Cutrale x camponeses pobres – Quem são os verdadeiros criminosos?

Cutrale x camponeses pobres – Quem são os verdadeiros criminosos?

Em fevereiro, a redação de AND esteve nos municípios de Borebi, Bauru e Iaras, no interior de São Paulo, para investigar de que maneira o velho Estado vem incrementando a perseguição e criminalização do movimento camponês com a cumplicidade do monopólio dos meios de comunicação. No final de janeiro, os camponeses pobres da região foram duramente perseguidos pelo latifúndio e pela polícia, que roubou pertences de assentados e prendeu nove pessoas, entre dirigentes e camponeses dirigidos pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.


O camponês Anselmo e o coordenador Miguel Serpa,
respectivamente, são presos arbitrariamente a mando da Cutrale

Em outubro do ano passado, as câmeras de um helicóptero da Rede Globo flagraram o momento em que camponeses do assentamento Zumbi dos Palmares, nos municípios de Borebi e Iaras ocupavam a fazenda Capim, parte integrante do complexo Monções, que desde 1909 pertence à União. Nenhuma palavra, entretanto, sobre a grilagem feita pela Sucocítrico Cutrale de terras devolutas da União, tudo com o aval e incentivo do velho Estado. A Cutrale, que controla 60% da produção mundial de laranjas — uma empresa, fornecedora da Coca-Cola no Brasil, que exporta ao menos 90% da laranja colhida na região. As imagens mostravam camponeses derrubando pés de laranja da Cutrale com um trator, o que horas depois já era reproduzido nos televisores de todo o país na companhia de um discurso de criminalização da luta camponesa em geral.

A polêmica foi cada dia mais inflamada pelo monopólio dos meios de comunicação e representantes políticos do latifúndio, como Ronaldo Caiado, quando disse hipocritamente que a destruição daqueles pés de laranja “era como um trator passando por cima de cada um de nós, de toda a sociedade brasileira”. Cabe lembrar que Caiado é um dos fundadores da UDR (União Democrática Ruralista), uma organização de grandes latifundiários recrutadores de pistoleiros e representantes do agronegócio. Deputado Federal pelo DEM de Goiás, o canastrão secunda a senadora Kátia Abreu – DEM, de Tocantins, que não perde uma oportunidade para atacar o movimento camponês.

O fato é que a ocupação da Cutrale assanhou a todos os reacionários e passou a ser usada como argumento para a instalação, no Congresso, da chamada CPI do MST.

Crimes do agronegócio

Cabe lembrar que a Cutrale, de propriedade do mega-empresário do agronegócio José Luís Cutrale, juntamente com as empresas Louis Dreifus e Citrovita, são investigadas pela Polícia Federal há mais de 5 anos por prática de cartel, ilicitude que já perdura por dez anos sem punição alguma, levando a falência milhares de pequenos e médios produtores de laranja na região. Segundo o Censo Agropecuário do IBGE, entre 1996 e 2006, foram destruídos, somente no estado de São Paulo, 280 mil hectares de laranjais de propriedade de pequenos agricultores, que após a chegada da Cutrale não possuíam mais estrutura para estabelecer algum tipo de concorrência. Não obstante, a Cutrale também é investigada por manter uma subsidiária nas ilhas Cayman com fins de aumentar seu faturamento e facilitar a evasão fiscal.

Operação de guerra

Mesmo assim, o monopólio dos meios de comunicação, sob o comando da Rede Globo, iniciou, desde então, um bombardeio de mentiras contra os camponeses pobres que ocuparam a fazenda Capim, inquietando outra ferramenta das classes dominantes para a criminalização das lutas populares: o poder judiciário. Tanto que no dia 26 de janeiro desse ano 22 mandados de prisão e 30 de busca e apreensão foram expedidos contra os camponeses que participaram da ocupação. Nove deles foram cumpridos imediatamente e, para isso, um aparato de guerra foi mobilizado pela Polícia Militar de São Paulo, que agrediu e humilhou dezenas de camponeses. Na operação, ferramentas de trabalho, documentos — dentre eles certificados de posse da terra —, eletrodomésticos e outros pertences foram arbitrariamente confiscados dos camponeses, o que até o presente momento não foi devidamente justificado pelo Ministério Público de São Paulo.

— Eles entraram aqui perguntando de arma, mandando a minha mãe, que é idosa, deitar no chão. Levaram um gerador de energia e uma motosserra dizendo que era da Cutrale. Desde então estamos sem luz. Isso é uma covardia contra nós — afirmou Paulo Rogério Beraldo, de 22 anos, que vive no assentamento Loiva Lourdes.

Sete dos nove camponeses presos foram libertados graças a um habeas corpus concedido no dia 10 de fevereiro pelo desembargador Luiz Pantaleão, da 3ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

A redação de AND entrevistou um dos camponeses que foram presos na operação do dia 26 de janeiro. Anselmo Alves Villas Boas, o “Gaúcho”, de 45 anos, vive e trabalha há quase uma década no assentamento Zumbi dos Palmares e contou a nossa equipe de reportagem um pouco da história da Cutrale na região e sua relação conturbada com os camponeses pobres que lá vivem.

— A Cutrale está em uma área de 2,5 mil alqueires, que já foi constatado que é uma área pública, que além de tudo, já foi dos camponeses. Nós plantávamos tudo naquela área. Milho, amendoim, arroz, mandioca e muitos outros alimentos. Mas depois que a laranja e a cana começaram a tomar conta da região o governo deu a terra para eles. Na verdade é um grupo de mega-corporações, que está explorando a região, além da Cutrale, que já chegou aqui plantando mil pés de laranja e destruindo essa terra riquíssima para mandar suco de laranja para o Tio Sam. E os bandidos e os ladrões somos nós trabalhadores — afirma Gaúcho, referindo-se às demais gigantes do agronegócio, que ao lado da Cutrale, destroem o solo na região com a monocultura de cana-de-açúcar, pinus, eucaliptos e laranjas.


A placa indica de quem são, realmente, as terras ocupadas pela Cutrale

São elas, na parte de pinus e eucaliptos, a Duratex — de propriedade de Roberto Setubal, dono do banco Itaú — ,a Eucatex — de Paulo Maluf — e a Lwarcel Celulose. Já na produção de cana-de-açúcar são pioneiras a Usina Rio Pardo — de Antônio Abdalla e Michel Temer — e a Tecnocana. Além dessas, está a conhecida Cutrale e a Fisher, outra grande produtora de laranjas na região.

Abusos e humilhações

Anselmo conta também de que maneira os policiais militares chegaram em sua casa a mando da juíza da 1ª vara da Justiça de Lençóis Paulista, Aiello Garcia, grande inimiga dos camponeses pobres que vivem na região.

— Minha filha está em estado de choque. A polícia chegou aqui com metralhadora, colocando a arma na nossa cabeça, ameaçando nossa família. Foi um terror. Aqui ninguém é bandido, todo mundo é trabalhador. Chegaram aqui me chamando de ‘filho da puta, safado’ me mandando deitar no chão, me humilhando na frente das crianças. Chegaram a jogar gás de pimenta dentro da minha casa, com criança dentro. Eu fui detido em uma condição de preso político, porque sou um trabalhador que luta contra o latifúndio e contra as transnacionais que destroem a terra. Essa briga vai muito além de uns pés de laranja que foram derrubados. Isso tudo faz parte da luta de classes, a burguesia e o latifúndio contra os trabalhadores — conta o agricultor, que ficou 14 dias preso com seus companheiros após a prorrogação do pedido de prisão preventiva, solicitado pelo delegado Jader Biazon e acatado pela juíza Ana Lúcia no dia 30 de janeiro.

— Por que prender pessoas que já estavam à disposição da polícia, que trabalham, têm endereço fixo, são réus primários e se dispuseram a colaborar? Infelizmente, a polícia ainda tem imbuído em seu atos, resquícios da ditadura militar. Ela ainda se acha superior e no direito de constranger ou retirar direitos dos cidadãos. Não precisava. Bastaria bater na porta da casa — protesta o advogado Jorge Soriano, que representa os camponeses presos.

Gaúcho também contou a nossa redação que muitas de suas ferramentas de trabalho, como óleo diesel e fertilizantes foram roubados pelos policiais sem explicação alguma. Segundo ele, até mesmo um computador foi levado da casa de uma de suas companheiras assentadas.

— Sem contar com o material nosso que eles mostraram para a mídia dizendo que nós roubamos da Cutrale. Na verdade, aquele material eles que roubaram da gente. Chegaram aqui, pegaram tambor de diesel, fertilizante, material que a gente usa há anos e levaram dizendo que foi roubado da Cutrale. Quando a gente fala que é nosso, eles pedem nota fiscal. Quem é que guarda nota fiscal de tudo que compra? E agora só devolvem no final do inquérito, depois que já foi tudo apresentado para a mídia, depois que já estamos com imagem de ladrões, depois que o movimento já foi criminalizado. Aí eles devolvem. Isso é um verdadeiro teatro. Levaram óleo diesel, uréia, sulfato de amônia. Que agricultor que não tem um saco de uréia? Levaram até o computador de uma coordenadora do assentamento dizendo que ela tinha roubado da Cutrale. Uma máquina, que foi comprada com muito custo para ajudar na organização dos camponeses, foi roubada de nós pela polícia. Camponeses de Rio Preto, que vieram para cá trabalhar na terra, perderam todo o seu material. Isso tudo para caracterizar quadrilha e nos criminalizar — explica o agricultor na presença de sua família.

Mentiras e mais mentiras

Como se não fosse o bastante, o monopólio dos meios de comunicação exibiu repetidas vezes, desde outubro de 2009, imagens de mais de 20 tratores destruídos na fazenda Capim após a saída dos camponeses que participaram da ocupação. Nas reportagens, os agricultores eram acusados de atacar os veículos, que segundo Anselmo, estavam, há tempos, naquele estado.

— Os tratores, que mostraram na TV dizendo que fomos nós que quebramos já estavam há muito tempo na terra da Cutrale destruídos. Os camponeses aqui do assentamento que trabalham na Cutrale são testemunhas de que já estava tudo quebrado. É muita mentira que está sendo divulgada — lamenta o Gaúcho, lembrando que a ocupação dos camponeses à fazenda Capim, interpretada como um excesso pelo monopólio dos meios de comunicação, não foi nada além de uma justa manifestação contra a grilagem de terras públicas por empresas imperialistas, como a Cutrale.

Mesmo assim — por determinação da juíza Ana Lúcia Graça Lima Aiello — no dia 11 de fevereiro, a 1ª Vara Criminal de Lençóis Paulistas começou a notificar 22 camponeses, acusados pelo Ministério Público de invadir e depredar equipamentos e pés de laranja da Cutrale nas terras da União. Já os 9 camponeses que foram presos, além dessas acusações, também   estão sendo denunciados por furtar equipamentos da fazenda, incriminação que nossa reportagem comprovou tratar-se de uma farsa.

— Depois das prisões ilegais, que, segundo o TJ, não poderiam ter sido feitas, uma vez que sequer existia denúncia, precisamos ficar atentos — disse o advogado da Rede de Justiça e Direitos Humanos, Aton Fon Filho, que defende os camponeses.

No Sul do país, planejar ocupação é crime hediondo

No dia 29 de janeiro, camponeses ligados ao MST foram arbitrariamente detidos no município de Imbituba, Santa Catarina, quando realizavam uma reunião. Eles são acusados de estar preparando a ocupação de áreas da Zona de Processamento e Exportações e do Banco Nacional de Desenvolvimento, ambas pertencentes à União.

Ilegalmente, o MP de Santa Catarina, o juiz Welton Rubenich — que emitiu os mandados de prisão — e a Polícia Militar local — sob o comando do major Evaldo Hoffmann — passaram dois meses investigando os camponeses — inclusive com uso de escutas telefônicas. Foi quando, no dia em que os agricultores realizavam uma reunião, a força-tarefa da PM chegou de surpresa humilhando e revistando a todos. Para atacar os camponeses, o Ministério Público de Santa Catarina acusou-os de um novo crime: planejar invasão, enquadrando-os por incitar a violência e constituir quadrilha.

Dentre os presos está o coordenador do MST em Santa Catarina, Altair Lavratti. Além da presidente da Associação Comunitária Rural de Imbituba, Marlene Borges, que está grávida de três meses, e Rui Fernando da Silva Júnior, líder comunitário ligado ao MST. Dois dias depois, todos ganharam liberdade provisória, mas continuam sendo arbitrariamente investigados.

— A investigação e as prisões pela PM configuram atos ilegais, perseguição política e criminalização dos movimentos sociais — disse Altair Lavratti.

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