Presídios lotados, assaltos à luz do dia, rebeliões, tiroteios nas favelas, chacinas provocadas por policiais… "Violência e criminalidade", dois temas recorrentes nos monopólios dos meios de comunicação burgueses. Contudo, nada se diz a respeito do que os determina. Em geral, são apresentados (e espetacularizados) em seus resultados cotidianos, insuflados por um discurso que incita o pavor na população e não atenta para os aspectos principais: a ruína econômica do país, a entrega das riquezas às corporações estrangeiras, a exploração dos trabalhadores, o desemprego estrutural etc.
Duas estudiosas do assunto, Cecília Coimbra e Cristina Rauter, ambas do Grupo Tortura Nunca Mais, discutem a questão da violência e os interesses das classes dirigentes na promoção do atual estágio de barbárie capitalista. Elas concederam à AND uma entrevista sobre a questão da criminalidade e da violência, o modo como vêm sendo apresentadas à população, a quem interessa sua manutenção e como se encontram os presídios.
Cecília Coimbra é vice-presidente e uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais. Segundo ela, "um movimento social, não uma ONG, cuja luta é pelo resgate da memória histórica brasileira para que a gente possa entender melhor este presente, esta violação dos direitos humanos que acontece hoje".
Presa durante o período de gerenciamento militar, latifundiário e imperialista (1964-1985), Cecília conheceu na pele o significado do atual Estado e o arcabouço ideológico criado para justificar as ações coercitivas das classes exploradoras. Porém, ao contrário da superficialidade com que a questão é tratada no monopólio dos meios de comunicação, ela vai buscar as origens sociais dos crimes do Estado latifundiário e semicolonial com todo o seu conteúdo de classe.
— O quadro atual de violência e de criminalidade deve ser analisado levando-se em conta a ligação que se faz de criminalidade com pobreza. Isso acontece desde o século XIX, com as teorias racistas e eugênicas. Os juristas e médicos do início do século XX, aqui no Brasil, defendiam que o negro e o pobre eram diferentes. Tudo isso fica no imaginário: um país que passou por mais de 300 anos de escravidão não sai ileso. Até hoje, o negro, é visto como ‘coisa’, como ‘inferior’, como ‘objeto’. E o que não dizer do pobre? Então, é importante a gente atentar para como se associa, quase automaticamente, periculosidade com pobreza, criminalidade com pobreza. Você vai produzindo isso na população ao ponto em que certos segmentos sociais acham que o pobre até merece ser torturado. E quem pratica acaba achando que está fazendo pelo bem da sociedade. É a chamada ‘limpeza social’ — aponta Cecília.
Cristina Rauter, professora da pós-graduação de psicologia da UFF — Universidade Federal Fluminense—, também integrante do Tortura Nunca Mais, lembra que a criação de um clima de pânico, servindo para justificar as ações repressivas das classes dirigentes, não é novidade.
Que guerra civil?
— Quando você fala em ‘onda de criminalidade’ é algo que já se fala há muito tempo, pelo menos desde o século XIX. Eu fiz uma pesquisa que resultou no livro Criminologia e subjetividade no Brasil (Editora Revan). Analisei o discurso jurídico desde o século XIX e já se falavam coisas como: ‘o crime está aumentando assustadoramente’. São formas de controle social que começam a se estabelecer com uma roupagem cada vez mais técnica, para obter esse controle sobre a população mais empobrecida. E esse discurso do aumento da criminalidade sempre desempenhou um papel importante para justificar a polícia, a repressão policial, o aparelho judiciário, o encarceramento dos pobres — conta Cristina.
Nos canais de televisão, nos jornais e até nas conversas informais, é quase consenso que o atual estágio seja descrito como uma "guerra", ou como "guerra civil". Em recente entrevista à AND (número 23), o pesquisador Luis Mir também utiliza esses conceitos (o título de seu livro é Guerra civil – Estado e trauma): "A medicina está aí para apresentar ao país a conta médica da guerra. […] Com a guerra sendo intensificada a um grau de hecatombe humanitária, a máquina assistencial passa a ser mecanicamente um coadjuvante frio e neutro. Temos, então, uma pavorosa eugenia social. Salvar-se-ão aqueles que tiverem meios próprios para se defender da guerra (com meios próprios) e serem atendidos em casos de ferimentos ou agressões (recursos)".
Em um contexto diferente, Rui Facó, no seu Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas (5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978), também fala de "guerra civil" ao analisar o fenômeno do cangaço no Nordeste brasileiro. Em Última Fase da Guerra Civil Nordestina, oitavo capítulo do livro, o autor assim defende o uso do conceito: "Que representam esses fatos tenebrosos, esse encadeamento ininterrupto de crimes dramáticos, senão uma verdadeira guerra civil? Uma guerra civil em que uma das parcialidades é formada por simples e pobres habitantes do campo […]. Uma guerra civil gerada por uma luta de classes cujo móvel principal é a terra e cuja origem está no monopólio da terra, com seus potentados […]" (pp.187).
Cecília Coimbra e Cristina Rauter opinaram sobre o uso dos conceitos, suas implicações políticas e o quanto isso alimentaria o já inflado "clima de guerra" que justifica a repressão das classes exploradoras.
A tática de confundir
— Eu não gosto desses nomes que, às vezes, dão para esses fenômenos aqui no Brasil, chamando de ‘guerra’, ou ‘guerra civil’. Não é uma guerra civil, mas um fenômeno muito peculiar. Não é uma guerra para tomar o poder, contra um governo, não tem um objetivo político assim definido.
Esses fenômenos têm a ver com o quanto o Brasil nunca conseguiu resolver o seu problema social — opina Cristina Rauter.
— Hoje alguns historiadores, militantes políticos e filósofos trazem esse conceito de guerra civil. Há um filósofo italiano chamado Giorgio Agamben que em seu livro Estado de exceção (Editora Boitempo) diz que vivemos um grande clima de guerra perpetrado pelo Império (o USA), principalmente depois do 11 de setembro. Numa análise mais ‘macro’, acho corretíssimo esse conceito. Só que, quando a gente vai pensar nas questões da violência cotidiana, acredito que, do ponto de vista político, fica extremamente perigoso a gente trabalhar com o conceito de ‘guerra civil’. A gente tem de ver as especificidades — defende Cecília Coimbra.
Cecília continua:
— Eu pesquisei um acontecimento no Rio de Janeiro em 1994-95, que foi a entrada inicial do Exército para combater a violência, num convênio assinado com o governo do estado. O argumento era esse: ‘Vivemos numa guerra! Estamos em plena guerra civil!’. E esse tipo de discurso serve para quê? Por que se produz o medo e a insegurança? Se produz como forma de controle social. Se produziu o que eu chamei de ‘mito da guerra civil’. E esse mito, que ainda hoje está por aí, justifica medidas arbitrárias, violação de direitos. Portanto, se a gente for fazer uma análise mais micropolítica para entender a questão da violência hoje, é importante a gente ver por que esse clima de terror é produzido. Com isso você pede penas mais duras, tem repressão maior, impõe a tal da política de "tolerância zero".
Recentes rebeliões e massacres em penitenciárias e casas de custódia revelam o inferno que se tornaram (ou que sempre foram) tais instituições. O mito da recuperação e reinserção do preso à sociedade já não convence muita gente. Afinal, como reinserir alguém que, mesmo fora das grades, já estava excluído socialmente?
Legalmente, o interior das penitenciárias não deve ser administrado pela polícia. Contudo, vê-se agentes carcerários agindo como policiais, treinados como policiais. Nas rebeliões, toda revolta tem como estopim a briga entre facções rivais. Por conta disso, as autoridades argumentam ora que a repressão se justifica ora que a culpa pelos assassinatos é dos próprios presos. Assim, o Estado lava as mãos e não é responsabilizado pela falha na custódia dos detentos.
— Não é por acaso que essas pessoas [os agentes penitenciários] ganham tão mal, não tem nenhuma espécie de treinamento. E obviamente o tipo de treinamento que tem é para dizer que o outro não é humano. Na PM isso é comum. O treinamento que eles fazem com tiro, por exemplo: aquele que tem a nota maior na aula de tiro é o que atinge a cabeça e o coração, os órgão vitais. Ou seja, o policial é treinado para matar e não para impedir o sujeito de cometer um crime. Ele é treinado e aprende que o outro vale menos que ele, que o outro não é humano— argumenta Cecília.
Presídios e brutalidade
— Penitenciárias administradas pela polícia é contra a lei. Isso não mudou ainda, é regulamento penitenciário — diz Cristina Rauter — Dentro do presídio tem de ter um agente penitenciário não armado, que a função é de custódia. A função deve ser principalmente educativa, não pode ser uma função de polícia, de jeito nenhum.
Sobre a responsabilidade do Estado na custódia dos detentos, Cecília Coimbra lembra dos tempos de gerenciamento militar e constata que a situação não mudou muito:
— É inadmissível que a pessoa sob a guarda do Estado sofra o que aquelas pessoas sofreram. Uma das coisas que mais temos dificuldades de levantar são os números de torturados e de desaparecidos neste país. Porque quem faz isso é o Estado. O Estado é o que mais tortura, o que mais desaparece com as pessoas. E você não tem como provar. A negligência do Estado vem em função de você achar que essas pessoas sob sua guarda não são humanas. A gente que foi presa sabe muito como é. O combatente que eles chamavam de "terrorista", o dito "subversivo" dos anos 60/70 era tratado assim. O que aconteceu anteontem em Goiás foi um absurdo! [Refere-se à repressão ao acampamento Sonho Real, dos desabrigados de Goiânia, 16 de fevereiro último]. Com a justificativa da "invasão da propriedade privada", eles fizeram aquele absurdo! E o pior: o modo como os meios de comunicação apresentam fazem as pessoas justificarem isso. Levam a acreditar que é para o ‘bem da sociedade’. E a maioria da população engole isso. Dizem que os direitos humanos surgem com as revoluções burguesas, mas qual o direito mais sagrado para os de cima? É o da propriedade.
No meio do discurso contra as facções, reivindicações justas se perdem e todo o detento, qualquer que seja o crime, é arrolado como um não humano que merece a repressão policial ou a morte pelas mãos dos outros presos. Todas as denúncias sobre prisão arbitrária e maus tratos no confinamento são esvaziadas porque as rebeliões— afirmam as autoridades carcerárias, comandos das corporações policiais e o próprio Judiciário— são promovidas por bandos rivais. Mas será que ninguém luta pelos direitos dos presos?
Dessa vez, lembra Cristina:
— Esse discurso da recuperação do preso perdeu totalmente a força. Nos anos 70 ainda se falava disso. Hoje em dia cada vez mais só se fala de repressão, e a sociedade parece estar aceitando isso instrumentada por esse medo que ela sente. Há um quadro de descrença nas instituições, nos poderes públicos. Assim, as pessoas acreditam que precisam se vingar, tratar o preso da pior forma possível, colocar em solitária…
E Cecília completa:
— Há o Conselho da Comunidade, que, aqui, no Rio funcionava bem. Mas essa nova política penitenciária do estado está impedindo o funcionamento do Conselho, que é formado por várias entidades. É um conselho previsto pela Lei de Execuções Penais e tem algum direito, alguma autorização para fiscalizar os presídios. Eles têm feito um trabalho muito interessante e incomodado muito. Mas agora um juiz da VEP (Vara de Execuções Penais), aliado com as autoridades de segurança pública do Rio de Janeiro, disse que o presidente do Conselho da Comunidade tem de ser ele, o juiz. É uma forma de tentar desmobilizar a ação. Eles fizeram uma posse ‘só para inglês ver’ com as entidades que efetivamente pouco participam, entidades de empresários etc. As entidades de direitos humanos que efetivamente lutam, o próprio Tortura Nunca Mais e a OAB aqui do Rio de Janeiro se negaram a tomar posse. Depois dessas últimas barbaridades nos presídios do estado, eles estão tentando amordaçar o Conselho da Comunidade.