Um dos artistas mais autênticos representantes da arte verdadeiramente popular brasileira, Rolando Boldrin, tirou o Brasil da gaveta e está apresentando, pela TV Cultura de São Paulo, o Sr. Brasil, um programa em que aparecem artistas brasileiros, interpretando a mais autêntica música brasileira, de norte a sul do país. O programa revela artistas cujos trabalhos não aparecerem nos programas promovidos pelos monopólios de TV, rádio, e grandes teatros.
Artística e profissionalmente, este ‘cantadô' tem mais de quarenta anos como violeiro, compositor, cantor, ator, apresentador de TV e escritor. Boldrin — que é hoje uma feliz instituição brasileira — tem como seu trabalho favorito o de apresentador de TV, condição que lhe permite fazer aquilo que mais gosta: revelar o Brasil através da arte, mais precisamente, da música, da poesia, da literatura em geral. Atualmente, incorporou no seu trabalho mostras de peças da arte popular brasileira, produzidas por anônimos que esbanjam criatividade.
Nos anos oitenta tornou-se admirado pelo povo com o programa Som Brasil. Mesmo a mais poderosa e sisuda TV ianque — entre as que monopolizam as emissões televisivas em nosso país, a Globo —, por um bom período teve que se render ao talento de Boldrin.
Seu nome, trabalho e o tema de abertura, Vide vida marvada, de sua autoria, permaneceram intactos, inclusive na memória do povo. Praticamente os programas só mudaram de nome, independente das emissoras por onde tenha passado. Foi Empório brasileiro, na Bandeirantes em 1984; Empório Brasil, no SBT, 1989; Estação Brasil, TV Gazeta, 1997; e agora Sr. Brasil, que com menos de um ano de exibição, já ganhou o prêmio de Melhor Programa da Televisão Brasileira, conferido pela APCA – Associação Paulista de Críticos de Artes.
Filho de proletários — o pai, operário mecânico e sua mãe, uma dona de casa —, Rolando nasceu em 1936, na cidade de São Joaquim da Barra, SP. Aos dezesseis anos desembarcou na capital paulista para "tentar a vida de artista". Depois de muita "cabeçada pra cá e trombada pra lá" como diz, trabalhando como sapateiro, garçom, frentista de posto de gasolina e um ano prestando serviço militar, chegou o momento de darem uma chance ao "capiau magrela" do interior, no dizer dele próprio, pleno de humor contagiante.
O primeiro emprego foi na Rádio Tupi, em 1958. Conforme conta, ficou "mostrando os dentes" pelos corredores e fazendo de tudo um pouco, até assinar um contrato profissional para atuar como ator de rádio e TV, na hoje extinta Tupi.
Rolando não parou mais de trabalhar nessa área. Foram várias peças de tele-teatro; do teatro — participando inclusive dos Arena e Oficina, dois importantíssimos projetos brasileiros de teatros na década de sessenta —; novelas na televisão e dois filmes reconhecidos em vários festivais no Brasil e no exterior, rendendo para Rolando o prêmio de melhor ator coadjuvante, em ambos os trabalhos.
Assim, Doramundo, 1978, narra a opressão sofrida por ferroviários. Vinte anos depois o mesmo diretor do primeiro filme, João Batista de Andrade, o convidou para fazer o seu segundo trabalho no cinema, O Tronco, título homônimo do romance de Bernardo Élis, uma história passada no interior de Goiás, em 1919, narrando a disputa pelo poder entre grandes coronéis feudais. Boldrim interpretou um desses poderosos coronéis.
— Sempre fui muito envolvido emocionalmente com as coisas da minha terra, o Brasil, com a fala do homem simples, do brasileiro de todas as regiões: Norte, Sul, Leste, Oeste. Fiz esses filmes porque tratavam de assuntos brasileiros, com personagens tipicamente nacionais — declara.
— É claro que já trabalhei em peças de autores estrangeiros no teatro, como Máximo Gorki, e da mesma forma na televisão, quando atuava como ator profissional que é escalado para um espetáculo ou uma novela. Mas sempre me aprofundei mais quando se tratava de um personagem e uma história que falasse de Brasil e do seu povo — acrescenta.
— Fui o primeiro ator a fazer, na televisão, TV Tupi, o Odorico Paraguaçu, de O Bem Amado, de Dias Gomes. Era mês de junho e a prefeitura de São Paulo havia construído uma cidade colonial no Parque do Ibirapuera, para a realização das festas juninas da cidade. Então, o diretor Benjamim Catan resolveu aproveitar o cenário, onde tinham: prefeitura, fórum, delegacia, bar, e tudo que ele precisava para filmar, em tele-teatro, como se ali fosse um estúdio de televisão. Assim fizemos a primeira externa da televisão brasileira, ainda em preto e branco — revela Rolando.
Desde então
Rolando conta que desde "menino pequeno", a partir dos sete anos de idade tem se dedicado à música e mantido um grande interesse pela mais autêntica cultura popular e que não saberia explicar o que poderia fazer na vida, além disso.
— Somente, eu entre meus irmãos, nasci com esse "dom" de artista — ele é o sétimo entre doze irmãos. — Cheguei, inclusive, a formar uma dupla caipira com um deles, quando éramos garotos. Só que ele não prosseguiu, não gostava. Mas não premeditei nada. Fui trabalhando e as coisas acontecendo, sempre com um intenso envolvimento com a cultura popular de um modo geral, não só na música — conta.
— Com dez anos, já me interessava em ler Catulo da Paixão Cearense e outros poetas nacionais. Mas nunca me prendi ao regionalismo. Misturava os escritores mineiros, como Guimarães Rosa, com os nordestinos, como Catulo, que era maranhense e o poeta paraibano Zé da Luz. Assim também na música, com os ritmos: cantava um samba de Moreira da Silva, outras vezes Jorge Veiga, também uma música de Orlando Silva, ou de uma dupla caipira — continua.
— Nunca gostei de ser somente um caboclo do interior, dito caipira, que ficou gostando de música caipira somente. Eu canto e falo muito de minha terra, mas quando falo isso, não estou me referindo à região onde nasci, mas do Brasil inteiro. O caboclo da minha terra, que eu digo, é o homem brasileiro dos interiores. Gosto das coisas brasileiras de todas as partes. Isso pode parecer inexplicável para muitos, mas para mim é bem simples: costumo dizer que sou um encarregado de divulgar o Brasil para o brasileiro — acrescenta.
Esse seu modo se revela principalmente nos programas de televisão e nas músicas que já fez e gravou. Recentemente lançou, pela Intercd, um apanhado de sua carreira: uma ‘gaveta' contendo oito CDs, o que dá um total de noventa musicas e 18 declamações, intitulada Vamos Tirar o Brasil da Gaveta, onde se pode encontrar ritmos diversos, entre as modas de viola, cateretês, toadas e sambas. São composições próprias e de autores conhecidos.
— O meu trabalho é muito diversificado. Gravo um samba de Ary Barroso do mesmo jeito que uma moda de viola, Noel Rosa e também Adoniran Barbosa. Na hora de compor, é assim também: misturo tudo. Isso acontece, acredito, porque tenho um amor e um respeito pelo meu país, pelo meu povo, que ultrapassa os limites da paixão comum. Sou fanático pelo meu povo — confessa Rolando.
— No Som Brasil, por exemplo, eu estava sempre falando ‘minha terra', ‘meu país', e costumava declamar poemas que falavam do amor à terra chão, como um versinho do Catulo, que dizia que depois de Deus, era a terra o ente que ele mais amava. Tratava com tais extremos a terra, sempre boa e agradecida, que aos seus sempre implorava que quando deixasse a vida fosse enterrado de bruços, para estar sempre em soluços, beijando a terra querida — fala Rolando.
Por quase dez anos seu programa esteve fora do ar. Nesse período fez outros trabalhos, shows, mas o programa, o que mais gosta de fazer, ficou na gaveta. Já não queria prosseguir porque, acreditava, tinha feito a sua parte. Até que, de repente, como diz, resolveu tirar o Brasil da gaveta. E esse Brasil não é somente o do Som Brasil ou Sr. Brasil, mas também o Brasil país, da arte escondida pelo monopólio estrangeiro dos meios de divulgação.
O Sr. Brasil
Segundo Rolando, Sr. Brasil é um programa amplo, aberto e receptivo. Mostra os ritmos e temas regionais brasileiros que a maior parte do Brasil não tem oportunidade de conhecer. Seu grande compromisso é que tudo seja genuinamente brasileiro e bom.
— O programa foi elaborado para cantar o Brasil, sem bairrismos. Com ele, eu quis mostrar, do meu ponto de vista, que a música brasileira não é somente o samba do Rio de Janeiro, por exemplo, que eu respeito muito e também gravo. A arte brasileira consegue ser bem maior, muito mais rica. O Brasil produz muito mais que isso — diz Boldrin.
— Nós tivemos o Luis Gonzaga, que era do Nordeste, e que fez tanto sucesso nas grandes capitais, como qualquer samba de Noel Rosa. Nós temos compositores e cantores no Sul, em Goiás, no Nordeste e em toda parte do país. É isso que eu quero mostrar, não ficar preso às grandes capitais e esquecer o que tem fora delas — argumenta.
— Observo, por exemplo, que por mais aceito que seja o escritor, com todo o respeito que eu tenho a eles, que são maravilhosos, o Nelsinho Motta, o Sérgio Cabral e outros, sempre dão o enfoque para o Rio de Janeiro, como se a música brasileira estivesse somente no Rio. Assim acredito que cometem um erro — continua.
— O mesmo acontece na literatura: o enfoque fica em torno de dois ou três escritores, como se a literatura brasileira se resumisse neles, perdendo-se a noção da grandiosidade da nossa literatura, da nossa cultura popular. Falam de Guimarães Rosa, que foi mesmo maravilhoso, ou de Jorge Amado, e se esquecem que tivemos e temos grandes contistas, poetas, muitos outros escritores estupendos, espalhados pelo resto do país — fala Rolando.
— Por esse motivo, veio o título Som Brasil. Minha intenção era deixar claro que o programa mostraria o som do Brasil, na arte de uma forma geral, em toda a sua amplitude de cultura brasileira. Como não pude manter o nome Som Brasil em outra emissora, hoje é Sr. Brasil, mas o programa é o mesmo — esclarece.
O cenário Brasil
Rolando conta que a novidade que surgiu com Sr. Brasil é o cenário montado com objetos de arte feitos pelo povo, artistas anônimos. A idéia de aproveitar até o cenário para mostrar a arte brasileira em toda a sua plenitude, é antiga, e a de agora é um aprofundamento extremamente oportuno, um detalhe esplêndido da cenógrafa e também produtora do programa, Patrícia Maia.
O fato é que o programa conta com o apoio de muita gente do povo que assiste o trabalho de Boldrin. Porque, quem assiste não apenas gosta, mas se torna um sincero defensor dessa sua linha de trabalho.
— O cenário da Patrícia é montado inteiramente com esses objetos, que nós recebemos de toda parte do país. Ele é nosso, levamos para o estúdio, gravamos e depois guardamos em nosso escritório. Todos os objetos são feitos por artistas populares, até os de alguns deficientes físicos, que produzem essas obras com os pés ou com a boca. Com esse cenário o programa ficou ainda mais rico — diz Boldrin com autoridade.
— São objetos lindíssimos. Entre eles, temos um chapéu, que veio lá de Tocantins, feito de capim dourado que é belíssimo e muito usado para fazer bolsas, brincos e uma infinidade de objetos, muitas vezes vendidos na Europa, enquanto por aqui pouca gente sabe sequer que esse capim existe — explica.
— No natal passado colocamos um ‘papai Noel caboclo', que recebemos, para abrir o programa. Ao invés de chegar conduzindo um trenó, o nosso "papai Noel" vem sentado em uma canoazinha. A imagem tradicional do "papai Noel" não tem nada a ver com Brasil — relata animadamente.
— O programa é o Brasil. Então, lá dentro está o Brasil, em suas expressões culturais de vários tipos, na música, na poesia, no teatro, nas esculturas, nos objetos de arte feitos pelo povo, com muita criatividade. Alguns, produzidos com material reciclável, outros com coisas da natureza, como o coco que é usado para fazer um carro de brinquedo e o capim dourado, um capim que brilha maravilhosamente sem nenhum tratamento — acrescenta.
— O Brasil cantado, o Brasil representado, o Brasil das poesias, o Brasil dos objetos de arte, dos artistas anônimos, dos grandes nomes; é isso que eu gosto de mostrar. Vou alinhavando tudo no programa, fazendo uma colcha de retalhos, como costumo dizer — define Boldrin.
Tem mais: Boldrin e Patrícia fizeram do estúdio um palco de teatro, onde as portas ficam abertas para atores apresentarem monólogos ou encenar parte do seu espetáculo no palco do Sr. Brasil.
— Se alguém quiser apresentar uma peça, desde que tenha a ver com Brasil, é muito bem vindo. Outro dia levei o grande ator Renato Consorte para fazer um monólogo do Paulo Vansoline. Também o Tuca Andrada foi ao programa e encenou uma parte da peça que ele faz sobre a vida de Orlando Silva. Pedi para ele cantar duas músicas do espetáculo e foi maravilhoso. Se o Oscarito estivesse vivo eu o chamaria, com certeza, para se apresentar no palco do programa — fala Rolando com firmeza.
— E falando em Oscarito, não entendo porque fazem esses bonecos do Gordo e o Magro, personagens estrangeiros, para vender em lojas por aqui, enquanto temos os nossos próprios artistas, que igualmente fizeram muita gente rir. Ao invés desses bonecos , por exemplo, poderíamos encontrar um do Oscarito ou do Mazzaropi — diz Rolando.
O povo, seu território, símbolos nacionais consagrados, tudo está presente nos mais variados aspectos do programa, inclusive nas cores da bandeira nacional, usadas para compor o cenário, aparecendo, entre outros, na cortina que abre para começar o espetáculo e na imensa lua azul, ao fundo, lembrando a bola que fica no centro da bandeira brasileira.
Tem uma fala, muito especial para ele, de sua autoria, feita especialmente para o programa, que declama com um sorriso nos lábios:
— Minha terra é a criança pura, boa, inocente, é também o sofrido adolescente, ou então o jovem combativo e sonhador. Em tempo novo, redivivo, eis que o meu país se prepara em tom definitivo, para ser tratado de senhor: senhor Brasil.
O grande trunfo
Apesar de gostar muito de declamar e cantar, Boldrin deixa claro que o grande trunfo do seu programa não é a sua figura de apresentador ou ‘cantadô', mas os artistas e aquilo que é apresentado por eles.
— Na época do Som Brasil, a Globo me cobrava cantar mais, aparecer mais como o comandante do navio. Eu achava, e continuo achando, que não é assim. Acredito que a minha função é alinhavar um programa onde devo mostrar o melhor da nossa cultura. Sendo assim, não sou eu quem vai ficar aparecendo, como fazia, há anos, o apresentador Moacyr Franco, que tinha o seu programa onde só ele cantava —(risos) — A minha intenção é outra. Na verdade, é mais que uma intenção: é um projeto de vida — expõe.
Ele fica impressionado como o público entende o projeto, o seu programa. Isso aparece na imensa quantidade de correspondências que recebe todos os dias, de pessoas elogiando, dando sugestões e fazendo todo tipo de comentário a respeito do Sr. Brasil.
— A correspondência que nós recebemos hoje é três vezes mais do que no tempo da Globo. Quase todo mundo fala a mesma coisa: "Esse é o verdadeiro Brasil; isso faltava na televisão; parabéns a quem trouxe esse programa de volta", e muito mais coisas maravilhosas. Isso nos dá ânimo, estamos no caminho certo. Com a quantidade de artistas que tenho para apresentar, dá para fazer mais três programas iguais. No tempo do Som Brasil, eu ia preparando os programas de acordo com os meus conhecimentos, chamando os artistas que já conhecia, tendo que procurar outros… Atualmente, muitos deles nos procuram. Enviam DVDs, CDs, fitas, uma infinidade de materiais gravados — explica.
— Percebo também que estamos no lugar certo: na TV Cultura, que nos dá mais liberdade para trabalhar. Foi bom ter sido lançado pela Globo, porque tem uma penetração muito grande. Mas o programa agora está como se fosse um pássaro em seu habitat, o que na Globo não estaria. Costumo dizer que o passarinho posou no galho certo — acrescenta Boldrin.
Boldrin conta que vários programas têm imitado os moldes da sua criação, em diversas partes do país. Mas para ele isso é maravilhoso, porque acredita que quanto mais gente se inspirar em trabalhos como o Som Brasil, maiores serão os espaços para os artistas da música brasileira, poetas do povo, e todo tipo de artistas populares autênticos aparecerem. E também haverá mais um bom programa na televisão brasileira para o povo assistir.
Elevar o nível
Se tem uma coisa que Rolando Boldrin se preocupa é com o nível, infalível, do seu programa. Há que ser algo popular. Ter qualidade, se elevar para ser merecedor do povo brasileiro. Boldrim já foi obrigado a barrar muitos "artistas", estrelas apadrinhadas no monopólio da indústria fonográfica e televisiva. Esses, de fato, não cantam músicas verdadeiramente brasileiras, mas fazem ruídos claramente alienados, jingles, barulho colonizado, outras vezes se vestem com peças que fazem parte da cultura de subjugação nacional. Neste caso, estão incluídas as chamadas duplas sertanejas, como Chitãozinho e Xoxoró, e similares.
— O público se identifica com um programa que mostra o nosso Brasil, e dessa forma eu não posso pôr uma pessoa para cantar músicas de Paul McCartney, por exemplo, quando essas duplas sertanejas até isso fazem. E se justificam dizendo que a música é universal. Concordo: é universal, mas justamente porque dentro dessa universalidade cada povo tem a sua cultura, cada povo tem que valorizar a sua cultura — desfere sua lógica certeira.
— Músicas comerciais nunca tocaram em meus programas. Não apresento essas "músicas" de forma alguma, embora não tenha nada contra os seus intérpretes, mas contra o produto que eles vendem. Também não posso receber em meu programa um artista vestido de cowboy americano, porque estaria traindo o público que não merece isso de forma alguma — dispara firme novamente.
Novela América…
— Outro dia me encontrei em um bar, por acaso, com o Bruno, da dupla Bruno e Marrone, e expliquei exatamente isso para ele. Eu nem o conhecia pessoalmente, mas nos apresentamos e começamos a conversar. Eu disse que a imagem dele não é brasileira. É uma imagem de country americano — explica solidário Boldrin.
— Isso também ocorreu com o Sérgio Reis. Ele me cobrou por não ser chamado para cantar no meu programa. Eu então o convidei para fazer meia hora comigo, desde que ele viesse vestido normal, como anda no seu dia-a-dia. Uma camisa, uma calça; enfim, roupa normal de brasileiro, e não o visual texano que usa, para se apresentar em público,— (muitos risos) — e ele não aceitou. Ai não deu, porque não é nada contra ele — que o considero amigo e um grande intérprete, com uma voz linda, suave, e que gravou coisas importantes, e nem contra o seu visual de uma forma geral — mas contra o seu visual no programa. Não posso levar uma imagem de texano para um programa que se propõe a mostrar o Brasil. Ando com roupa normal, então não entendo porque o Sérgio Reis não pode ir vestido normal, como pessoa, como artista — fala convicto.
Segundo Rolando, essa influência cowboy, texana, — que acontece com as tais duplas sertanejas, e com alguns artistas individualmente —, é marcante nos rodeios pelo Brasil, que deixou de ser um encontro de simples caipiras.
— Em Barretos, por exemplo, onde acontece um dos mais famosos rodeios, a festa já não é brasileira, virou americana. Todo mundo vestido de faroeste, por causa da influência americana. Os peões aparecem todos de cowboys, com fivelas enormes, chapelões texanos e tudo mais. Nada característico do peão brasileiro — relata Boldrin.
— Uma vez fiz um desafio a um amigo que insistia em dizer que o peão brasileiro usa esse visual texano, em seu dia-a-dia, principalmente a camisa xadrez, típica americana. Como eu não concordo de jeito nenhum, e tenho certeza que não é verdade, o desafiei a irmos até onde poderíamos encontrar uns peões e assim constatarmos a realidade — conta.
— Sendo assim, uns amigos nos levaram até uma fazenda, onde havia cerca de uns quinze homens envolvidos em um curral, com animais, enfim, em pleno trabalho. E eu ganhei a aposta, porque não tinha um sequer com camisa xadrez. Nem com fivela, chapéu de vaqueiro ou botas de cowboy. Estavam com: camisa simples; chapéu de caipira, com abas pequenas; botinas comuns, chamadas por eles de ‘botinas de gomeira', que são aquelas que tem elástico dos lados, e calça de brim, porque muitos caipiras não usavam nem o jeans que, inclusive, invadiu mais as cidades que o campo — contiunua Boldrin, com seu imenso bom humor.
O artista combate
— Há os artistas que gravam qualquer coisa ruim, comercial, importado, porque não têm compromisso com a cultura, ou porque pensam somente no dinheiro e no sucesso. Infelizmente é assim. Mas existem também outros que resistem mesmo. Lutam em favor da música brasileira, não mudam de forma alguma e impõe seus trabalhos — afirma.
Apesar de muitos pensarem que cultura é sinônimo do que não faz sucesso, daquilo que não vende, de atividade restrita a uns poucos, Boldrin insiste que dá para viver de arte séria. Mas é preciso ser muito bom, artista de fato, dar combate, defender a arte do seu povo, defender sua gente. Ele acaba se impondo sem vender o povo e a autêntica cultura popular. Porque esse é o único caminho brasileiro. E é preciso entender que o povo procura seus artistas verdadeiros, de sua inteira confiança — e que sempre serão os melhores artistas.
— Muitos dos que resistem bravamente, não se tornando submissos para sobreviver, têm gravado de forma independente e vão à luta, distribuindo seus CDs onde se apresentam. É claro, não são conhecidos, mas entram nos espaços possíveis e vão seguindo. Aos poucos, se tornam conhecidos e, assim, eles impõem os seus trabalhos — continua.
E mesmo já aconteceu de um artista fazer um trabalho muito comercial para entrar no mercado fonográfico, onde as cifras falam mais alto. Mas, depois, mostrou a sua verdadeira identidade.
— Foi assim com a Elis: quando começou sua carreira teve que gravar disco com bolero e musiquinhas "jovens" que nada tinham a ver com a grande artista que era. Mas tão logo se firmou, ela resistiu e botou a Elis Regina para fora — recorda.
— Há os que resistem, cantando a música brasileira aqui e lá fora, porque no exterior a nossa música é respeitada. Conheço artistas que já foram umas dez vezes ao Japão cantar música brasileira. Eu mesmo assisti a um show do Milton Nascimento e um outro da Elba Ramalhado, na Europa. Maravilhosos. A Elba cantando com a casa cheia, impondo ritmos nordestinos para os que estavam lá ouvir. Foi sensacional — finaliza Rolando Boldrin.
O programa Sr. Brasil é exibido pela TV Cultura de São Paulo, todas as terças-feiras, às 22:00hs e aos domingos às 11:00hs.
Para falar com o programa: www.rolandoboldrin.com.br
Para enviar objetos de arte: Av. José Felix de Oliveira, 1148 – sala 6 – Granja Viana – Cotia – São Paulo. CEP: 06708-415
Tel/Fax: (11) 4702-9134 e 4612-4614.
Música tema do programa Sr. Brasil
Vide Vida Marvada
Autor: Rolando Boldrin
Corre um boato aqui donde eu moro
Que as mágoa que eu choro são mal ponteadas
Que no capim mascado do meu boi
A baba sempre foi santa e purificada
Diz que eu rumino desde menininho
Fraco e mirradinho a ração da estrada
Vou mastigando o mundo e ruminando
E assim vou tocando essa vida marvadaÉ que a viola fala alto no meu peito humano
E toda moda é um remédio pros meus desenganos
É que a viola fala alto no meu peito, mano
E toda mágoa é um mistério fora desse plano
Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver
Chega lá em casa pruma visitinha
Que no verso e no reverso da vida inteirinha
Há de encontrar-me no cateretêTem um ditado dito como certo
Que cavalo esperto não espanta a boiada
E quem refuga o mundo resmungando
Passará berrando essa vida marvada
Cumpadi meu que inveieceu cantando
Diz que ruminando dá pra ser feliz
Por isso eu vagueio ponteando
E assim procurando minha flor-de-liz