De Babel a Saddam

De Babel a Saddam

A Torre de Babel, um edifício escalonado de sete andares, surgiu na Babilônia como um eixo de ligação entre o Céu e a Terra. Seus tijolos haviam sido embebidos em óleo perfumado. Era um santuário cujos ritos de ambulatórios ascendentes levavam o povo e o sacerdócio a subir pelas rampas onde vicejavam jardins, numa metáfora do retorno da humanidade à sua origem cósmica comum. Entretanto, textos bíblicos comparam “Babel” à confusão de línguas, à multiplicidade falaciosa de cultos, desviando-se, assim, do significado original: “Porta de Deus”. Quanto a este aspecto, na atualidade, os iraquianos se vêem como uma nação multipolar que privilegia a cultura plural. A Torre era entendida também como uma porta simbólica de acesso à fonte de toda a sabedoria proveniente dos deuses. Os judeus a interpretaram, enquanto cativos na cidade, como um testemunho da soberba e presunção humanas.

Saddam Hussein restaurou a Babilônia, seus templos, teatros e recintos vários, além de permitir a uma delegação austríaca a escavação do zigurate de Nebu, senhor dos escribas e das belas letras, em Borsippa. Pretendia ainda reconstruir a Torre de Babel e os jardins suspensos, tidos pelos gregos como uma das sete maravilhas do mundo antigo, no firme propósito de recuperar o esplendor perdido.

Segundo os profetas Isaías e Jeremias, a Babilônia havia sido um antro de corrupção e falsidade. Tudo porque ali não se cultuava Jeovah. Essa idéia fortaleceu o fanatismo protestante do governo republicano nos EUA, que satanizou “o berço da civilização” de modo a manipular a tradição religiosa em favor de suas reivindicações mundanas imperialistas. A batalha do Armagedon foi projetada na guerra contra Bagdad e Saddam identificado com o mal.

A mídia, sem credibilidade, amortece o sentido crítico do público para as nuances mais encobertas e sensíveis da realidade. Por reação, por exemplo, foi realizada, recentemente em Minnesota, uma mostra de pinturas iraquianas contemporâneas. A exposição, chamada Arte além fronteiras, tentava quebrar estereótipos enquanto reincidia neles. Meg Novak, autora da iniciativa, quis fazer entrever o “lado humano do Iraque”, esperando lembrar que ali “existem seres humanos”. Francamente, o que lá deveria haver? Pterodáctilos?!

Autores de renome eventualmente não se importam de engrossar as fileiras dos que compactuam com a fábrica do “terror”. Deepak Chopra publicou em 1999 um livro intitulado Os Senhores da Luz, ilustração apocalíptica que articula um triângulo sui generis: o americano “herói e salvador da pátria”, o kabalista israelense “dono da verdade” e o profeta iraquiano — pasme-se! — “O Anti-Cristo”! Esse último era descrito como “uma ameaça para o mundo” pois ocultava “um desastre nuclear de proporções espetaculares!” Ora, desastre de proporções espetaculares foi a operação “Choque e Terror” em Bagdad — as 25 mil bombas e mísseis lançados pela Coalizão sobre um país desarmado e devastado por doze anos de sanções econômicas!


As sanções demonstraram claramente
que o objetivo das potência dominantes
foi a contenção do desenvolvimento iraquiano


Para o aparato de Estado americano, G. Bush é S. Jorge e Saddam Hussein o dragão. A América é o paraíso e o Iraque, o inferno. Essa bem administrada psicopatia desmantelou qualquer possível observação racional e demonizou o “outro” como um meio paranóico de conter a nação que poderia alcançar a liderança no Oriente Médio. Enquanto se defenestra o socialismo progressista do Iraque — um dos locais onde as mulheres têm, como se sabe, maior liberdade e poder na região —, os EUA asseguram seu pacto com a Arábia Saudita, monarquia absoluta cujo sistema é um dos mais conservadores e obscuros do mundo.

As sanções demonstraram claramente que o objetivo das potências dominantes foi a contenção do desenvolvimento iraquiano, utilizando-se de uma solução “diplomática” para manter a guerra de baixa frequência*, o genocídio camuflado que matou mais de um milhão e meio de pessoas (por falta de medicamentos, efeitos de radiação e água contaminada) como meio de destruir o Iraque e enfraquecer a resistência. Cada cidadão teria direito a uma ração alimentícia que o mantivesse no limite da sobrevivência mínima. Saddam Hussein, porém, burlou o fato e ofereceu cestas básicas à toda a população.

Recordemos que o país havia sido incrivelmente próspero, absolutamente sem fome, com educação, hospitais e remédios gratuitos. Mas devido ao embargo, a situação se deteriorou em todos os campos, porque o bloqueio da ONU estendeu-se a quase tudo. Aviões estrangeiros não poderiam pousar na capital; proibido importar lápis e papel; proibido importar cloro, tinta para quadros e qualquer coisa que tivesse um lastro químico “para não ser usada em armas”; proibida a importação de cordas para instrumentos musicais; peças de reposição para veículos; bombas hidráulicas; proibido importar o mármore! Uma sentença de morte aleatória à simples existência!

Mas o Iraque não é o Inferno. Tem-se em conta que um dia ali surgiu o Éden terrestre. O povo deu a volta por cima, driblando as duras condições impostas. Continuou construindo, escrevendo, pintando, cantando, dançando, existindo. Foram realizados vários festivais de música, poesia, folclore e teatro.

O mercado de artes de Karrada-Dachel, em Baghdad, um labirinto pitoresco de ruelas, pátios e galerias underground, talvez tenha sobrevivido aos bombardeios de março. Antes disso, fervilhava. Telas saltavam ainda aos olhos, eclodindo em cores, visões e paixão. Era como se os artistas dissessem: “Não nos podem impedir de sonhar!” Uma obra-prima podia ser comprada por poucos dólares já que o dinar quase não valia. Mas há muito tempo no Iraque não se trabalha por dinheiro — trabalha-se pela vida!

É uma terra onde as artes visuais sempre proliferaram. Gigantescos touros androcéfalos viram a luz do sol no alvorecer da era da arqueologia; ruínas revelaram a face de longínquos deuses alados e reis resplandecentes… Do fundo da memória, em contraste com a palidez do deserto, os pintores de hoje retiram seus fantasmas esquecidos e os recriam com força nova. A palheta grita cheia de turbulência e fantasia.

Tarik Aziz, (ex-vice-primeiro ministro, bem como ex-ministro da Cultura) nos conta em uma entrevista: “O estado baathista fez muito pela promoção das mulheres e pelo desenvolvimento da criação artística. Como prova disso, temos o grande número de galerias de arte expondo uma criação nada convencional, mas que, pelo contrário, transborda de imaginação. O Iraque é um país de artistas plásticos e poetas. Tenho muitos amigos no meio artístico. Esses laços remontam ao tempo em que eu estudava no Instituto de Belas Artes.” (Iraque, a guerra permanente)


O patrimônio iraquiano foi gradualmente
dilapidado desde a Guerra do Golfo,
a despeito dos esforços do governo para protegê-lo


Saddam Hussein sempre foi um grande patrono, tendo ele mesmo se dedicado à literatura. Em 1977, ainda vice-presidente, criou o Dia do Conhecimento. Desde que as sanções afrouxaram um pouco em 1996, encaminhou dinheiro para largos programas. Abriu seis escolas de Belas Artes, todas decoradas com motivos arquitetônicos assírio-babilônicos, além de vários centros de estudos cuneiformes e universidades destinadas à preservação da diversidade cultural do Oriente. Tarik Aziz comenta: “As sanções querem que nos preocupemos somente com a sobrevivência.”

A decadência, porém, não pode ser evitada. O lucro fácil produziu uma máfia crescente de ladrões de antiguidades, cujo espólio saía do país em direção a Israel, Grã-Bretanha e EUA. O patrimônio do povo iraquiano ia sendo gradualmente dilapidado, desde a primeira guerra do Golfo, a despeito dos esforços tremendos do governo para protegê-lo e salvaguardá-lo, interditando, por exemplo, o acesso a sítios importantes como o zigurate de Ur.

Hoje, o “American Council for Cultural Police”, cujo presidente, Ashton Hawkins, tinha sido vinculado ao Metropolitam Museum de N.Y. até o ano 2000, coloca em risco aquele inestimável tesouro. Esta organização foi criada para permitir o livre trânsito de material arqueológico de países originários para colecionadores americanos. Visa legitimar a circulação de obras no mercado. Ou seja, transferindo o acervo do domínio público (museus e instituições nacionais) para coleções particulares, priva criminosamente a humanidade daquilo que lhe pertence, daquilo que é seu de direito para beneficiar alguns privilegiados. Há também a intenção sub-reptícia de ocultar achados conclusivos que instaurariam uma reinterpretação da História Primordial da Mesopotâmia e consequentemente, da humanidade, já que Saddam Hussein se determinara a divulgá-los.

Para o Baath, a preservação e informação relativa à herança milenar iraquiana eram a base da identidade nacional. Sua ideologia pan-arabista, secular e socialista, reconhecia e salientava a importância do Islam para o Oriente Médio, mas não o identificava como a fonte prioritária para a articulação dos árabes. Integrando a civilização islâmica às demais que a precederam naquele solo, elegeu os fundamentos da cultura e não os da religião como o amálgama fundamental da união árabe e de todos os povos, ainda que, na década de 90, tenha intensificado o apelo místico em consonância com o desejo popular. Contrastando com isso, o Irã persa e não árabe, levantou a onda de uma revolução xiita radical cujo credo fundamentalista aspirava a ampliação de seu domínio na região. O Iraque, cujo governo laico separava a fé do Estado, serviu de tampão na guerra então travada contra o expansionismo iraniano sobre seu próprio território e sobre as monarquias sunitas vizinhas, o que lhe deveria garantir o perdão de dívidas que acumulara com aqueles países. O Kuait, entretanto, não o fez e esse foi um dos muitos motivos da invasão posterior.

O aiatollah Khomeini herdara o formidável aparato bélico que o Xá Reza Pahlevi adquirira do Ocidente. Para fazer face à ameaça iraniana e seu exército colossal, três vezes maior do que o iraquiano, Saddam recebeu “ajuda” (lucrativa), pois quem não queria vender armas ao Iraque? Mas a estratégia americana previa, desde então, a aniquilação do país e pensava mais longe: que as duas nações aspirantes à hegemonia do Golfo se destruíssem mutuamente e sucumbissem. Desta forma, seus objetivos neocolonialistas poderiam se efetivar.

As ambições de Saddam Hussein pela militarização do Iraque almejavam, na verdade, conseguir poder dissuatório e de barganha diante das potências estrangeiras para que sua independência político-econômica fosse assegurada. Ele preconizou, de fato, a emergência de um estado-modelo, expoente de intercâmbio comercial, cultural e científico, que liderasse o Terceiro Mundo no direito de acesso à tecnologia de ponta, já que as nações dominantes não permitem sua transferência. Saddam propunha lançar o Iraque na era espacial e injetar as bases da pesquisa pacífica de energias alternativas voltadas ao desenvolvimento, ambiente e cultura. Disso se tem prova após a descoberta, em abril deste ano, da magnífica base subterrânea de Al-Twaitha, propriedade da Comissão de Energia Atômica do Iraque.

Infelizmente, uma massa de propaganda jamais vista antes tem sido destinada à detração do país e de seus objetivos. Criando-se um contraponto artificial ao “Ocidente civilizado”, todos os meios fraudulentos foram usados para que a opinião pública mundial aceitasse o Iraque, entre outras nações, como um “país-pária”.

Não há como negar: nossa civilização surgiu na Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates, sob o céu causticante e fontes generosas. Há seis mil anos ali foram fundados os alicerces da História. Brotaram nesta pátria nossas noções de tempo, calendário e escrita. Os babilônios reconheceram o Zodíaco celeste e mapearam todas as constelações do hemisfério norte. Podiam fazer cálculos quase tão assombrosos quanto os nossos. Organizaram as leis, edificaram cidades ajardinadas, dotadas de encanamento e redes hidráulicas; sua ciência da irrigação nos legou o campo arável e frutífero; seus templos, os zigurates, orientavam-se pela latitude da terra e pelos quadrantes estelares.

Há cinco mil e quinhentos anos, em Uruck, o primeiro grande centro urbano, a sociedade se fez igualitária. O empreendimento e o consumo eram coletivos. Um “estado-previdência” efetivou-se. As decisões da comunidade eram tomadas pela elite em favor da distribuição de bens aos quais todos deviam ter igual acesso. Instaura-se aí, como vemos, uma forma conceitual de socialismo democrático.

Quando na década de 60 os baathistas tomam o poder no Iraque, estavam reativando uma fórmula antiga, um socialismo que não precisava inspirar-se em outros lugares, porque suas raízes estavam ali, bem à vista, há milênios. O homem forte, Saddam, também não necessita ser comparado aos ditadores deste século. Ele é tido, em geral, como um novo Nabucodonosor, um novo Saladino.

O ideário do Baath sempre implicou na visionária percepção do eterno retorno, do moto continuum, dos aclives e declives, da morte e do ressurgimento. Das primeiras cidades da Suméria à assíria Nínive, da velha Caldéia ao império neo-babilônio, da Bagdad dos califas abássidas aos santuários de Najaf e Karballah, um elo intermitente de glória nunca se rompeu. O rei Nabucodonosor, ele mesmo, reacendeu em seu tempo, o esplendor da já vetusta Babilônia, da já antiquíssima Torre de Babel e a elevou ao cume.

Mas Saddam Hussein não se limitou a evocar os ícones do passado. Foi também um grande modernizador. A nacionalização do petróleo que ele obteve em 1972, quando ainda não era presidente, deveria garantir a disponibilização de inigualáveis fontes de riqueza das empresas estrangeiras para o país, visando o disparo necessário à realização do “estado da arte”. Uma nação alinhada com o futuro. Mas isso não seria possível sem que o povo fosse tirado da ignorância e do atraso. Ele começou então uma vasta campanha educativa de erradicação do analfabetismo, fazendo passar por ela dois milhões de pessoas em cinco anos angariando com isso, o prêmio máximo da Unesco pela universalização do ensino, o Kropeska. O projeto do “grande Iraque” deveria começar assim: com lápis e papel.

Enquanto esses ideais permanecem, bombas são atiradas sobre o solo ferido. Os árabes, pela ótica imperialista e sionista, devem voltar a viver no pó do deserto… Os que resistem e defendem a pátria são criminalizados. Em maio deste ano, o cantor Daud el Qaissi foi assassinado em sua casa de Bagdad pelas tropas americanas. Era o Presidente da União dos Artistas Iraquianos, ativista político cuja luta ardente reuniu cantores, poetas, atores e pintores na mobilização contra a invasão estrangeira. Um mártir da terra… de uma terra que deixou seu selo na eternidade.

Nossa geração tudo dá ao Altíssimo;
ó Grandeza, nós retornamos
e renascemos
para a nação que construímos
com insuperável determinação,
cada mártir seguindo outro mártir…

(Hino do Iraque, trecho, Shafik Abdul Jabar, 1981)


Yasmin Anukit é Museóloga, Escritora, Professora de História da Arte, Estudos Orientais e Civilização Islâmica.
*Nota da Redação: Trata-se da Guerra de Baixa Intensidade (GBI), expressão com que ficou mais conhecida nas notas e referências militares.
Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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