, evitar a expressão ‘controle de natalidade’ e utilizar ‘planejamento familiar’ ou ‘paternidade responsável’, enfatizando o intervalo entre os filhos, a saúde da mãe e do filho e o bem-estar da família e da comunidade” — aconselham os autores do relatório.

No que se refere ao financiamento, “a assistência bilateral em matéria de população é o maior e mais invisível ‘instrumento’ para promover a política norte-americana nesta área” — continuam. No entanto, é considerado pouco recomendável que a agência responsável por essa “assistência”, a USAID, apareça. “O Fundo das Nações Unidas para Atividades de População (UNFPA) e a entidade privada International Planned Parenthood Federation (IPPF) representam os dois canais mais importantes para intermediar a ajuda que provém de organizações internacionais. Estes intermediários podem operar (…) onde os programas de assistência bilateral da Usaid não sejam atualmente aceitos”. A Bemfam é a subsidiária da IPPF no Brasil.

A infiltração imperialista nos “países-alvo” e a ação clandestina são recomendadas de maneira explícita:

“A assistência técnica e financeira, se desejada pelos países, precisa vir de outros doadores e/ou de organizações privadas e internacionais (muitas das quais recebem contribuições da USAID). O governo dos EUA pode, no entanto, realizar um acompanhamento (por exemplo, através das embaixadas) dos problemas de população desses países e programas para reduzir suas taxas de crescimento populacional”.

Outra forma de pressão é o uso dos organismos financeiros internacionais. “O Banco Mundial incluirá sistematicamente em seus principais relatórios econômicos [grifo nosso] uma análise da população como uma variável do desenvolvimento” — informa o relatório. Tanto os genocidas do Banco Mundial como o Fundo Monetário Internacional impõem a redução do crescimento populacional como condição para seus empréstimos. No limite, “programas coercitivos podem ser necessários”.

Experiências em humanos

O papel dos monopólios farmacêuticos é avaliado como fundamental para os objetivos traçados no NSSM 200. O documento diz que “deve ser expandida a pesquisa básica e avançada de métodos simples, baratos, efetivos, seguros, de longa duração e aceitáveis de controle de fertilidade” — sugerindo, ainda, o aumento das verbas destinadas pelo governo ianque ao setor.

Conquanto os autores do relatório não cheguem a recomendar expressamente a realização de experiências em populações do 3º mundo, a conjugação entre os projetos de redução da natalidade nesses países e a necessidade de encontrar métodos “baratos e seguros” faz com que, não raro, a indústria farmacêutica e a USAID tentem matar dois coelhos com uma cajadada só.

Durante os anos 70/80, foram motivo de escândalo os terríveis efeitos do Depo-Provera e do Norplant — esterilizantes subcutâneos usados em países como Bangladesh e Haiti. O Norplant é o precursor dos implantes de progesterona atualmente em uso em Porto Alegre, Cuiabá e Camaquã. O IMC, responsável por seu fornecimento, tem como finalidade prevista em seu estatuto social, “promover e/ou participar de pesquisas clínicas, envolvendo seres humanos”. Ao mesmo tempo em que são esterilizadas, as meninas que recebem o hormônio — internas de instituições para a infância e adolescência, ou moradoras de bairros paupérrimos — servem de cobaias para o Organon.

2O porquê

A pretensão de controle dos recursos do planeta — minerais, energia, alimentos — é o que move a política de contenção populacional do establishment ianque. “A importância do crescimento populacional torna-se maior por acontecer numa época em que o tamanho absoluto e as taxas de crescimento da economia global, a necessidade de terras cultiváveis, a demanda e o consumo de recursos naturais — incluindo água — , a desertificação e a poluição atingiram também níveis historicamente inéditos” — lê-se no documento. E mais adiante: “o impacto dos fatores populacionais sobre os tópicos tratados (desenvolvimento, demanda por alimentos, recursos, meio ambiente) afeta negativamente o bem-estar e o progresso de países nos quais temos interesses e, indiretamente, os interesses dos EUA”.

Os autores do NSSM 200 não deixam de notar que “o crescimento populacional também contribui para a produção através da provisão de força de mão-de-obra; na maioria dos países desenvolvidos, no entanto, o problema não é a falta, mas o excesso de braços”. Em resumo: há gente de sobra no mundo e essa sobra deve ser eliminada com vistas a evitar “ondas de fome, movimentos separatistas, massacres em aldeias, ações revolucionárias e golpes contra-revolucionários”, pois “essas condições degradam o ambiente necessário para atrair o capital estrangeiro”.

Rapina de minerais

O relatório expressa apreensão com a dependência da economia ianque em relação ao 3º mundo para o fornecimento de dez matérias-primas estratégicas: alumínio, cobre, ferro, níquel, titânio, zinco, petróleo, gás natural, estanho e chumbo.

“Sejam quais forem as medidas que se tomem para resguardar-se de uma interrupção nos fornecimentos (…), a economia norte-americana requererá grandes e crescentes quantidades de recursos minerais do exterior, especialmente dos países menos desenvolvidos. Este fato amplia o interesse dos Estados Unidos na estabilidade social, política e econômica dos países fornecedores.” — avaliam os autores do estudo.

“O rápido crescimento populacional não é, em si, um fator importante de pressão sobre os recursos não-renováveis (combustíveis fósseis e outros minerais), uma vez que a demanda por eles depende mais dos níveis de produção industrial do que do número de pessoas” — admitem. “O problema real com os recursos minerais” — explicam — “reside não na disponibilidade física, mas nos aspectos político-econômicos relativos ao acesso a eles, nos termos de exploração e troca e na divisão dos benefícios entre produtores, consumidores e governos dos países onde estão localizadas as reservas”.

Militarismo e racismo

Entretanto, nem todos os países que o NSSM 200 prioriza como alvos da política imperialista ianque de controle demográfico foram escolhidos por seu ritmo de crescimento demográfico e alguns nem mesmo por suas riquezas naturais. Pelo menos quatro deles — Brasil, Egito, Etiópia e Índia — tinham crescimento populacional menos acelerado que o da produção de alimentos. A doutrina que motiva o relatório se expressa também em preocupações de caráter marcadamente militar e cruza os limites do supremacismo étnico.

Mais uma vez, a melhor forma de afastar a impressão de que se trata de delírio conspiratório é transcrever o que diz o documento. Num tópico intitulado Israel e os países árabes, após fazer projeções de crescimento da população do Egito, seus redatores avaliam: “com Israel partindo de sua atual população de 3,3 milhões de pessoas, a disparidade entre ela e a dos Estados árabes crescerá rapidamente. Dentro de Israel, a não ser que a imigração judaica continue, a diferença entre o tamanho das populações árabe e judia irá diminuir. Junto com as animosidades tradicionais — que continuarão sendo a principal determinante do conflito árabe-israelense —, esses fatores populacionais tornarão ominosas as condições para a paz e para os interesses dos EUA na região”.

Isto ajuda a entender por que o Egito foi escolhido como alvo prioritário do NSSM 200 mesmo tendo crescimento populacional menos acelerado que o da produção alimentar; e talvez ajude a entender também por que o USA e Israel acharam de bom tom devolver o Sinai ao Egito três anos depois. O efetivo populacional é um fator de poder. Tem razão Bernard Founou Tchuigoua, do Fórum do 3º Mundo, quando lamenta que os países africanos não tenham, cada um, uns 30 milhões de habitantes4.

O USA preocupava-se também com o perfil étnico de sua própria população. “Talvez a mais importante ameaça demográfica, do ponto de vista dos EUA, seja a projeção de que a população mexicana crescerá de 50 milhões, em 1970, para mais de 130 milhões no ano 2000” — lê-se no relatório. “O número de jovens entrando no mercado de trabalho a cada ano irá expandir-se cada vez mais rápido. Essas cifras crescentes vão intensificar a pressão para a emigração legal aos EUA”.

Geopolítica dos alimentos

O terceiro aspecto envolvido é a pretensão ianque de controlar a produção e as reservas alimentares do mundo. Mais uma vez, interesses econômicos e militares se entrelaçam.

“Do ponto de vista dos EUA” — avalia a equipe de Kissinger — , “qualquer diminuição da necessidade alimentar dos países subdesenvolvidos seria claramente vantajosa”, pois “não reduziria os mercados comerciais norte-americanos para alimentos”, posto que “somente afetaria os pedidos de ajuda alimentícia e não as operações comerciais” e “favoreceria a perspectiva de se manter reservas adequadas de comida no mundo para o caso de emergências climáticas”.

Quando o NSSM 200 foi escrito, iniciava-se o processo de monopolização da agricultura. Ocorre que este processo — como lembra Samir Amin5 — expropria e exclui do sistema produtivo as populações atingidas sem que a economia mundial tenha, hoje, a mais remota condição de reabsorvê-las. Esta tendência ameaça 3 bilhões de camponeses do 3º mundo — nada menos que meia humanidade. Quando a classe dirigente ianque fala em excesso de população, é a essa população que se refere. Ela representa um estorvo para os monopólios agroindustriais que, para expandir-se, precisam despojar a população nativa de suas terras.

A equação que se coloca diante do imperialismo e das corporações do agronegócio é como fazer isso sem dar azo a uma catástrofe que ameace sua própria sobrevivência. A saída encontrada é reduzir a dimensão quantitativa da tragédia impedindo a reprodução dos atingidos — o que possibilitaria a manutenção dos atuais níveis de iniquidade a um custo menor, em números absolutos. Isto explica por que o NSSM 200, pouco depois de reconhecer que “a concentração nas vilas e cidades está crescendo muito mais rápido que a população como um todo” e avaliar que o aumento dos gastos públicos em virtude do crescimento populacional se concentra na cidade, diz que “intensos esforços são necessários para garantir o total acesso, em 1980, de informação e meios de controle de natalidade para todos os indivíduos férteis, especialmente nas áreas rurais”.

Além de constituir um dos motivos da obsessão ianque pelo controle da natalidade no 3º mundo, os alimentos são a principal arma utilizada para fazê-lo. Após destruir a agricultura dos países do 3º mundo pelo direcionamento à exportação ou pela simples concorrência desleal e torná-los dependentes de ajuda externa, o USA condicionam essa ajuda à redução do crescimento populacional.

“Estão os Estados Unidos preparados para aceitar um racionamento de alimentos para ajudar povos que não possam ou não queiram controlar o seu crescimento populacional?” — perguntam os redatores do NSSM 200, para em seguida responder: “dado que o crescimento populacional constitui o principal determinante do aumento da demanda por alimentos, a distribuição de recursos escassos deve levar em conta os passos que cada país está dando no controle da população”.

Na mesma época — conta a economista franco-estadunidense Susan George em seu livro O Mercado da Fome6 —, a CIA afirmava que a crescente escassez de cereais seria estrategicamente vantajosa para Washington, vez que lhe daria “um autêntico poder de vida e morte sobre o destino das multidões de necessitados”, e o então secretário de Agricultura do USA, Earl Butz, dizia que os alimentos eram “uma peça poderosa na nossa panóplia de instrumentos de negociação”.

Nazismo ianque

O USA não foi o primeiro a adotar tal política. Segundo conta Boris Shub7, ela foi usada pelo regime nazista da Alemanha nos países ocupados. Os nazistas — escreve Shub — tinham como preocupação central “organizar o padrão de privação alimentar dos povos da Europa, distribuindo entre eles, de acordo com seus objetivos políticos e militares, as curtas rações que sobravam depois de satisfeitas as prioridades do Reich”. Com base em suas conveniências, os alemães dividiam a população européia em “grupos bem alimentados, grupos deficientemente alimentados, grupos de famintos e grupos de mortos de fome”, como escreve Josué de Castro. A eficácia da fome como arma de guerra mede-se por um dado eloquente: o número de judeus mortos por inanição ou doenças dela resultantes foi, ainda segundo Josué de Castro, dezenas de vezes maior que o de mortos nas câmaras de gás ou fuzilados.

A comparação revela-se totalmente procedente quando lemos no NSSM 200 que o controle de natalidade “pode significar a diferença — muito grande — entre enormes tragédias de subnutrição e inanição ou apenas condições precárias crônicas”. Estas podem e devem ser mantidas e administradas, restringindo-se a preocupação do imperialismo a evitar as explosões.

Com o nazismo erigido em paradigma do mal após a derrota alemã e a revelação de suas atrocidades, comparar doutrinas e regimes políticos a ele tornou-se uma arma retórica poderosa, de uso recorrente na luta política. Mesmo ao observador mais isento e ao olhar mais desarmado, no entanto, é difícil deixar de perceber a total identidade entre a ideologia que inspira o NSSM 200 e os procedimentos receitados nele, de um lado, e os do Estado alemão sob Hitler, de outro.

A derrota militar da Alemanha em 1945 não significou o sepultamento da visão de mundo e das práticas que caracterizaram o nazismo, apenas uma corrente do imperialismo. A conjugação entre supremacismo étnico, expansionismo econômico e militarismo, bem como as políticas dela consequentes, não decorriam de qualquer peculiaridade ou aspecto anedótico existente na sociedade alemã ou na psique de seus então governantes. Trata-se de necessidades comuns a todos os imperialismos na atual etapa histórica. À exceção das usinas de extermínio ao estilo Auschwitz, tudo o que se fez na Alemanha sob o regime nazista está presente na política ianque para as suas colônias e semicolôniais, que tem o NSSM 200 como uma de suas expressões mais obscenas.

3A falácia neomalthusiana

Assim como o nazismo alemão com sua teoria do espaço vital, o imperialismo ianque considera que seus cidadãos têm direito de acesso privilegiado aos recursos naturais do planeta. Para tanto, torna-se necessário impor um rígido controle sobre os que poderiam desejar uma distribuição mais equitativa desses recursos — regulando, inclusive, o número deles. Tal concepção não poderia existir sem as doutrinas pseudocientíficas que num dado momento impulsionaram o nazismo alemão e depois passaram a inspirar a classe dirigente wasp dos Estados Unidos. A política do NSSM 200 tem como alicerce uma dessas doutrinas: o neomalthusianismo.

O economista inglês Thomas Robert Malthus (1766-1834) afirmava que o crescimento demográfico causaria fome por ocorrer em progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos aumentava em progressão aritmética. Desmentido pelos fatos ainda no século XIX, o argumento malthusiano ressurgiu em versão mais refinada na década de 1940 e ganhou força nos anos seguintes com o alto crescimento populacional observado após o fim da guerra.

“Existe pelo menos a possibilidade de que a evolução atual conduza a condições malthusianas para muitas regiões do mundo”, lê-se no NSSM 200 — talvez, a expressão mais sofisticada dessa visão. Para seus autores, o aumento do número de pessoas é culpado por tudo. O documento aponta como consequência negativa do crescimento populacional “a concentração dos recursos para o desenvolvimento na ampliação da produção alimentar para garantir a sobrevivência de uma população maior, em vez de garantir condições de vida para um menor número de pessoas.”

A reprodução dos pobres seria culpada, ainda, pelo desemprego, pela redução da poupança interna — já que um maior número de filhos amplia o gasto familiar — e pelo aumento do gasto público, em vista da necessidade de fornecer serviços de saúde e educação a um número maior de pessoas. Os autores do relatório avaliam que esses problemas “poderão refletir-se sobre os Estados Unidos” através de “esforços dos países subdesenvolvidos para conseguir melhores termos de troca por meio de maiores preços para suas exportações”.

Malthus e Lombroso

O neomalhtusianismo é uma fraude pelo simples fato de que a atual produção de alimentos é suficiente para atender um número muito maior de pessoas do que o que existe no mundo. Ainda nos anos 70, o professor Roger Ravelle, da Universidade de Harvard, calculava ser possível alimentar 50 bilhões de pessoas. A causa da fome está na distribuição dos alimentos, e não em sua produção.

Como nota Josué de Castro em sua Geopolítica da Fome, “as grandes áreas de fome endêmica no mundo são exatamente as áreas coloniais (…) dedicadas à produção de matérias primas para alimentar a indústria européia e norte-americana.” O problema não está apenas no direcionamento externo da produção, mas na própria estrutura do mercado de alimentos: “baseando sua economia em um ou dois produtos de exportação cujos preços foram sempre fixados pelas metrópoles consumidoras e tendo que importar uma infinidade de produtos industriais com preços pré-fixados pela metrópole, os povos coloniais tinham que permanecer atolados no pauperismo” — escreveu Josué ainda na década de 50, quando a desigualdade no comércio internacional era centenas de vezes menor do que hoje.

O terceiro aspecto envolvido
é a pretensão ianque de controlar
a produção e as reservas
alimentares do mundo

A estrutura agrária colonial, por sua vez, tolhe a produtividade. Susan George chama a atenção para o fato de os neomalthusianos quererem adaptar o tamanho da população à capacidade de agricultura sob o regime de exploração da terra vigente em países como Brasil e Índia, quando o problema da produção, se existe, pode e deve ser resolvido alterando-se esse regime. Ao partir do pressuposto de que as condições econômicas são imutáveis — ou, pior, que devem-se adotar medidas preventivas contra a possibilidade de pressões por sua mudança, como se faz no NSSM 200 — , agem como se uma estrutura de exploração criada pelo homem decorresse das leis da natureza.

É pertinente, neste ponto, a comparação que Josué faz entre o malthusianismo e outra doutrina pseudocientífica do século XIX, a dos lombrosianos. Ao dizer que há fome porque os famintos se reproduzem, nota ele, os malthusianos adotam a teoria do faminto-nato — análoga à teoria do criminoso nato de Lombroso —, como se tanto a fome quanto a criminalidade não fossem obra da exploração do homem pelo homem, mas da natureza.

Esta comparação é tão ou mais pertinente quando os que recebem as pechas de famintos-natos e de criminosos-natos são as mesmas pessoas. Em uma das passagens mais reveladoras de sua essência, o NSSM 200 alerta para o perigo representado pela juventude empobrecida, “mais instável, volátil (…) e inclinada à violência do que a população mais velha” e para o risco de que ela “possa ser persuadida a atacar as instituições de governo ou propriedades do establishment, ‘imperialistas’, corporações multinacionais ou outros elementos que culpem por seus problemas”.

O recrudescimento do discurso lombrosiano sobre a criminalidade e a repressão nas áreas empobrecidas de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro obedecem às mesmas preocupações que inspiram a política de contenção de nascimentos preconizada no NSSM 200. A repressão policial — dirigida cada vez mais não à criminalidade propriamente, mas à mera pobreza — e os programas de esterilização como o adotado pela prefeitura de Porto Alegre em seus bairros mais miseráveis são duas pontas de uma mesma ferradura: a da guerra movida pelo imperialismo contra os povos do 3º mundo.


1 National Security Study Memorandum.
2 National Security Decision Memorándum.
3 Ver AND 33.
4 Crise Africana — Alternativas. Lisboa, Edições Dinossauro, 1997.
5 Pobreza mundial, pauperização & acumulação de capital. Monthly Review, outubro de 2003, tradução em http://resistir.info/samir/pobreza_mundial.html.
6 Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
7 Starvation over Europe (1943), citado por Josué de Castro no clássico Geopolítica da Fome.Rio de Janeiro, Casa do Estudante do Brasil, s/d.
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