Crise política e situação revolucionária em desenvolvimento no país
Fausto Arruda
A atual crise política que afeta o Congresso Nacional e o governo tem no centro o PT e partidos da chamada base aliada do governo. Mas, a crise não é somente destes partidos ou dos partidos políticos oficiais, como querem fazer crer os meios monopolizados de comunicação. A crise é de todo o sistema político partidário e de governo.
Arte: Alex Soares
As expressões mais pronunciadas nas tribunas e nas declarações à imprensa, por notórios e salientes políticos das classes dominantes, dizem que "a democracia está consolidada no país" e que "a crise não afeta a economia". A primeira é pronunciada como propaganda para si mesmo e para conjurar o que mais atemoriza os políticos nestes dias: a irrefreável descrença popular neles, em seus partidos e nas instituições do velho Estado. Quanto à segunda, de fato, a crise ainda não repercutiu negativamente sobre a economia ou no que consideram como economia. Ou seja, o funcionamento do mercado financeiro dentro de uma determinada "normalidade". Também pudera, afinal não é nem este Congresso e nem este governo quem define tal política econômica!
Neste sentido, e a rigor, não há governo no país. O conjunto das políticas econômicas é ditada e gerida de fora do país para favorecer, basicamente, os interesses forâneos.
Mas, mesmo assim, a crise teima, segue avançando e terminará, mais cedo ou mais tarde, atingindo esta economia ao sacudir como um todo a ordem institucional vigente no país. Esta crise não é uma simples e rotineira pugna comum aos grupos de poder em nosso país, que de tempo em tempo faz explodir escândalos de corrupção resultante de suas refregas interesseiras, mesquinhas, comezinhas. Mais que isto, ela é uma crise de todo o sistema político partidário e de governo1 imperante há quase um século no país, cujo esgotamento e falência completos vêm sendo trazidos à superfície.
A situação é tal que aos próprios monopólios de comunicação, à semelhança das classes dominantes a que servem, de modo algum interessa que a crise atinja a economia, por exemplo. Mas devido à caça da credibilidade que lhes propicia o poder de chantagem de que tanto necessitam e lhes são vitais, não cessam no alardeamento dos escândalos, fazendo saltar a cada dia mais e mais revelações, num processo insaciável e voraz que parece não ter fim. E não há ninguém na comunidade política oficial, dos círculos empresariais, dos meios militares, da própria imprensa e no seio do próprio povo que não está se indagando onde e em que tudo isto vai dar.
No entanto, revela-se necessário ao consenso das classes dominantes e da maioria dos grupos de poder, para que não se agrave radicalmente a crise ameaçando a estabilidade do Sistema de Poder2, preservar ao máximo a figura de Luiz Inácio e assim preservar a ordem da institucionalidade vigente.
Os monopólios de comunicação em meio à ciranda de denúncias maquinam para que uns sejam golpeados e arrasados política e moralmente, e que outros fiquem à margem do "mar de lama", como é o caso do presidente da República. E isto é mais que notório em sua forma de manejar com os acontecimentos. Por exemplo: se Palocci aparecer envolvido, e está bastante, direta ou indiretamente, a providência seria retirá-lo rápido do Ministério da Fazenda, pois gente do seu calão para substituí-lo no posto não falta. O fato é que os chamados "sólidos fundamentos macro-econômicos" não suportam o nome do Ministro da Fazenda exposto, com ou sem provas de seu envolvimento na corrupção.
Mas quanto ao presidente da República, não impedir que seja desmoralizado é abrir-se a uma crise de proporção abismal numa realidade de explosões sociais em todo o continente. Enfraquecê-lo, sim, é um dos métodos que manejam para mantê-lo por completo à tutela como se presta e possibilitar outras manobras de melhor conformidade quanto ao problema sucessório que bate às portas.
A base material da crise
A base material e objetiva das crises políticas no país, de forma geral, desde Vargas, principalmente o seu segundo governo, até Jango, encontra-se nas contradições do sistema econômico semicolonial atrasado que aqui se instalou e segue se desenvolvendo. Este, apoiando-se numa base semifeudal arcaica e podre, de monocultura voltada à exportação, fundamentalmente se sustentou no processo chamado de substituição de importações, dirigido pela Cepal (Comissão Econômica para América Latina — agência da ONU) que contemplava a transposição das plantas industriais ianques para o Brasil, mormente das montadoras automobilísticas.
Esta fórmula exigia ações complementares do Estado e de empresários locais que pudessem proporcionar infra-estrutura, matérias primas e insumos (do tipo autopeças) para as indústrias principais. As bases para a implementação deste processo foram sentadas pelos acontecimentos políticos de 1930 e seus desdobramentos.
Foi aí que se deu o deslocamento do centro do sistema de poder do Estado de uma fração da burguesia, que denominamos burguesia compradora (casas de importação e exportação), que desde os finais do período imperial exercia o fundamental do poder no país, juntamente com as oligarquias rurais, em favor da fração industrial que denominamos de burocrática. Neste giro de posições no sistema de poder de Estado no país, os latifundiários, antes os mais poderosos e influentes, juntamente com os compradores, perderam posição, mas foram mantidos nele como principal aliado da ascendente burguesia burocrática.
Essa composição de classes exploradoras, a serviço da dominação imperialista, nutria-se, ou melhor, locupletava-se com os favores do dinheiro público, seja através de financiamentos generosos para empreendimentos industriais (complementares), seja assumindo postos administrativos em Estatais (normalmente, empresas de economia mista) ou agências como IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) ou o IBC (Instituto Brasileiro do Café) ou, ainda, no conselho administrativo dos bancos públicos ou das transnacionais.
Equivocadamente, muitos analistas e, principalmente, as direções oportunistas do Partido Comunista do Brasil, consideraram sempre esta fração burguesa aliada e submissa ao imperialismo como burguesia nacional e seu projeto à frente do Estado brasileiro como um projeto nacional "desenvolvimentista".
Assim, atribuíam a esta uma vocação revolucionária que não possuía, tal como a própria história veio a comprovar, primeiro com o golpe de 64 e depois com a ascensão de Collor e principalmente Cardoso, cujos discursos centravam-se em "pôr fim a era Vargas". O gerenciamento militar fascista do país, a partir de 64, ocorrera para deter o crescimento do movimento de massas reformista, que se radicalizava, e reestruturar o Estado de forma a recolocar o total controle do poder nas mãos da fração burocrática — que o perdia politicamente para setores da burguesia nacional reformista — e, segundo as exigências do imperialismo ianque em sua ordem pós-guerra, não obtida até então de forma completa no país.
No entanto, este processo não só contemplou amplamente os interesses ianques econômica-política e militarmente, como foi um período de grande alavancamento dos capitais da grande burguesia e principalmente de sua fração burocrática. Com a crise do modelo econômico aí engendrado veio a crise política aguda do gerenciamento militar, mas as classes dominantes lograram realizar a transição segura do sistema sob hegemonia da mesma burguesia burocrática, com Tancredo e Sarney à cabeça.
Então, o discurso de "por fim a era Vargas", para os "neoliberais" Collor e Cardoso, correspondia às exigências impostas pela crise geral do sistema capitalista mundial (anos de 1980), de sua reestruturação (neoliberalismo e globalização), que implicava em deslocar do centro do sistema de poder do Estado, desta vez, a fração burocrática, substituindo-a pela compradora. Processo iniciado com eles e ainda em curso, em meio de rinhas e pugnas destas frações da grande burguesia e seus diferentes grupos de poder. E claro, implicava em colocar na direção do Estado as forças políticas que melhor expressassem e contemplassem os interesses desta reestruturação global do capitalismo no país.
Assim, desde o desastroso governo Collor se trava uma feroz luta entre a fração compradora, agora "modernizada" na figura de banqueiros, seguradores, "indústrias maquiladoras", investidores e outros contraventores contra setores industriais, de serviços, comércio e agro-exportadores, a fração burocrática. Tudo isto em cumprimento da lei do imperialismo da obtenção do lucro máximo e de atender a sua necessidade crescente de compensar os efeitos de outra lei implacável do capitalismo: a da tendência para a queda das taxas de lucro.
Esta tendência só poderia ser compensada pela fuga do capital produtivo para a especulação financeira e pelo aumento brutal da extração de mais-valia. Neste caso, a burguesia compradora estaria mais "habilitada" a gerenciar o Estado semicolonial brasileiro. Com o fim do gerenciamento militar e a posse de Sarney, junto à implantação do projeto Funaro3, a agonia deste setor foi amenizada por uma transfusão de sangue que logo volta a esvair-se diante da ofensiva imperialista de reestruturação "globalizadora neoliberal", que levou de roldão o social imperialismo da União Soviética, confirmando uma vez mais, e agora de forma insofismável e palmar, o que há décadas já se consumara: a impossibilidade de qualquer projeto nacional e democrático vigorar sob qualquer direção burguesa.
O Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB) foi a força política que mais compreendeu o processo que estava em curso — se alistando para representar a burguesia compradora — e que, juntamente com o Partido da Frente Liberal (PFL),representando principalmente os interesses mais anacrônicos, e parte do PMDB, dividido entre as duas opções — serviram todos aos interesses imperialistas, principalmente ianques.
Com FHC aplicando radicalmente o exigido pelo imperialismo, sob o manto publicitário do "Plano Real" (paridade cambial com o dólar e altas taxas de juros), ajustes cambial, monetário e fiscal, tudo no país foi colocado em função do pagamento dos juros da dívida.
O país viu acelerar a desnacionalização completa da sua economia com a desregulamentação, abertura econômica, "privatizações", inchamento da dívida pública, além da consequente quebradeira geral da pequena e média empresa, desemprego, sucateamento dos serviços públicos de saúde, educação e habitação, fome, miséria, tensão social e tensão política que atinge as diversas forças políticas de poder, agravando-se as contradições no seio das classes dominantes.
A crise do capitalismo burocrático amadurecerá. A condução da política de Estado segundo os ditames econômicos do FMI e suas decorrências fizera agudizar as contradições entre os grupos de poder e levou à ruptura entre FHC e ACM. Esta foi a primeira grande ruptura no seio das classes dominantes da qual o establishment não se recobraria mais.
Veio então o estouro cambial, a desmistificação do "Plano Real", o descontentamento popular e o triunfo eleitoral do oportunismo, da frente "popular" eleitoreira comandada pelo PT e Luiz Inácio. Com a subida do oportunismo ao posto gerencial do Estado, contando com apoio de significativa parcela da burguesia burocrática — defenestrada do centro do aparelho de Estado desde Collor —, que logo vê suas esperanças irem embora diante da submissão incondicional do novo gerente aos ditames do FMI e do aprofundamento da política criminosa contra o país e o povo. As "reformas" (previdenciária, tributária, lei de falências, independência do Banco Central, lei de aluguel de florestas, etc.) que FHC não fora capaz de levar a cabo, inclusive devido à oposição do PT, são agora da sua alçada e chancela.
Já a composição do governo expressou a luta de frações, revelando que apesar da adesão e apoio da fração burocrática à candidatura Luiz Inácio, a fração compradora levara vantagem. O Presidente inclinara-se (dobrara-se) para ela já na própria campanha eleitoral.
Os interesses da burguesia burocrática estavam nitidamente em torno de José Dirceu e do vice Alencar, enquanto que Palocci e Gushiken representam a burguesia compradora. Os campos definidos, passados os dias da extravagante boda e meses da lua de mel, fustigações daqui e dali, a guerra de posições tinha data marcada para desencadear-se. Com Palocci e Meirelles à frente das finanças, os setores do oportunismo ligados à fração burocrática da burguesia perdem seguidamente espaço no governo.
A questão da taxa Selic(4) é o deslinde de posições. No PT e nos partidos aliados agudiza-se a luta entre os grupos de poder neles conformados.
Os de cima não podem governar como antes
Ainda com fortes bases em São Paulo, a burguesia burocrática não "jogou a toalha" e se preparou para dar o troco aos petistas nas eleições municipais, encorajando e investindo em José Serra, este partidário do "desenvolvimentismo" nas hostes do PSDB. A candidata oficial à prefeitura da capital paulista é derrotada e o PT perde não apenas este importante bastião, mas vários outros, enfraquecendo a possibilidade certa de reeleição de Luiz Inácio.
Cabe aqui, para melhor compreensão de nossa análise, termos uma distinção clara entre sistema de poder e sistema de governo, já anteriormente mencionados, nas condições históricas concretas de nosso país.
Como sistema de poder podemos tomar as forças que realmente mandam no Estado. Sendo um Estado semicolonial, como afirmamos anteriormente, as principais decisões sobre a economia e a política são tomadas na sede do império, em combinação com seus representantes internos (lacaios). Como sistema de governo entendemos a forma (no caso sistema presidencialista que integra o poder executivo, o poder legislativo bicameral e poder judiciário) constitucionalmente estabelecida e que mediante o processo eleitoral confere às forças políticas legalmente reconhecidas pelo sistema, que majoritariamente obtêm nos pleitos a autorização para governar. Melhor dito, gerenciar o aparelho de Estado.
O sistema de poder das classes dominantes define e estabelece como será administrada a máquina estatal por uma ou mais forças políticas em coalizão, que, uma vez no Estado, se organizam como grupos de poder, com a incumbência de assegurar os interesses do mesmo sistema de poder. Assim, o mercado financeiro (sob o mando da grande burguesia financeira internacional), como principal suporte do sistema de poder, não tolera a menor fricção em seu domínio e, ao sinal da menor ameaça, intervém rapidamente para restabelecer o "bom andamento" das coisas.
Para não contrariar o sistema de poder, o sistema de governo precisa ser capaz de refazer diariamente (às vezes duas ou três vezes por dia) sua jura de submissão incondicional. E isto não é fácil de alcançar, em face da luta de vida e morte para se apoderar do que sobrou do banquete do leão. Não pode ser desprezado, na análise, o papel dos verdadeiros interesses nacionais, que embora não estejam sendo contemplados, seguem latentes e transformando-se em material explosivo acumulado na sociedade. Suas manifestações, segundo o grau de baixa organização que se encontram as massas populares, dão-se das mais variadas formas: violência urbana, tomadas de terra, justiçamentos, votos nulos, brancos e abstenção, etc. A descarada e imoral entrega do patrimônio nacional pelo vende-pátria Cardoso levou ao repúdio de seu candidato, não deixando outra alternativa ao sistema de poder, que não ungir o oportunismo petista ao posto de gerenciamento do Estado. Inclusive com a missão precípua de amortecer as contradições de classes, dado à sua interlocução com os movimentos sociais.
Aproveitou-se, para o sucesso de sua articulação, da demagogia deitada durante 22 anos pelos petistas como portadores de um projeto da ética, democrático e popular. Para adquirir a confiança do sistema de poder os petistas fizeram excelentes demonstrações de "competência" no gerenciamento de municípios e estados: projetos para o Banco Mundial, privatizações, "enxugamento" da máquina, arrocho nos salário do funcionalismo, parcerias com empreiteiras, banqueiros e outras máfias e principalmente determinação em reprimir as massas em luta, particularmente o movimento camponês.
Como o que eles guardavam para o povo era só demagogia, tentaram traduzi-la na forma de programas sociais recomendados pelo Banco Mundial (políticas compensatórias), enquanto enchiam as burras do sistema financeiro internacional com as mais altas taxas de juro do mundo.
A crise aumenta o seu espectro quando, como assistimos agora, ocorre um agravamento da incapacidade no gerenciamento do sistema de governo sobre uma base, cada vez mais crítica de todo sistema de poder, de seguir mantendo sua dominação sobre as massas — que insistem em reclamar a solução dos graves problemas sociais e nacionais — desacreditadas do funcionamento e validez das suas instituições burocráticas e agora moralmente abaladas. Ao contrário de toda a ufanista propaganda governamental, a crise da base do sistema seguiu se aprofundando proporcionalmente à radicalização da aplicação do receituário imperialista.
A crise política volta a sacudir o gerenciamento do Estado. Fora de curta duração a solução adotada na "forma petista de governar" para atenuar as contradições. É tão grave a situação, que um assustado FHC aponta com muita preocupação a necessidade de não instigar mais as disputas e conclama às maiores lideranças das diferentes partes em luta a uma conversação de alto nível para a busca de uma "nova maioria". E o que é essa "nova maioria" senão que a expressão de que o sistema político oficial faliu?
Como e por que a crise política se agravou?
Podemos afirmar que, como fato político, o ponto de inflexão para a crise está no resultado das eleições municipais de 2004. A derrota do PT na cidade de São Paulo não foi apenas uma derrota política séria, ela decidiu também uma disputa interna no PSDB. A vitória de José Serra fortaleceu a tese de que o PSDB deveria disputar a presidência em 2006, em prejuízo da sustentada pelo grupo de FHC, até então mais pessimista sobre a disputa e simpática a uma aproximação com o PT. Nesta nova situação, o PS DB passa à ofensiva no sentido de provocar situações que dificultem as ações do governo e o seu desgaste máximo, enfraquecendo-o para a disputa de 2006.
A primeira re-percussão é uma segunda derrota política chave do PT e do governo na disputa da presidência da Câmara. Tal derrota resultou da combinação de vários fatores, tais como descontentamento generalizado na base aliada no Congresso — que possibilitou aos grupos interessados estimularem as candidaturas de Severino e Virgílio Guimarães contra a oficial de Luiz Greenhalgh — e o crescente descontentamento e divergências nas fileiras do próprio PT, entre outros. A vitória de Severino passou a condicionar as ações do governo, que se movia a Medidas Provisórias.
Isto, adicionado à derrota na disputa da prefeitura de São Paulo, terminou por fortalecer no governo e no PT o grupo de José Dirceu, defensor de uma aliança prioritária, estável e duradoura com o PMDB (com promessas de atendimento a pleitos da burguesia burocrática), em prejuízo dos defensores recíprocos da tese de FHC de aproximação entre PSDB e PT (gente como Gushiken, Palocci, Cristóvão Buarque, os irmãos Viana, etc.).
Isto implicava de imediato no estabelecimento de nova base de aliança para a disputa de 2006, obrigatória e prioritariamente com o PMDB. Para acertar nestas condições com o PMDB seria necessário nova reforma ministerial para retirar de outros aliados os postos detidos no governo. Já que o PP era o partido do Presidente da Câmara, o PTB foi escolhido para cair e abrir espaços para o PMDB, que exigia muito.
Como o PTB reagiu negativamente, foi montada a operação "Correios" pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Subestimando o conflito de interesses prejudicados, a cúpula do PT e do governo não acreditavam que Roberto Jefferson, de rabo preso com o governo e o PT, seria capaz de desafiá-los. Deu no que deu. E foi o PT quem deu início à carreira denunciatória que logo voltou-se contra ele próprio. Completamente exposto, José Dirceu é pressionado internamente para deixar o governo e afastar a crise do Palácio. Os sinais são claros de que este só aceitou a demissão na condição de ser protegido, ameaçando que se fosse jogado ao mar arrastaria a todos juntos. Assim seguiu, mesmo demissionário, mantendo o controle do partido e fortes posições no governo, mas trincando-o de cima abaixo e jogando o PT ao chamado "mar de lama", inferno reservado hipocritamente pela ética burguesa aos seus violadores pegos em flagrante delito.
Tais acontecimentos agravaram e aceleraram formidavelmente a pugna a tal ponto que às forças políticas envolvidas escapam-lhes a capacidade de controlar e deter o processo de desagregação em curso, de todo o sistema político, como se o mesmo (processo de desagregação) tivesse ganhado vida própria. Às tais forças tudo parece escorrer-lhes por entre os dedos.
A administração da crise social como tarefa delegada à gerência do oportunismo, de uma reeleição certa passou à total falta de perspectivas. A crise política engoliu a tudo e a todos na direção política do velho Estado. O governo se acha boiando a esmo e vai adernando, enquanto o PT, atirado ao "mar de lama", dá braçadas de afogado, vitimado pela "ética" que tão hipocritamente, como useiro e vezeiro, "marquetaram" e em nome da qual, por fim, conquistaram a glória. Ao senhor Luiz Inácio, por instinto de sobrevivência e pela necessidade do sistema em achar uma saída antes que os abalos atinjam em cheio os "sólidos fundamentos macroeconômicos", só lhe resta dizer que foi traído, assim mesmo na condição de não revelar o nome do traidor, sob pena duma implosão geral que de vez desabe todo o céu sobre suas cabeças.
Não por acaso, e como também não é fato de menor importância, a ida de José Sarney à tribuna para defender Lula como homem probo e incorruptível teve a mesma função da vinda apressada ao país do Secretário do Tesouro ianque, mister Snow: tranqüilizar o "mercado" de que a crise política não afetará os rumos da economia nem no curto, médio ou longo prazos.
A direção emergencial do PT, atônita, mal se deu conta de que o partido caiu numa armadilha que seus próprios "exímios" estrategistas armaram. Foi obrigada a manter o processo eleitoral interno, na busca de encontrar uma unidade razoável para barrar a implosão do partido. O que conseguiu foi manter a máquina partidária, agora bem mais reduzida, porém sob o controle continuado de José Dirceu, pactuando com Raul Pont promessas que certamente não serão cumpridas. Os éticos do "campo majoritário" não tiveram forças para jogar José Dirceu aos leões para obter acordo de unidade com sua chamada "esquerda" e aplacar a oposição que queria ver sangue. No entanto, não puderam executar a tarefa que se assemelha à ameaça a um homem-bomba encurralado, foram se aninhar no "começar o PT de novo". Assim, José Dirceu seguiu sendo o problema para o grande acordão, que poderia por panos quentes sobre a crise. Se ele não for cassado segue a crise. Cassado, irá fomentá-la dos bastidores.
Os crimes do oportunismo e o seu grande fracasso
A corrupção ora revelada não é o maior crime do PT e seus aliados. O maior e principal crime do oportunismo é a manutenção e aprofundamento da política do imperialismo, da grande burguesia e do latifúndio. Vale salientar que iniciativas não concretizadas no período de Cardoso foram concretizadas sob o gerenciamento petista, com a adesão entusiástica do PSDB e do PFL. Foi assim com a reforma da previdência, do judiciário, desestatização da Petrobrás, lei de falências e aluguel de florestas. Estão na pauta as propostas do oportunismo de reforma sindical e trabalhista; reforma agrária paralisada; repressão ao movimento popular; política externa pró-ianque, intervenção no Haiti, etc.
Historicamente, no Brasil, o oportunismo (a esquerda com posições oportunistas na direção do movimento popular) serve à fração burocrática em sua pugna com a fração compradora. Desta vez, apodreceu mais, o oportunismo chegou à direção do Estado ao custo de se dividir entre as duas frações da grande burguesia.
Ademais de ter desarmado ideológica, política e organicamente as massas, cumprindo o papel de gerente do velho Estado, manipulando as expectativas das massas e se utilizando de sua popularidade, aparelhando o movimento social e aprofundando o corporativismo na sociedade.
Até bem pouco tempo, as cúpulas do PT e do governo sonhavam e faziam planos dourados para mil anos. Arrisca-se já o governo do oportunismo de passar à história como nada mais do que uma desastrada aventura trosko-clérigo-pelega e como um bufo deboche, não fosse o estrago que tem causado e causará às massas populares e a nação. Sem perder tempo, de forma impiedosa e incessante, a reação e sua odiosa tarefa de difamar, denegrir, desmoralizar e incriminar o povo e seus representantes verdadeiros, com esmero não medirá esforços para impingir na opinião pública que o desastre e fracasso abismal do oportunismo é o fracasso da esquerda, dos comunistas. Da mesma maneira que a reação mundial fez abater sobre os comunistas todos maus dizeres, difamações e crimes que atribuem à prática e conduta dos revisionistas da URSS, China e demais. A récua de renegados e trotskistas, os José Dirceu, Genoíno, os Palocci, Gushiken, Dulci, Marco Aurélio Garcia, Berzoini, Nilmário, Rosseto, etc., para ficar nos próceres, além dos grandes préstimos ao imperialismo, à burguesia e ao latifúndio, servirão mais que nunca à propagação das odiosas campanhas de delenda stalinismo e delenda revolução orquestradas por toda a reação. Mas que fazer?
No que resultará a crise?
É difícil prever o desfecho de médio prazo. Mas o certo é que a crise, pela sua natureza e pelas características que analisamos e apontamos, poderá atenuar-se mediante acordões e grandes tratativas que enredarão ainda mais todo o sistema político oficial, mas não se deterá. Suas brasas continuarão acesas e queimando, mais cedo ou mais tarde arderão em grandes chamas.
Sob a principalidade de manter a "blindagem" do mercado e para tanto manter a "blindagem" de Luiz Inácio, embora com um nível elevado de desgaste, a aproximação das eleições, agora sem prazos constitucionais para reforma de seu regulamento, o Sistema de Poder vai tentar reerguer a alternativa peessedebista, possibilitada pela desastrada conduta petista.
É preciso fixar claramente que se trata de uma crise de decomposição completa de todo o Sistema de Governo como superfície da crise do Sistema de Poder do velho Estado brasileiro. Como tal, poderá ser contornada no curto prazo ou não. Se conseguir, o que só pode mediante um grande acórdão, o calendário eleitoral será mantido, o Congresso prestará mínima satisfação à opinião pública e o que resta deste governo será mantido, a bem da estabilidade do sistema. Assim, o PT e seus fiéis aliados serão abatidos impiedosamente nas próximas eleições. Seguramente vencerá o PSDB, ainda que sua unidade em torno de uma candidatura não seja fácil de se estabelecer. Porém, se for, será com baixíssima legitimidade e mínima credibilidade.
Caso a crise progrida, atingirá inevitavelmente a economia e cobrará solução extraordinária. Em nome de "ampla reforma política" se entabulará um outro acordão com prorrogação geral dos mandatos numa convocação para eleições gerais, para 2007 ou 2008, como única saída para a salvação geral do sistema gravemente ameaçado. Em última instância, não há outra medida possível, no caso do agravamento geral da crise, dentro da mínima ordem da institucionalidade desta democracia de opereta que não seja a de realização de uma ampla "reforma política" do Estado, que será inevitável e imprescindível ao sistema mais dia menos dia. E este é um problema mais complexo de composição de interesses dos diversos grupos de poder e das frações de classes dominantes.
De todas as formas, a crise só pode ser amenizada e adiada e a situação revolucionária seguirá se desenvolvendo. O certo é que, mais cedo ou mais tarde as classes dominantes atormentadas pela gravidade da crise terão que lançar mão da chamada "ampla reforma política do Estado" como única medida "democrática" e institucional para buscar reciclar e salvar o seu sistema de dominação do colapso geral. As saídas das classes dominantes para sua crise implica em derrotar temporariamente, de forma dissimulada ou aberta, as massas populares nas ruas através da intensificação da repressão geral e destruição das autênticas organizações e instrumentos políticos revolucionários que as mesmas vêm construindo a duras penas.
Como desfecho mais imediato, passe o que passe, todo o sistema se verá desmascarado perante as massas. Não o suficiente para uma derrubada revolucionária da ordem a curto e médio prazos, mas suficiente para elevar a temperatura da situação revolucionária às alturas. Todo o velho sistema de governo e seu velho e podre Estado das classes dominantes reacionárias serão profundamente sacudidos e representará colossal derrota para a "esquerda" eleitoreira e todo oportunismo. De qualquer forma, o cenário é de grande desgaste do Sistema de Governo secularmente vigente e de maior crise de decomposição do Sistema de Poder da reação.
Toda a farsa de democracia estará posta a nu. Toda esta pompa na encenação de democracia deste arremedo de república democrática ostentado pelas classes dominantes, seus políticastros e monopólios de comunicação e por essa "esquerda" oportunista e sem moral alguma, serão abertamente questionados pelas massas e restará aos oportunistas juntar-se aos gritos histéricos de toda a reação de que a "democracia corre perigo". Aí será o momento novo de grande oportunidade para a democracia revolucionária fundir-se profundamente com as mais amplas massas de nosso povo pela causa de sua libertação.
Se o que temos tido não passa de um aleijão, um aborto de democracia, o que é então a democracia e como lutar por ela? A democracia não é uma retórica sobre liberdades e direitos em geral, expedidas em um ordenamento jurídico institucional. A democracia, a República democrática é a manifestação concreta de uma realidade cuja base material sustenta uma ordem em que a maioria das massas trabalhadoras tem assegurado o usufruto do produto de seu trabalho, suas necessidades básicas plenamente atendidas, o controle completo sobre os seus representantes como expressão do seu poder político. O resto não passa de reles mistificação dela. Nas condições de nosso país, para se fazer realidade tal situação, demanda-se solucionar as duas questões básicas, pendentes historicamente e nunca devidamente resolvidas: a questão agrária camponesa e a questão da independência nacional. Somente sobre estas condições pode-se estabelecer o poder do povo e erigir-se um Estado de verdadeira e nova democracia. E tal tarefa só pode ser obtida pela via revolucionária das massas, através de uma potente frente única que tenha base na aliança operária camponesa, sob a direção do partido revolucionário da classe operária, como única condição para se assegurar cumprir sua meta. Esta é a comprovação da experiência histórica dos povos.
Sem revolução democrática não haverá democracia alguma neste país. E esta só pode ser aberta pela revolução agrária para transformar todas as relações de propriedades da terra secularmente vigente no país, liquidar todo o anacrônico sistema latifundiário e colocar de pé o povo brasileiro num acerto de contas com os monopólios da grande burguesia e com o imperialismo, na construção de uma nova economia, nova democracia e nova cultura.
1. Sistema de Governo: Diz respeito à forma de como é organizado e exercido o poder pelas classes dominantes para a manutenção do seu Sistema de Poder. Ou seja, as diferentes formas de governo correspondem ao Sistema de Governo. 2. Sistema de Poder ou Sistema de Estado: Diz respeito à natureza de classes do Estado e de como as classes dominantes estruturam seu poder, o peso e o papel que as mesmas dispõem na organização Estatal dentro da sociedade. 3. Relativo ao Plano Cruzado, instituído por Dílson Funaro, ministro da Fazenda na gerência Sarney, em 1986. Entre as medidas adotadas estão o congelamento de câmbio, preços e salários, instituição do gatilho salarial, extinção da correção monetária e a criação do Cruzado (Cz$), a nova moeda, que equivalia a mil Cruzeiros. A ORTN (Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional) passa a chamar-se OTN (Obrigação do Tesouro Nacional), com o valor inalterado de Cz$106,40 até março de 1987. 4. A taxa SELIC é divulgada pelo Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central. Ela é a taxa básica de juros da economia. Em outras palavras, pode-se dizer que é o custo que os bancos comerciais têm para pegar dinheiro com o Banco Central, fazendo com que a taxa sirva de parâmetro para determinar o custo do capital para todos os setores da economia.