Com a eleição de Luís Inácio da Silva para presidente e o início do governo da frente de partidos encabeçado pelo chamado Partido dos Trabalhadores, suscitou-se, mais do que nunca, a discussão sobre a democracia. A denominação dada pelo PT, e pelos que vão a seu reboque, de "governo democrático popular" às suas administrações municipais e estaduais, agora é estendida ao governo do país. O artigo do professor Fausto Arruda discute, desde a gênese e desenvolvimento histórico, a questão do Estado, da Democracia e da Ditadura e busca fazer a caracterização científica do Estado brasileiro no seu atual estágio, bem como do governo que se inicia.
A primeira parte do artigo, publicada na edição nº 5 de A Nova Democracia, tratou da gênese da organização social e seu desenvolvimento aos dias atuais. Segundo afirma o artigo, o início da civilização está marcado pelo aparecimento da sociedade de classes, cuja origem se assenta no surgimento da propriedade privada e conseqüente relações de troca mercantis, bem como da família monogâmica patriarcal. E que, o aparecimento das classes sociais, que, por sua vez, se assenta nas relações sociais de produção de exploração do homem pelo homem, vai se manifestar, no plano da superestrutura da organização social, na forma específica de uma "força especial de repressão", o Estado. Na existência e ação concretas do Estado, manifesta-se como uma unidade de contrários, ditadura e democracia como aspectos contraditórios e interdependentes.
Ao longo do processo histórico, expõe o professor Arruda, o Estado se desenvolve reforçando sua condição de força especial de repressão, conduzindo-se, com o fim das classes, à sua própria extinção. Esclareceu-se ainda sobre os dois sistemas presentes no Estado, ou seja, sistema de Estado e sistema de governo, ressaltando a diferença entre eles.
Na seqüência, publicamos a segunda parte do artigo que aborda, em particular, o tema A Ditadura Burguesa e a Ditadura Proletária. Para a próxima edição, correspondendo à terceira e última parte, serão abordados os temas: A Ditadura Conjunta de Classes Revolucionárias e a caracterização do Estado brasileiro na atualidade.
Ditadura Burguesa e Ditadura do Proletariado
Dado o grande progresso econômico que se atingiu, particularmente na Europa no século XVIII, foi que a democracia deu seu primeiro grande salto com o advento das revoluções burguesas que instauraram a República democrática. Esta foi a via por excelência, mais fecunda, portanto clássica, pela qual a burguesia, através da violência revolucionária, demoliu a velha e caduca ordem feudal, liquidando suas instituições, completando a transformação que, na base da sociedade, já amadurecera. Libertando e revolucionando assim, ainda mais, as forças produtivas, impulsionando a produção em saltos como nenhuma época até então. Precedeu a este grande acontecimento e correspondente a todo progresso na produção, uma encarniçada luta no terreno do pensamento e da experimentação científica.
Para varrer a ordem feudal era inevitável contrapor-se frontalmente a ela e arrancar o véu clerical que monopolizava toda sua cultura. No campo da filosofia o materialismo retornou ao primeiro plano e de uma forma mais vigorosa que seu bordejo na civilização antiga. A metafísica se desfigurava frente aos progressos materiais e o próprio idealismo saltou ao campo da dialética, movimentos decisivos no pensamento — filosofia e política — dos quais Kant e, principalmente, Hegel foram luminares. Com o materialismo de Feuerbach logo vai se revelar o esgotamento e limite histórico de toda concepção burguesa do mundo e da sociedade. Mas a "… burguesia, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou, finalmente, a soberania política exclusiva no Estado representativo moderno. O governo moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa." 1
A grande indústria fizera surgir, não somente a burguesia moderna, mas, junto dela e na condição antagônica de interesses, o proletariado. O modo de produção capitalista, nascido das entranhas da sociedade feudal em decomposição, revolucionando de forma gigantesca, material e culturalmente, a sociedade, sentou, assim, as bases para uma transformação de magnitude colossal da história, preparou as condições para a abolição da sociedade de classes e sua substituição por uma forma superior de organização social, o socialismo, o comunismo. Somente nesta época, dado o grau de desenvolvimento das forças produtivas que gerou o proletariado como seu produto mais novo e genuíno, foi possível à ciência saltar a um patamar superior. A crítica, do ponto de vista de classe do proletariado, do seu campo de classe explorada, ao que de mais avançado a humanidade havia acumulado conhecimento, a saber, na filosofia expressa na filosofia clássica alemã, na economia política expressa na economia política inglesa e no campo social expresso no pensamento socialista francês, feita por Karl Marx e Engels, fundou o socialismo científico, o marxismo.
A república democrática condensou todo o formidável salto que se operava, colocou as relações sociais em patamares jamais conhecidos na história e consolidou o domínio político da burguesia. Consolida-se o Estado Nacional e os direitos e liberdades democráticas. Porém, "A burguesia só pode existir com a condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações de produção e, com isso, todas as relações sociais…Essa subversão contínua da produção, esse abalo permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes." 2
A burguesia, como classe exploradora e última classe exploradora na história, é de natureza dual, de classe revolucionária que demoliu e sepultou a ordem feudal, passa à guerra permanente com o proletariado, à reação e contra-revolução.
Quanto ao desenvolvimento e organização estatal, ainda que a república democrática significasse grande progresso, a burguesia, dado seu caráter de classe exploradora, reforçou-a na sua condição medular de força pública especial para reprimir. Remontando às análises que Marx faz dos acontecimentos da Comuna de Paris 3, Lenin destaca passagens importantes e as comenta: "No século XIX desenvolveu-se, vindo da Idade Média, ‘o poder centralizado do Estado, como seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura.' Com o desenvolvimento do antagonismo de classe entre capital e o trabalho, ‘o poder de Estado assumia cada vez mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força organizada para a escravização social, de uma máquina de despotismo de classe. Depois de qualquer revolução que marque uma fase progressiva na luta de classes, o caráter puramente repressivo do poder de Estado abre caminho com um relevo cada vez mais acentuado'. O poder de Estado torna-se depois da revolução de 1848-1849, a ‘máquina de guerra nacional do capital contra o trabalho'. O segundo império consolidou isto" 4
E esta essência de força especial para a repressão, mais do que nunca achou razões para aperfeiçoar-se frente ao inevitável, crescente e irreversível conflito de classes, que na sociedade capitalista ganhou contornos bem marcados, dados a velocidade com que o revolucionamento na produção alcançava-se incessantemente. Contudo, "A república democrática e o sufrágio universal constituíram um grande progresso em relação ao feudalismo. Permitiram ao proletariado atingir o grau de união, de coesão, que é hoje o seu, formar organizações disciplinadas que travam uma luta sistemática contra o capital." 5
Neste aspecto, reside toda a importância da democracia burguesa na história, ao adubar o terreno político para que o proletariado, através da revolução leve à democracia, não somente ao seu estágio superior, senão que à própria superação. O regime de livre concorrência, em sua expansão mundial, em meio às guerras nacionais, na segunda metade do século XIX, engendrava os monopólios. E a burguesia francesa já se achava encurralada pela ameaça de ser derrocada do poder pelo proletariado, como foi a experiência da Comuna de Paris (1871), movimento de alcance transcendental, que fez época e marcou indelevelmente a luta de classe entre burguesia e proletariado em todo mundo civilizado. Mas foi com a passagem do capitalismo à sua etapa monopolista que a burguesia revelaria, de forma permanente, todo seu caráter reacionário, em que o aspecto reacionário de sua natureza de classe torna-se principal, dominante, absoluto e definitivo.
Da oscilação à passagem direta para a contra-revolução. É na época do imperialismo — fase monopolista do capitalismo — cuja essência está calcada nos monopólios, surgimento e supremacia do capital financeiro, exportação de capitais e política colonial, que a burguesia revelou todo seu caráter reacionário e toda a sua podridão. Já nos anos 80 do século XIX, Engels, embora não pudesse compreender a passagem do capitalismo à uma nova, superior e particular etapa: o imperialismo, analisava com precisão admirável os elementos da essência desse fenômeno. Numa de suas observações sobre a época, quanto à caracterização da própria república democrática nas condições dadas, afirmava que "A forma mais elevada do Estado, a república democrática, que, em nossas condições sociais modernas vai se fazendo uma necessidade cada vez mais ineludível, e que é a única forma de Estado sob a qual pode dar-se a batalha última e definitiva entre o proletariado e a burguesia, não reconhece oficialmente diferenças de fortuna. Nela, a riqueza exerce seu poder indiretamente, porém de um modo mais seguro. De uma parte, sob a forma de corrupção direta dos funcionários [corpo de administração do Estado], do qual é a América [Estados Unidos da América] um modelo clássico, e, de outra parte, sob a forma de aliança entre o Governo e a Bolsa. Esta aliança se realiza com tanta maior facilidade, quanto mais crescem as dívidas do Estado e mais vão concentrando em suas mãos as sociedades por ações, não só o transporte, senão também a própria produção, fazendo da Bolsa seu centro."6
Determinados pela lei do desenvolvimento desigual do capitalismo e sua passagem à fase monopolista, a época do imperialismo dividiu o mundo entre um punhado de nações avançadas, possuidoras de colônias, opressoras e a grande maioria de nações atrasadas, subjugadas na condição de colônias e semicolônias, oprimidas. A guerra de rapina tornou-se inevitável, e único meio, em últimos termos, para repartir o mundo entre as potências. Lenin muito bem sintetizou que "O imperialismo é uma luta encarniçada das grandes potências pela partilha e repartilha do mundo, e, por isso, tem que conduzir, inevitavelmente, a um reforçamento da militarização em todos os países, inclusive nos neutros e pequenos." 7
O imperialismo, sendo o capitalismo monopolista, capitalismo parasitário, em decomposição e agonizante, como muito bem precisou Lenin, é uma tendência para a reação e a violência. A história do imperialismo é a história do limite e falência históricos do capitalismo e, portanto, da burguesia enquanto classe. Nesta sociedade, a democracia, como ditadura da burguesia imperialista, lançou por terra as bandeiras de soberania nacional e dos direitos e liberdades democráticas, substituindo-as, ora pelo fascismo mais descarado e hediondo, ora por um simulacro de democracia. O que pode ser o balanço da história da burguesia, de uma forma geral, no século XX e o nascente XXI.
Em todo seu curso, quando da agudização da luta de classes, a burguesia violou a própria democracia, suprimindo as liberdades democráticas de imediato e descaradamente. Além do que, de forma geral, a experiência histórica revelou que a passagem do capitalismo à fase monopolista, imperialista, de república democrática só guardou a moldura. A burguesia imperialista rasgou os estatutos que a própria revolução burguesa estabeleceu. Como afirmamos em artigo anterior, "Exercer todo o monopólio, fazer a guerra de rapina e repartir o mundo entre as maiores potências tornou-se a essência do capitalismo sob o domínio dos monopólios e do capital financeiro. Portanto, as guerras tornaram-se inevitáveis na época do imperialismo e só desaparecerão com o fim completo de todo esse sistema de exploração e opressão mundiais. Isto significa que, com o advento do imperialismo, a burguesia jogou por terra de modo definitivo as bandeiras de soberania nacional e a democracia, entrando pela via da negação de toda e qualquer democracia e liberdade, entrando pela via do fascismo, do genocídio e da opressão sem limites, só tornando a erguer tais bandeiras como farsa e para o engano." 8
No referido artigo, tratamos a fundo da questão em respeito à falência histórica da democracia burguesa. Mais que em qualquer outra época anterior, e, não poderia deixar de ser, o Estado como instrumento especial para repressão chegou ao ponto máximo de desenvolvimento. Lenin afirma que "…temos no capitalismo o Estado no sentido próprio da palavra, uma máquina especial para a repressão de uma classe por outra, e, além disso, da maioria pela minoria. Compreende-se que, para êxito de uma coisa como a repressão sistemática da maioria dos explorados pela minoria dos exploradores, é necessária uma crueldade, uma ferocidade extremas da repressão. São necessários mares de sangue, através dos quais a humanidade segue seu caminho nas condições da escravatura, da servidão, do salariado" 9 A história recente conheceu o fascismo em várias modalidades. E ele não é um regime levantado por psicopatas e dementes, como é muito comum caracterizar tais experiências e com isto encobrir suas verdadeiras bases objetivas.
Definitivamente, o fascismo, seja com qual indumentária se apresente, é o regime das frações mais reacionárias do capital financeiro. Já de muito, que a bandeira da soberania nacional e das liberdades democráticas, enfim da República Democrática, passaram às mãos da classe historicamente encarregada de emancipar a humanidade, o proletariado. Hoje, mais do que nunca, tanto aos países imperialistas, quanto aos países dominados, que em sua esmagadora maioria estão subjugados a regimes lacaios do imperialismo, seus sistemas políticos expressam muito bem essa falência. Basta que verifiquemos a prima-dona democracia ianque. Vetusta democracia das canhoneiras, democracia dos senhores da guerra, gendarme do mundo, promotora mundial do fascismo, do terrorismo sem fronteiras.
Estados Unidos, seu fascismo e terrorismo de Estado, não são exceção como querem alguns, senão a expressão concentrada dessa falência histórica a que temos nos referido. As demais potências não são diferentes, são da mesma essência e só se rivalizam pela partilha e domínio do mundo. O imperialismo (e as diferentes potências capitalistas) é o desenvolvimento alternado de colusão e pugna entre estas mesmas potências. Conluiam-se para agredir e subjugar as nações e povos do resto do mundo, contra sua liberdade, e pugnam entre si pela partilha para a exploração e escravização destas nações e das massas. A violência política, a repressão sem limites escondidas pela mídia mundial, é a realidade mais brutal sobre as organizações combativas e revolucionárias nos países capitalistas desenvolvidos. Os demais países dominados, com seu sistema secular serviçal do imperialismo, não são mais que caricaturas das metrópoles. São "democracias" surgidas, não da revolução popular, mas, do rearranjo no Estado dos interesses das carcomidas classes latifundiárias e de grandes burgueses, como manifestação do sistema econômico-social engendrado pelo imperialismo, instituições capengas ungidas por ele, arremedos de república democrática.
Após intervir em tantos destes países, à menor ameaça de qualquer movimento reformista, impondo os mais ferozes e sanguinários regimes, o imperialismo impõe, sanciona, hoje, como regra, a aceitação por sua "comunidade internacional", somente a via constitucional dos mais podres e corruptos processos eleitorais, como meios válidos para que o povo manifeste suas aspirações. Caso contrário, em nome da democracia e dos direitos humanos, enviam os marines. O que se pode chamar hoje de democracia burguesa, não passa de uma marcha sinistra, hedionda, um sistema mafioso de achaques, chantagens e ameaças, de matanças e genocídios. É uma coluna errante de toda a maquinaria de morte, uma caravana macabra que deixa o rastro de sangue e corpos despedaçados. Um teatro de opressão e horror. À sua testa vai Bush, hasteando suas negras bandeiras onde o cinismo sem limites inscreveu as palavras paz e democracia.
A Ditadura e Democracia Proletárias
As questões essenciais sobre a ditadura e democracia proletárias são: 1) quanto aos meios de alcançá-las; 2) quanto à sua forma e conteúdo e; 3) de como processa sua própria superação.
Primeiro, quanto aos meios de alcançá-la devemos destacar que Marx, em toda sua obra, marcou com relevo, "…que a república democrática é a via de acesso mais próxima para a ditadura do proletariado. Pois, tal república, não eliminando de modo nenhum o domínio do capital e, conseqüentemente, a opressão das massas e a luta de classes, conduz inevitavelmente a um tal alargamento, desenvolvimento, patentização, agravamento desta luta que, uma vez que surge a possibilidade de satisfazer os interesses fundamentais das massas oprimidas, esta possibilidade se realiza inevitável e unicamente na ditadura do proletariado, na direção destas massas pelo proletariado." 10
Ao criticar o programa do Partido Operário Alemão, em 1875, sobre a questão do socialismo Marx afirmou que "Entre a sociedade capitalista e a comunista fica o período da transformação revolucionária de uma na outra. Ao qual corresponde, também, um período político de transição cujo Estado não pode ser senão a ditadura revolucionária do proletariado." 11
Por sua vez, nessa transição, para o estabelecimento e realização dessa ditadura não bastaria ao proletariado tomar para seu controle o poder de Estado da burguesia, tomar o controle do aparelho de Estado burguês. Após os acontecimentos da Comuna de Paris, Marx observou a necessidade de retificar em O Manifesto do Partido Comunista,uma questão de fundo. Exatamente a que se referia à conquista do poder de Estado pelo proletariado, o que Engels fez constar no prefácio à sua Edição Alemã de 1872. Como resultado das novas condições que se desenvolvera a revolução com a Comuna de Paris, Marx, ao submeter ao mais rigoroso balanço esta experiência verificou que "a classe operária não pode limitar-se, simplesmente, a tomar posse da máquina do Estado tal e como está e servir-se dela para seus próprios fins." 12
Haveria de quebrar toda a velha máquina burocrático-administrativa-militar em que constituiu-se o Estado de forma mais desenvolvida com o capitalismo e substituí-la por outra e nova. Esta, tornou-se a pedra angular da transição do Estado da ditadura burguesa à ditadura proletária. Nela reside a diferença. O salto qualitativo que separa a ditadura proletária da burguesa e de todas antecedentes. Sem quebrar essa velha máquina burguesa de repressão, estivesse ela na forma monárquica ou republicana, seria impossível à classe operária e às massas populares, manter-se no poder e realizar seu programa de libertação, menos ainda, edificar uma nova sociedade sem exploração do homem.
Segundo, quanto às formas e conteúdo que se revestem a ditadura e democracia proletárias, as experiências das revoluções resolveram, no fundamental, a questão. Muitas revoluções sucederam-se no século XX. Particularmente, a Revolução Russa de Outubro de 1917 e a Revolução Chinesa foram escolas de gigantescos ensinamentos para a luta dos explorados, em particular, e para humanidade em geral. No entanto, elas aprenderam o caminho tomando, uma após outra, suas experiências em que a Comuna foi a mãe de todas. O fracasso é mãe do êxito, diz o antigo provérbio. A Comuna foi, no fracasso e no êxito, mãe das grandes transformações sociais que inauguraram uma Nova Era para a humanidade. O que os operários de Paris, organizados em poder na Comuna, realizaram em parcos dois meses revelou maravilhas. E foi exatamente neste ponto que a experiência da Comuna resolveu o caminho para a transformação revolucionária para por fim a toda a exploração, que ela mais falhou. Como observou Marx, o fato de a Comuna não ter exercido de forma mais enérgica a ditadura revolucionária sobre os exploradores, exatamente por ter dado tempo ao rebotalho reacionário encabeçado pelo traidor da França, Thiers, que fugiu para Versalhes, possibilitou à contra-revolução estruturar-se. Tal paradoxo explica-se pela carência por parte dos insurretos de um verdadeiro partido proletário que mantivesse de forma inflexível e levasse até as últimas conseqüências a sua ditadura.
Ao desbaratar toda a maquinaria de burocratas e aparatos repressivos, os operários de Paris criaram um novo Estado, completamente diferente e oposto aos anteriormente conhecidos na história. O primeiro decreto da Comuna foi a destituição do exército permanente e sua substituição pelo povo armado. "A este respeito é particularmente notável uma medida da Comuna sublinhada por Marx: abolição de todos as verbas de representação, de todos os privilégios pecuniários dos funcionários, redução dos vencimentos de todos os funcionários do Estado ao nível do ‘salário de operários'. É aqui, exatamente, que se manifesta de modo mais evidente a viragem da democracia burguesa para a democracia proletária, da democracia dos opressores para a democracia das classes oprimidas, do Estado como ‘força especial' para a repressão dos opressores pela força geral da maioria do povo, dos operários e dos camponeses" 13
As revoluções proletárias seguintes se apoiaram na magnífica e transcendental experiência da Comuna que representou, sem dúvidas, o ensaio geral da revolução proletária mundial. Dela, Marx extraiu, de forma minuciosa e rigorosamente científica, a doutrina da revolução proletária, mais desenvolvida e confirmada cabalmente pela revolução de Outubro de 1917, sob a direção teórica e prática do Partido Bolchevique. Todas as peripécias que o proletariado enfrentou no curso de tantas revoluções agigantaram sua doutrina sobre o Estado e colocou este problema como questão crucial, teórica e prática, da época do imperialismo. A construção do socialismo na URSS, sem passar um só dia sem provocações, pressões, sabotagens e toda sorte de conspirações por parte da reação interna e externa, constituiu-se numa escala de democracia, até então desconhecida, da participação popular na produção material e cultural, enfim do controle e gestão do Estado. Somente a revolução chinesa, com a Grande Revolução Cultural Proletária a superou e conduziu a experiência da ditadura do proletariado, a democracia proletária a seu patamar mais elevado em toda a história.
A Grande Revolução Cultural Proletária na China mobilizou centenas de milhões de massas trabalhadoras, construtoras do socialismo, em torno das questões ideológicas e do Poder. Na produção de forma geral expressou-se através das Comuna Populares. Na esfera da superestrutura, do Poder político, da ditadura e democracia proletárias, através dos Comitês Revolucionários Três em Um.14
Neles estavam representados diretamente, aos moldes da Comuna de 1871, os operários, camponeses, soldados, estudantes, intelectuais, revolucionários, eleitos nas assembléias de cada unidade de produção, de trabalho, de estudo e investigação e das atividades militares, para mandatos revogáveis a qualquer momento. Os Comitês Revolucionários estavam organizados numa estrutura reproduzida do nível local ao nacional, unidos segundo os princípios do centralismo democrático. Não aqui, mas, oportunamente, analisaremos a experiência histórica da ditadura do proletariado, seus êxitos, erros e limites, os problemas da restauração capitalista, suas causas, as bases econômicas, políticas e ideológicas que a possibilitaram, bem como das suas conseqüências para a revolução proletária mundial na atualidade. No momento, apenas registramos a experiência concreta da construção socialista para expor as formas e conteúdo que revestem a ditadura e democracia na transição do capitalismo para o comunismo, ou seja, na sua fase inferior, o socialismo.
A Grande Revolução Cultural Proletária na China, resolveu o problema da continuidade da revolução proletária e da luta de classes nas condições da ditadura do proletariado. Questão que não foi devidamente resolvida e compreendida na experiência soviética. Na luta contra os restauradores do capitalismo na URSS, a direção revolucionária da China, na defesa do marxismo e em combate frontal com os modernos revisionistas, pôs em relevo, entre inúmeras questões, o problema da ditadura do proletariado, o problema da compreensão de que no socialismo existem classes e luta de classes e da necessidade de o proletariado exercer sua ditadura de forma omnímoda sobre a burguesia em todo período que abarca a construção socialista para e, até, conduzir à abolição das classes na sociedade. Tal experiência confirmou, ao contrário do que pretendiam os falsificadores do marxismo, quanto à doutrina sobre o Estado, que em todas sociedades de classes, as classes antagônicas conformam uma unidade de contrários e que, portanto, a sociedade socialista, como uma sociedade de classes, proletariado e burguesia são os dois aspectos contrários e interdependentes da contradição. Ou seja, que a sociedade socialista é uma unidade de contrários, onde o proletariado é o aspecto principal e dominante e a burguesia expropriada dos meios de produção e despojada de poder político e de liberdade, é o aspecto secundário e dominado. Isto significa que a necessidade e existência da ditadura do proletariado têm como antítese direta a existência da burguesia como classe subjugada.
No entanto, a sociedade socialista não é uma simples inversão das posições das classes antagônicas e, menos ainda, o desaparecimento da burguesia enquanto classe. Corresponde às leis da dialética materialista, de que na luta dos aspectos contrários de uma unidade, em determinadas condições, um tende a se transformar no outro, ou seja, que cada um dos aspectos transforma-se no seu contrário. Ao ocorrer isto, completado a superação daquela contradição, concluído o fenômeno ele dá lugar a outro e novo fenômeno. De classe dominada em luta contra a burguesia como classe dominante, que caracteriza em essência a sociedade capitalista, nas condições da revolução triunfante, estas classes transformam-se cada uma no seu contrário: o proletariado passa à condição de classe dominante e a burguesia à de classe dominada. Só que, aí já não é mais o mesmo fenômeno, sociedade capitalista, mas sim um outro e novo, a sociedade socialista. O que caracteriza este novo fenômeno não é a simples inversão de posições das classes, mas, sim, novas relações sociais que passarão cada vez mais a predominar a partir da supressão da propriedade privada dos meios de produção e distribuição, agora socializados. Portanto, o proletariado aqui não é mais o mesmo de antes, não é mais classe explorada e assalariada, tampouco a burguesia é a mesma. Foi expropriada, não detém mais a propriedade dos meios de produção e nem explora mais a força de trabalho dos proletários.
Em terceiro, que como todo fenômeno, a sociedade socialista, nas suas mais diferentes fases de desenvolvimento — entenda-se por desenvolvimento não um movimento uniforme e retilíneo, mas sim dialeticamente, como tudo é — é uma unidade de contrários e que cada um dos aspectos desta contradição só pode desaparecer junto ao seu contrário, como superação de todo fenômeno, dando lugar a outro e novo. Já aqui, este outro e novo fenômeno, não mais uma sociedade de classes, e, sim, a sociedade sem classes. De forma tal, que a ditadura do proletariado existirá para fazer desaparecer todo e qualquer vestígio de classes. E ela, como a forma última do Estado na história da sociedade, se extinguirá com o desaparecimento destas classes, no caso, ambas, proletariado e burguesia. Isto por si só é indicativo que este trânsito não pode se dar de um só e único golpe e da noite ao dia. Se processará por etapas e de forma ziguezagueante, percorrendo um período histórico mais ou menos longo.
Extinção do Estado e superação da Democracia
A experiência da ditadura do proletariado ao longo do século XX correspondeu e desenvolveu a doutrina marxista sobre o Estado. Por um lado, confirmando as leis da concepção materialista histórica e sobre a superação da democracia, os fundadores do socialismo científico puderam apenas bordejar. Por outro, elevou esta doutrina para responder a todo este período transcendental da história da humanidade — o da eliminação total e cabal da exploração do homem pelo homem, das diferenças entre o trabalho manual e intelectual, entre o homem e mulher, entre a cidade e o campo. Sobre a extinção do Estado, ainda que de passagem julgamos necessário distinguir a concepções marxista e anarquista. Para fazê-lo de forma breve, recorremos aqui a um resumo esclarecedor apresentado por Lenin: "A distinção entre os marxistas e os anarquistas consiste em que: 1) os primeiros, colocando como seu objetivo a completa supressão do Estado, reconhecem que este objetivo só é realizável depois da supressão das classes pela revolução socialista, como resultado da instauração do socialismo, que leva à extinção do Estado; os segundos querem a supressão completa do Estado de um dia para o outro, sem compreenderem as condições da realização de tal supressão; 2) os primeiros reconhecem a necessidade para o proletariado, depois de ter conquistado o poder político, de destruir inteiramente a velha máquina de Estado, de a substituir por uma nova, que consiste na organização dos operários armados, segundo o tipo da Comuna; os segundos, defendendo a destruição da máquina de Estado, tem uma idéia absolutamente confusa de pelo que o proletariado a substituirá e como usará o poder revolucionário; os anarquistas negam mesmo o emprego do poder de Estado pelo proletariado revolucionário, a sua ditadura revolucionária; 3) os primeiros exigem a preparação do proletariado para a revolução por meio do emprego do Estado moderno; os anarquistas negam isto" 15
Em síntese, a questão que necessitamos responder aqui é quanto ao caráter da ditadura proletária e sua diferenciação das demais. O essencial nesta questão, é que sua missão histórica é a de conduzir à abolição das classes através da socialização dos meios fundamentais de produção e distribuição, e da participação crescente de todos no controle e gestão pública, para o que necessita o Estado proletário, ou seja, as massas populares armadas e sob a direção do proletariado exercer a supressão da liberdade e democracia para as classes exploradoras e opressoras. O distingue portanto, das formas anteriores de Estado, porque já não é mais completamente o mesmo Estado, a mesma força pública especial para a repressão conhecida ao longo da história da civilização, particularmente no Estado burguês.
Mas, ao mesmo tempo, trás em si aspectos do Estado burguês quanto ao problema do direito. Em toda fase do socialismo ainda prevalecerá o direito burguês, não por completo, mas, em parte. Marx afirma que "…estes inconvenientes são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista [o socialismo], tal como precisamente saiu da sociedade capitalista, após longas dores de parto. O direito nunca pode ser superior à configuração econômica — e ao desenvolvimento da cultura por ela condicionada — da sociedade… " 16
A parte do direito burguês que é superado no socialismo é quanto à propriedade dos meios de produção que nele é comum, é propriedade social de todos os produtores. O direito burguês reconhece sua propriedade privada por indivíduos e o socialismo faz dele propriedade comum. Mas, quanto à distribuição dos produtos prevalece o direito burguês, na medida que se estabelece a igualdade para todos. Para igual quantidade de trabalho, igual quantidade de produtos. Sendo os homens diferentes, na sociedade, uns são mais fortes, outros mais fracos, uns tem filhos, outros não, uns tem mais filhos que outros. A injustiça não está eliminada e a igualdade é uma igualdade de fundo burguês. O Estado burguês é a afirmação do direito de todos perante a lei, ou seja, exploradores e explorados. O socialismo, ao contrário, reconhece as desigualdades. No entanto, para se chegar a aplicação deste critério como justo faz-se necessário eliminar, não somente, toda a propriedade privada dos meios de produção via sua socialização, mas transformar por completo os hábitos e costumes baseados na propriedade privada para eliminar toda e qualquer diferenciação de classes até à sua abolição completa através de sucessivas revoluções culturais de caráter proletário. Nesta fase, as relações sociais devem ser regidas pela fórmula de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo seu trabalho. Aqui temos, então, a vigência do direito burguês. O Estado existe apenas como o protetor da propriedade social dos meios de produção e para- impedir qualquer forma de exploração do homem. Desaparecidas as classes e quaisquer de seus vestígios, não existe mais o capitalista explorador, não há mais resistência capitalista. Todos participam da produção e da gestão publica de todos os assuntos, então o Estado torna-se supérfluo e extingue-se por completo e todos seus vestígios, passando as relações regerem-se por de cada um segundo sua capacidade e a cada um segundo suas necessidades.
A Ditadura Conjunta de Classes revolucionárias
Tratamos, então, do trânsito que a sociedade percorre na luta pela sua emancipação, observando que a sociedade de classes constitui-se o estágio particular da civilização em que a luta de classes é o seu motor, que ela conduz inevitavelmente à ditadura do proletariado, cuja missão é a da abolição das classes. Dentro deste estágio, a cada uma das etapas históricas ou modos de produção corresponderam determinadas classes sociais, cuja inevitável luta entre si, estava condicionada pelo grau de desenvolvimento das forças produtivas daquela etapa. Destacamos na história moderna a importância do advento das revoluções burguesas que, ao instalar sua ditadura inauguraram a república democrática e que sob ela, a batalha entre o proletariado e a burguesia, resultou ser a via de acesso mais próxima para a ditadura do proletariado.
No entanto, a história moderna não conheceu apenas estes dois tipos de ditadura: a burguesa e a proletária. As velhas revoluções democráticas burguesas instauraram a ditadura burguesa e as revoluções proletárias instauraram a ditadura do proletariado. Entretanto, segundo o desenvolvimento desigual do capitalismo no mundo e com a passagem do capitalismo de sua etapa de livre concorrência à etapa monopolista, o mundo ficou dividido entre um punhado de nações adiantadas opressoras e o resto, grande maioria, de nações atrasadas oprimidas. Tal fenômeno constituiu-se, num determinado tempo, num único sistema capitalista imperialista, num único mercado mundial. Com a revolução russa de 1917 rompeu-se o monopólio do sistema imperialista no mundo, bem como o mercado mundial único. Com a Segunda Guerra Mundial, guerra pela repartilha do mundo entre as potências imperialistas, a revolução proletária saltou a um grande patamar, ruiu-se o velho sistema colonial capitalista e estrei-tou ainda mais o mercado capitalista mundial. Este período histórico marca, de uma forma geral, o início de novos acontecimentos para a luta de libertação do proletariado e das nações oprimidas pelo imperialismo. Nele, surgirá, como resultado das lutas de libertação nos países dominados pelo imperialismo, um outro tipo de ditadura que já não é mais a ditadura burguesa e nem é ainda a ditadura proletária, senão uma ditadura conjunta de classes revolucionárias. Ou seja, não é mais a velha democracia burguesa e nem é ainda a democracia proletária. Como transição entre uma e outra é uma democracia burguesa, porém de tipo novo. É democracia burguesa, porque não suprime a propriedade privada em geral, senão que nacionaliza a grande propriedade monopolista. Porém, é democracia de tipo novo porque situa-se na época imperialista, pertence à categoria de revolução proletária mundial e se estabelece sob a hegemonia do proletariado. É, precisamente, a ditadura que corresponde ao domínio conjunto de classes oprimidas pelo imperialismo, pela grande burguesia dos países dominados e grandes proprietários de terra, sendo elas o proletariado, o campesinato, a pequena burguesia (além do campesinato) e a média burguesia.
Ditadura conjunta esta, que só pode desenvolver-se estando sob a hegemonia do proletariado e baseada na aliança deste com o campesinato, principalmente sua camada mais pobre que representa sua esmagadora maioria. Esta ditadura conjunta de classes revolucionárias se estabelece via revolução democrática burguesa nos países dominados pelo imperialismo, portanto na época do imperialismo, sendo, assim, então parte integrante da época da revolução proletária mundial. Não pertencendo à revolução mundial burguesa, fenômeno superado, historicamente, com o advento do imperialismo, essa revolução democrática só pode ser levada a cabo sob a hegemonia do proletariado. Como revolução democrática burguesa não pertence à classe das velhas revoluções democráticas burguesas e são, assim, revoluções democráticas burguesas de um novo tipo. Seu conteúdo é democrático e nacional, seus alvos são as classes exploradoras — grande burguesia e grandes proprietários de terras — que, juntos com o imperialismo, oprimem o povo e a nação. Suas tarefas são as de confiscar estas classes reacionárias, nacionalizar todo o grande capital nacional e estrangeiro, entregar a terra aos camponeses pobres sem terra ou com pouca terra, libertar as forças produtivas de forma geral e, particularmente, no campo, impulsionar uma nova economia, uma nova política e uma nova cultura, enfim, uma nova democracia. Tal revolução, do ponto de vista medular, da conformação estatal, dá lugar não à velha democracia e, sim, a uma democracia de tipo novo.
Democracia burguesa de novo tipo ou Nova Democracia
Ao assinalar o caráter burguês da revolução na Rússia no início do século XX, Lenin advogava que o proletariado era o mais interessado na revolução democrática e que o mesmo não poderia colocar-se à margem do processo, nem mesmo delegar à burguesia sua direção. Muito pelo contrário, sustentava ele, que o proletariado deveria atuar ativamente na luta por unir-se às amplas massas do campesinato e dirigir a revolução por sua vitória decisiva. Por vitória decisiva, definia a destruição completa do regime tzarista através da derrubada violenta da autocracia e instauração, em seu lugar, da república democrática, liquidando todo o regime de servidão na Rússia. Afirmava que, deixar a direção da revolução a cargo da burguesia era condenar a revolução ao pântano, pois, a burguesia, ainda que interessada na democracia, trabalhava, não pela sua completa realização, e sim, por seus interesses egoístas, que ao serem atendidos com algumas reformas concedidas pelo tzar, se poriam de acordo com a nobreza e instalariam, nada mais que um regime constitucional monárquico. Isto representava paralisar a revolução democrática, não levá-la a termo. Lenin defendia, assim, a transformação da revolução democrática em revolução socialista. "Da revolução democrática começaremos a passar, em seguida, e precisamente, na medida de nossas forças, das forças do proletariado consciente e organizado, à revolução socialista. Nós somos partidários da revolução ininterrupta. Não pararemos no meio do caminho…" 17
Triunfando a revolução sob a direção do proletariado deveria se conformar um governo provisório revolucionário, expressão da ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato.
A revolução russa de 1905 foi derrotada, mas, passados doze anos, em meio da guerra imperialista (Primeira Guerra Mundial 1914/1918), em fevereiro de 1917, ela voltou a eclodir e, desta vez, triunfante. Já nas jornadas de 1905, como instrumento de sua luta, o proletariado revolucionário russo havia criado os sovietes (conselhos de delegados eleitos diretamente nas fábricas) e novamente na revolução de fevereiro reapareceram com grande vigor. Neste momento, Lenin, ao contrário do que postulara em 1905, não defende mais a participação do proletariado no governo provisório surgido da revolução. Julgava que, na nova situação, o governo provisório era a representação do poder da burguesia enquanto que o proletariado havia criado seus próprios órgãos de poder, os sovietes. Situação que caracterizou como de dualidade de poder.
Quando alguns partidários de Lenin, defendendo a participação no governo provisório, reclamavam que ele rompia com sua tese de que o proletariado deveria assumir a direção da revolução democrática burguesa e alargar ao máximo a liberdade política nos seus limites, respondia que quem representava a revolução democrática burguesa, naquele momento, não era o governo provisório, e sim, os sovietes de operários, camponeses e soldados. Que nos sovietes se realizara a ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato, e que, no fundamental, a revolução democrática nas particularidades da Rússia havia se realizado. E, em conseqüência, afirmava que se a revolução não avançasse imediatamente à etapa socialista através da passagem de todo poder aos sovietes, as conquistas democráticas seriam suprimidas pela contrarevolução encabeçada pela burguesia e toda a reação unida. Contudo, os partidos que detinham a hegemonia nos sovietes, representantes da pequena-burguesia, mantinham os sovietes a reboque do governo provisório, abrindo, assim, uma grande brecha para que a contra-revolução avançasse.
Em outubro do mesmo ano, encabeçado pelo partido de Lenin, o proletariado se levantou novamente em insurreição, derrubou o governo provisório e entregou o poder ao Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia. Estes acontecimentos do ano de 1917 na Rússia, confirmaram por completo as teses de Lenin sobre o papel do proletariado na revolução democrática burguesa, que, com sua derrota em 1905, não pôde se verificar com tanta clareza como em fevereiro de 1917. Encabeçar a revolução democrática para preparar as condições para a revolução socialista, nisto consistia as tarefas do proletariado na revolução democrática burguesa na época do imperialismo.
No entanto, na época do imperialismo e com o advento da revolução proletária de Outubro de 1917, a burguesia havia passado por completo para o campo da reação. Ou seja, havia terminado a época da revolução burguesa mundial e iniciado a época da revolução proletária mundial. Com o triunfo da revolução proletária na Rússia, com o proletariado no poder, a burguesia obrigatoriamente passava totalmente ao campo da contra-revolução. Dessa forma, as revoluções democráticas burguesas, que estavam em curso nos países oprimidos pelo imperialismo, países coloniais e semicoloniais, passavam a pertencer à categoria da revolução proletária mundial. Ou seja, que as revoluções democráticas pendentes no mundo só poderiam ser levadas a cabo sob a direção do proletariado e contar com o apoio internacional somente do proletariado revolucionário. Isto modificava a qualidade da revolução democrática burguesa.
Lenin aprofundou suas teses sobre a revolução democrática nos congressos da Internacional Comunista. Tratando do problema colonial e nacional, fazia destacar que "…Qual é a idéia mais importante, a idéia fundamental de nossas teses? É a distinção entre nações oprimidas e nações opressoras. Nós sublinhamos esta distinção, em oposição à II Internacional18 e a democracia burguesa."19 Esta distinção que destacava como a de um grande número de nações oprimidas, por um lado e de um número insignificante de nações opressoras, por outro, é o pano de fundo de todas as relações econômicas e políticas no mundo na época do imperialismo. Destacava ainda, em decorrência dessa compreensão, a questão do movimento democrático burguês nos países atrasados. Mostrava a necessidade de diferenciar nestes movimentos a posição da burguesia e a do proletariado e propunha utilizar a denominação de "nacional-revolucionário" para caracterizar o movimento liderado pelo proletariado. Precisava a questão afirmando que "Não cabe a menor dúvida de que todo movimento nacional só poder ser um movimento democrático burguês, pois a massa fundamental da população nos países atrasados constituem os camponeses que representam as relações capitalistas burguesas." 20 e que, portanto, se caracterizasse apenas como "movimento democrático burguês" apagaria toda a diferença entre o movimento reformista e o revolucionário.
"…nos últimos tempos, esta diferença entre o movimento reformista se manifestou com plena clareza nas colônias e nos países atrasados, já que a burguesia imperialista trata por todos os meios que o movimento reformista se desenvolva também entre os povos oprimidos. Entre a burguesia dos países exploradores e das colônias, se produziu certa aproximação, devido à qual e muito amiúde — e quiçá, inclusive, na maioria dos casos —, a burguesia dos países oprimidos, em que pese a prestar seu apoio aos movimentos nacionais, luta, ao mesmo tempo, de acordo com a burguesia imperialista, quer dizer, ao lado dela, contra todos os movimentos revolucionários e as classes revolucionárias.". Em seguida conclui que o sentido de tal diferenciação é o de que "como comunistas devemos apoiar e apoiaremos os movimentos burgueses de libertação nas colônias, somente no caso de que estes movimentos sejam verdadeiramente revolucionários, só no caso de que seus representantes não nos impeçam deeducar e organizar num espírito revolucionário aos camponeses e as grandes massas exploradas. Se não se dão estas condições, os comunistas devem lutar em ditos países contra a burguesia reformista, a qual pertencem também os heróis da II Internacional. Nas colônias existem já partidos reformistas, e seus representantes se denominam às vezes social- democratas e socialistas." 21
Ainda, sobre o conteúdo do movimento nacional-revolucionário, as revoluções de libertação, revoluções democráticas dos países dominados pelo imperialismo, Lenin, ao lado de ressaltar seu caráter burguês, advoga a necessidade do papel dirigente do proletariado nelas, como condição sine qua non, para que as mesmas se qualificassem revolucionárias.
E isto, estava em função de que o novo poder, a ditadura revolucionária que aí se instalasse, não poderia ser uma ditadura burguesa para desenvolver o capitalismo, e sim uma ditadura sob a direção do proletariado para libertar a nação do domínio imperialista, das relações pré-capitalistas, do poder da grande burguesia aliada aos latifundiários, e que, ainda que mantendo a propriedade privada, impulsionasse o desenvolvimento das forças produtivas preparando as condições para passar ininterruptamente à etapa socialista da revolução. E que, a organização estatal do novo poder revolucionário surgido das revoluções democráticas dos países dominados pelo imperialismo, devia se revestir da mesma forma soviética (conselhos): "É evidente que mesmo as massas oprimidas — exploradas não só pelo capital mercantil, senão também pelos senhores feudais e por um Estado que se assenta sobre bases feudais — podem aplicar também esta arma, este tipo de organização, nas condições em que se encontram. A idéia da organização soviética é simples e capaz de ser aplicada não só nas relações proletárias, senão também às relações camponesas feudais e semifeudais." 22
Lenin chamava a atenção, inclusive, para o problema de que, nos países em que o capitalismo não se desenvolvera ainda, onde prevaleciam relações feudais e semifeudais, não era inevitável o desenvolvimento capitalista. Nas condições da época, em que a revolução proletária progredia, em que existiam cada vez mais novos países no campo da revolução proletária, tais países muito atrasados poderiam passar, através de determinadas etapas, à construção do socialismo, desde que contassem com o suporte de determinados meios por parte dos países socialistas. Estes aportes de Lenin ao problema da revolução democrática na época do imperialismo foram sustentados por Stalin e a Internacional Comunista. Mas, será com a revolução chinesa e seu prolongado processo, que os problemas teóricos da revolução democrática na época do imperialismo, ganharão seu maior desenvolvimento e formulação completos.
1 Karl Marx e Friedrich Engels — O Manifesto do Partido Comunista — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 2 Idem 3 De Guerra Civil em França — Karl Marx 4 Lenin — O Estado e a Revolução — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 5 Lenin — Do Estado, Editora Centelha,Lisboa 6 Friedrich Engels — A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado — Obras Escolhidas Marx e Engels, Editorial Progresso 7 Lenin — O Programa Militar da Revolução Proletária — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 8 Fausto Arruda — O fim da História da Democracia Burguesa e Época da Democracia Popular, ADN nº 3 9 Lenin — O Estado e a Revolução — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 10 Idem 11 Karl Marx — Crítica ao Programa de Gotha 12 Karl Marx — Guerra Civil em França — Obras Escolhidas Marx-Engels, Editorial Progresso 13 Lenin — O Estado e a Revolução — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 14 Os Comitês Três em Um surgiram como resultado da mobilização das centenas de milhões de massas, na luta classes, na produção e na investigação e estudos, a partir do ano de 1966. Eram formados por um representante da Velha guarda do Partido Comunista partidária da Revolução Cultural Proletária, de um representante do Exército Popular de Libertação e de um representante das massas (operários, camponeses, intelectuais e estudantes). 15 Lenin — O Estado e a Revolução — Obras Escolhidas, Editorial Progresso 16 Karl Marx — Crítica ao Programa de Gotha 17 Lenin — A Atitude da Socialdemocracia Frente ao Movimento Camponês — Sobre a Questão Agrária — Seleção de Textos, Editorial Progresso 18 II Internacional: organização internacional dos partidos socialistas, fundada por Engels em 1889. Ao começar a guerra imperialista mundial de 1914 – 1918, os chefes da II Internacional traíram a causa do socialismo e se passaram para o lado de seus governos imperialistas. A II Internacional se desagregou. Os partidos e grupos de esquerda que antes pertenciam à II Internacional aderiram à Internacional Comunista (a III), fundada em Moscou, em 1919. A II Internacional foi restaurada no mesmo ano na Conferência de Berna (Suíça). Nela entraram unicamente os partidos que representavam a ala direita, oportunista, do movimento socialista (Nota da Editorial Progresso). 19 Lenin — Informe da Comissão para os Problemas Nacional e Colonial no II Congresso da Internacional Comunista — 26 de julho de 1920. Editorial Progresso 20; 21e 22 Idem