De João a Cabral, o capital na capital

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De João a Cabral, o capital na capital

A inscrição do Brasil nos processos de modernização tem no favorecimento ao Capital a benção do Estado, em detrimento de uma construção ampliada da cidadania.

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A Europa estava devastada pelo “furacão” Napoleão que sacudiu todos os tronos europeus. Em 1808, D. João VI e toda a Corte portuguesa, fugindo das tropas de Napoleão, desembarcou no Rio de Janeiro.

Nireu Cavalcanti, no livro O Rio de Janeiro Setecentista: a vida e a construção da cidade, da invasão francesa até a chegada da Corte (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2004), nos ajuda a entender a envergadura desse episódio que, “noite para o dia”, transformou a Cidade com a chegada de toda a Unidade Imperial. Ele diz: “… no Rio de Janeiro, a água das casas era transportada, pelos escravos, nos mesmos barris que, no fim da tarde, transportavam os detritos até o mar…”

Com essa transferência, a Cidade viu crescer extraordinariamente o movimento do seu porto, bem como aumentar o comércio de sua praça e, à medida que a corte mostrava que permaneceria sediada na Cidade, o Rio de Janeiro passou a exercer influência civilizatória sobre toda a colônia. A Cidade sofreu uma mudança de status, coincidindo com as primeiras ideias de “reforma” e o seu crescimento proporcionou uma mudança de olhares sobre si.

Embora a transferência da Corte não tenha modificado o quadro brasileiro, escravagista e mercantil, rompeu o equilíbrio espacial da cidade, impondo transformações no seu relevo, que passou a representar “obstáculo” à expansão urbano-capitalista.

O “brilho da corte”, além de incrementar a atividade mercantil na cidade, fez surgir na sua estrutura urbana um plano de recolocação do capital que disciplinava os novos segmentos sociais que nela emergiriam.

O capital na capital

As primeiras medidas desse plano tiveram início em maio de 1808, com um alvará que anulava o de 1785, determinando a abertura de fábricas e manufaturas no Brasil e, em 13 de maio do mesmo ano, na Lagoa Rodrigo de Freitas, instalou-se a Real Fábrica de Pólvora que, ganhando melhores estradas que a interligava ao núcleo urbano, adquiriu maior importância.

A medida de maior impacto sobre os citadinos foi o alvará de 7 de junho de 1808, que instituiu o tributo da “Décima Urbana” sobre todos os prédios da cidade. Até a instituição desse tributo, os proprietários de imóveis urbanos não pagavam qualquer imposto territorial (ou predial), com exceção do foro à Câmara, caso os terrenos a ela pertencessem. O tributo, além de reconfigurar o perímetro urbano da cidade, elevou os valores de aluguéis, tornando caro o custo de vida.

Em 23 de agosto de 1808, um alvará reestabeleceu a Junta de Comércio, fortalecendo os negociantes de grosso trato da cidade, que assumiram as cadeiras de deputados da Junta.

O alvará de criação do Banco do Brasil, em 21 de janeiro de 1809, representou uma ação modernizante, uma vez que rompeu a tradição de empréstimos “entre pessoas”, impondo à relação o rótulo de uma “transação financeira”. Além, é claro, de exigir uma edificação para a sua sede. O mesmo alvará também estabelecia a demarcação dos terrenos da Marinha, necessários aos armazéns e trapiches da cidade.

O alvará de 25 de janeiro de 1809, que vinculava a confirmação da Sesmaria dada à medição das terras do beneficiário, foi essencial para diminuir os permanentes problemas de limites entre as propriedades. O alvará de 28 de abril do mesmo ano isentou de pagamento de impostos as matérias-primas a serem usadas nas manufaturas, propiciando o renascimento das indústrias na Cidade do Rio de Janeiro.

Do conjunto de leis que transformaram a cidade, dando-lhe regras de natureza capitalista, pode-se dizer que apenas uma fugiu à regra. Destaca-se, nesse caso, o alvará de 22 de janeiro de 1810, estabelecendo a Ilha de Boa Viagem, em Niterói, como local de quarentena das pessoas suspeitas, ou com confirmação de doenças contagiosas, recém-chegadas à capital do Império.

Mário Magalhães da Silveira, no livro Política Nacional de Saúde Pública – A trindade desvelada: economia – saúde – população (Rio de Janeiro, Editora Revan, 2005) assinala que a Corte baixou dois outros alvarás que visavam criar um sistema de saúde com organização sanitária semelhante à de Portugal.

Mas, o traço marcante da cidade ao transformar-se em sede da monarquia era mesmo a requalificação de seus espaços e as obras de melhorias de infraestrutura e desenvolvimento econômico.

Em 1813, a Câmara de Vereadores publicou um documento que propunha medidas de drenagem dos terrenos alagados que iam da construção de valas e canais ao aterro dos charcos. Além disso, propunha também rearborizar os morros e terrenos vazios, a criação de cemitérios públicos e obras de higienização dos matadouros.

Foram abertas novas ruas perpendiculares às já existentes e de grande comprimento, bem como a abertura de outras ruas perpendiculares à orla marítima a fim de canalizar a brisa marinha. Ainda com o mesmo intuito foi proposto o arrasamento do morro do Castelo e o de Pedro Dias (do Senado), considerados os mais prejudiciais à circulação do ar na Cidade.

No Rio de Janeiro, no início do século XIX, não havia um serviço público de saúde destinado à população em geral. Os pobres se valiam do Hospital da Santa Casa de Misericórdia ou buscavam alguns dos serviços de saúde oferecidos gratuitamente pela Câmara dos Vereadores da Cidade. Para os doentes de lepra (Mal de Lázaro), foi criado um hospital denominado Lazareto, mantido por donativos de pessoas mais abastadas.

Na tentativa de mitigar o adensamento populacional e prevenir o surgimento de doenças na cidade, a Câmara de Vereadores sugeriu que o comércio de escravos recém-chegados da África, que ocorria em lojas espalhadas pelas principais ruas do centro da cidade, fosse deslocado para fora dali.

A imediata reação dos comerciantes demonstra a importância dada às atividades econômicas, em detrimento da atenção ao cidadão. Os contestadores contra-argumentaram que, com o deslocamento, o comércio sofreria queda significativa, afetando não só os comerciantes, mas todo o povo.

Os comerciantes acenaram com o aumento do preço da mercadoria (o escravo), a retração do comércio e, por conseguinte, a diminuição da arrecadação dos impostos incidentes sobre essa transação. Isso nos dá a dimensão de que a atenção ao cidadão não ocupava posição central no governo.

As doenças começaram a aparecer e, para resolver esse problema, causado pelo adensamento populacional urbano, Francisco de Assis Acurcio, no livro Evolução histórica das políticas de saúde no Brasil (São Paulo, Editora HUCITEC, 1998) assinala que, em 1850, o governo autorizou o gasto de sobras de receitas, a fim de evitar a propagação de epidemias.

É importante destacar que até o advento dessa autorização, as atividades de saúde pública se limitavam ao controle de navios e saúde dos portos, tendo em vista que, em função das doenças, os países que comerciavam com o Brasil ameaçavam não mais atracar seus navios aqui, bem como impedir que os navios brasileiros atracassem nos portos estrangeiros. Essas ameaças levavam o Estado a tomar providências.

Por volta de 1850, com o fim do tráfico de escravos, um montante de capital ficou disponível para ser investido em outras atividades, e o foi, principalmente no meio urbano, provocando o surgimento de inúmeras companhias no setor de serviços.

Nesses termos, Jaime Larry Benchimol, no artigo intitulado Pereira Passos, um Hausmann tropical: a renovação urbana da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX (Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1992) chama a atenção para o fato de que, à medida que essas companhias se ampliavam, traziam para a cidade, além de um processo de modernização, novas tramas de relações sociais no espaço urbano.

Então, aos melhoramentos portuários, adaptando a cidade à nova ordem capitalista mundial, associavam-se as mudanças nas relações de trabalho que alteravam a velha estrutura de relações laborais e sociais que não mais satisfaziam à nova realidade.

Esse processo, além de alterar as estruturas de relações laborais, desencadeou a disputa de diferentes grupos capitalistas pelo controle dos diferentes setores da economia e, nessa disputa, entrou em cena a influência do Estado, delegando o domínio dos serviços públicos às companhias privadas, afetando a vida cotidiana dos cidadãos (ex.: água e esgotos).

Pobreza, higiene e doença

O adensamento populacional, da área central do Rio de Janeiro, permitiu a associação discursiva entre pobreza, higiene e doença.

O Estado criou a Comissão Central de Saúde Pública que elaborou um plano com medidas rígidas de controle sobre os indivíduos e a vida da Cidade, mas para que o plano lograsse êxito, era necessário intervir no espaço urbano, o que trouxe à cena, um novo ator, o engenheiro. Coube a ele os melhoramentos urbanos, bem como as medidas necessárias à sua manutenção.

Nessa associação discursiva, os ambientes insalubres, além de deteriorar a saúde da população, eram obstáculos ao desenvolvimento e, com isso, se explicavam os problemas da cidade e se justificava a intervenção mais direta no espaço urbano e, não por acaso, as habitações coletivas foram eleitas as principais causas das doenças, justificando as propostas de remodelação da Cidade.

Nesse processo de remodelação da Cidade, Sidney Chalhoub, no livro Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial (São Paulo, Companhia das Letras, 1996) assinala que os pobres, além de entraves à modernização, eram vistos como perigosos, facilitando a atuação oportuna do Estado para a reestruturação do espaço urbano através da exclusão desse segmento à propriedade do solo urbano, compelindo-o a viver em áreas afastadas.

Os cortiços, nas áreas centrais da Cidade, eram os locais onde a população pobre encontrava apoio e controlá-la passa a ser muito importante.

O discurso que associava a pobreza às doenças crescia, ocultando a especulação imobiliária que se dava em função dos melhoramentos no espaço urbano da capital e, nesse processo de ocultação, muitos empresários se interessaram pela “coisa pública”. Principalmente a construção civil e a área de transportes, uma vez que as ações do governo, empurrando a massa proletária, supostamente culpada pelas epidemias, para a periferia da cidade, incrementaria o setor de transportes.

Nesse momento dá-se a expansão dos serviços públicos (por empresas privadas) para as zonas norte e sul da cidade, transformando-se no “germe” do projeto de reforma que ocorrerá no início do século XX.

Portanto, por trás da cortina do discurso modernizador dos espaços urbanos, o Estado patrocinou a atuação do grande capital, favorecendo-o através de benefícios fiscais concedidos às construtoras, facilitação de importação de materiais para a construção e incrementando o surgimento de novas companhias de exploração de serviços urbanos.

A mesma política

Dando um salto no tempo, podemos refletir sobre a truculência policial na remoção de moradias e no aumento do custo de vida, principalmente em cidades onde serão realizadas provas desportivas relativas à Copa do Mundo e Olimpíadas.

As ações de urbanização, bem como a presença das Unidades de Polícia Pacificadora – UPP, que reforçam a infraestrutura de segurança nos morros da zona sul, na verdade, funcionam como uma tributação extra sobre os moradores, uma vez que esse processo de transformação das favelas cariocas traz o aumento também do custo de vida.

Segundo Marcelo Neri, Coordenador de Pesquisas Sociais da Fundação Getúlio Vargas – FGV, o valor dos aluguéis nas favelas cariocas subiu 6,8% mais que no resto da cidade desde a implantação das UPPs. 

Esse efeito se deve a dois aspectos: o impacto econômico da “paz”, representada no papel oficial da polícia e os investimentos públicos nas favelas próximas às áreas onde ocorrerão os jogos.

Teoricamente, a pacificação das favelas aumentaria a arrecadação privada, por via dos impostos pagos ao Estado. Em tese, todos ganhariam, mas tão logo as favelas são pacificadas vêm os interesses particulares nas intervenções, surgindo pousadas, hostels e tours, tantopara estrangeiros, quanto para a classe média nacional.

O governo do estado do Rio de Janeiro tem aplicado, na Rocinha, recursos da ordem de 100 milhões de reais para investir na urbanização da região.

Cumpre-nos interrogar se essas melhorias nos morros cariocas irão, no longo-prazo, beneficiar a população local ou forçar as famílias mais pobres a saírem, favorecendo as classes sociais com maior poder de renda, destinando aos pobres o espaço desprezado pela lógica especulativa imobiliária.

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*Doutorando em Planejamento Urbano e Regional, no Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ e pesquisador, no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva – IESC/UFRJ.

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