Desigualdade se aprende na escola

Desigualdade se aprende na escola

Desde 1997, o fenômeno de “proletarização” das camadas inferiores, médias e altas da pequena burguesia urbana nacional vem gerando diversas consequências, entre elas o retorno à rede pública estadual e municipal de ensino dos filhos desta burguesia, que não conseguiu arcar com os altos custos da mensalidade das escolas particulares.

O encontro dos filhos da pequena burguesia com os do proletariado acaba por gerar conflitos e situações que retratam os mecanismos do sistema de classes e sua legitimação a partir das instituições do Estado, dentre as quais se destaca a escola. O tema foi objeto da tese de dissertação de doutorado em sociologia da educação intitulada As novas faces da desigualdade no cotidiano escolar, de autoria da Professora Doutora Iracema de Macedo Paim para a Universidade Federal Fluminense do Rio de Janeiro, em Niterói, defendida em 2003.

Em entrevista a AND, a autora destaca os principais aspectos da tese assim como sua vivência, porque além de observadora e pesquisadora dos procedimentos sociais, a professora Iracema desempenha a função institucional de Diretora de uma escola da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, localizada no bairro de Copacabana. Lá, observou empiricamente as manifestações de conflitos que inspirariam a escolha do objeto de tese:

— Comecei a perceber, através do próprio procedimento administrativo escolar, matrículas novas e um número expressivo de transferências das escolas particulares para a escola pública que dirijo. Desde então, pude testemunhar manifestações de todos os tipos de violência: simbólica, material, cultural e física. Entre os alunos, desde agressões físicas e verbais até a violência simbólica e material exposta nas roupas, lancheiras e materiais escolares mais caros demonstrando assim o poder econômico de uma classe sobre a outra. — Afirma a autora.

A metodologia da pesquisa foi realizada a partir das trajetórias escolares dos alunos que efetivaram matrícula no primeiro ano do ensino fundamental da escola, entre os anos de 1997 e 2000, período em que houve um retorno expressivo dos alunos de todas as camadas da pequena burguesia urbana à escola. Comparou-se o desempenho destes alunos, expresso em conceitos, assim como as referências a estes feitas pelo corpo docente durante os Conselhos de Classe, além da análise da relação destes alunos com os de classe popular.

Observando a micro estrutura do espaço escolar pode-se ter uma representação da macro estrutura em que o mundo está atualmente inserido, sob a égide do imperialismo, que lança um discurso de exclusão das classes populares. Discurso este reproduzido pelo Estado em suas instituições, neste caso a escola.

A reprodução do discurso imperialista que dentre outros aspectos incita a segregação, faz com que haja uma diferenciação não só entre os alunos, demarcada por conflitos que chegam a gerar violência física, como também é incentivada pelos pais, funcionários e os próprios professores.

Professores de preconceito

A discriminação feita pelos próprios professores é outro aspecto importante abordado na tese. O monopólio dos meios de comunicação, a serviço dos detentores do poder econômico, propaga de maneira superficial que a educação é o caminho para as transformações sociais. No entanto, o que se vê nas escolas (sendo atestado pela referida tese) é a reprodução do discurso que legitima o sistema excludente onde os próprios professores discriminam os alunos mais pobres, dando preferência aos que têm maior renda.

A separação entre os alunos é estimulada pelos professores, através da divisão de grupos em sala de aula e também nas atividades recreativas:

— O professor já olha para o aluno pela sua hexis corporal (conceito do sociólogo francês Pierre Bourdieu), ou seja, sua forma de falar, sentar, vestir, comer. Sendo assim, os professores já alijam automaticamente os alunos e incentivam a divisão em grupos tanto na sala de aula quanto no recreio. Já testemunhei professores repreendendo os alunos mais pobres por indisciplina na sala de aula através de comparações com os alunos das camadas médias urbanas*, desencorajando os alunos mais pobres de freqüentar a escola pois lá já não era mais o lugar deles e sim de crianças “educadas” — confirma a Doutora Iracema.

Além disso, percebe-se também uma maior atenção com os alunos das camadas inferiores, médias e altas da pequena burguesia urbana em detrimento dos demais, de forma a simular o ambiente de uma escola particular, sem a presença “incômoda das crianças pobres”, havendo inclusive a prestação de serviço de aulas particulares para reforçar o aprendizado dos alunos de maior renda.

Os critérios, aparentemente subjetivos, de preferência de um professor por determinado aluno nada mais são do que a reprodução do pensamento das elites nacionais e do imperialismo que tentam sempre encobrir a origem de sua riqueza: a exploração. Desta forma, justifica-se a exploração dos povos através de falsos discursos institucionais como a superioridade cultural, racial, intelectual e técnica de modo a justificar as rapinagens, massacres e genocídios do imperialismo através do mundo. Sendo assim, os professores nada mais fazem do que reproduzir e pôr em prática este discurso de exclusão, justamente por estarem atrelados à escola, um dos tentáculos ideológicos do Estado, que visa não um aprendizado das camadas populares para que as mesmas mudem sua realidade, e, sim, a formação ideológica que dê continuidade ao atual sistema excludente.

Desigualdade estimulada

— Até a década de 70, as escolas públicas tinham um caráter universal atendendo alunos de diferentes níveis sociais. Na década de 80, houve um crescimento exponencial das escolas particulares onde ocorreu a separação das crianças das camadas médias urbanas e as crianças filhas do proletariado. No fim da década de 90, devido à crise econômica sempre reincidente do sistema capitalista, ocorreu a proletização da pequena burguesia nacional e, conseqüentemente, a volta forçada de seus filhos ao ensino público — relembra Paim.

Na escola que foi objeto da pesquisa, os pais dos alunos da alta, média e pequena burguesia são, em sua maioria, profissionais liberais, servidores públicos (afetados pela política de demissão voluntária) e pequenos comerciantes em crise. Já os pais das classes populares pertencem, em sua maioria, ao proletariado-lumpesinato, camada do proletariado excluída das atuais relações de trabalho e que sobrevivem do subemprego, da informalidade e da marginalidade, sendo a maioria originária das favelas do Rio de Janeiro. Ainda nas classes populares, existem os filhos de famílias proletárias, cujos pais ainda estão empregados oficialmente mas recebem salários aviltantes.

A pequena burguesia tenta de todas as formas demarcar sua diferença cultural, social e, principalmente, econômica frente às classes populares. Apesar da crise em que está acometida, a pequena burguesia prefere a todo custo manter seu status visando alcançar o patamar de alta burguesia, ao invés de formar uma frente única com as classes populares. A demarcação da diferença é outro ponto que foi abordado na tese conforme atesta a doutora Iracema:

— Os pais das crianças, assim como os professores, também fazem questão de demarcar a diferença entre os alunos, indo buscar seus filhos de carro, em contraste com os pais das crianças das classes populares. As crianças já levam sua comida de casa para que não comam a merenda da escola junto com os outros.

A diferença econômica também é ostentanda através dos materiais e das roupas usadas pelos alunos da pequena burguesia, onde a demonstração do poder econômico se dá através do valor agregado da marca:

— As crianças das camadas médias fazem questão de ostentar marcas, tanto no material escolar, quanto nas roupas que colocam por debaixo do uniforme.— Continua Iracema

Até no uniforme escolar existe uma diferença relativa à qualidade do material

— Mesmo a igualdade artificial gerada pelo uniforme (que agora é único para todas as escolas) é burlada, já que os pais preferem mandar confeccionar o uniforme com um tecido de melhor qualidade para os seus filhos, de forma a demonstrar sua’superioridade’ econômica.— Conclui.

A escola do imperialismo

Atualmente, as chamadas “escolas públicas” nada mais são do que um espaço de exclusão para os filhos da classe proletária que já foi alijada das atuais relações de exploração do trabalho, tendo a mesma função de instituições como presídios e manicômios. Nenhuma destas instituições visam mudar as condições de vida desta massa de excluídos, apenas têm a intenção de contê-la para que não haja um levante contra o sistema.

Desta forma, a escola adota um sistema pedagógico clássico que não atende aos anseios das classes populares, por não se adequarem ao seu cotidiano e sua vivência prática, e por não vislumbrarem uma educação voltada para um outro modelo de sociedade. Sendo assim, a escola visa legitimar o atual sistema excludente, formando indivíduos para atuar nele e não contra.

Por não atender as reais necessidades da população, a conseqüência natural é o aumento do número de evasão e repetência escolar das classes públicas. O motivo apregoado erronamente é a de que os alunos têm dificuldades de aprendizado, mas a verdade é que o atual sistema de ensino não tem interesse em dar às crianças do povo uma aplicação prática do conhecimento.

Uma estratégia cínica de mascarar os números expressivos da repetência e evasão, já que assumi-los seria admitir o total fracasso do sistema de ensino imperialista, é se utilizar de recursos como a formação de turmas de aceleração, nas quais o aluno é aprovado automaticamente, tendo aprendido ou não. Esta exclusão com data marcada visa livrar-se dos alunos de classes populares, que acabam se encaixando na categoria de analfabetos funcionais.

Desta forma, a escola não fornece aos alunos nenhum instrumento para que possam transformar a sociedade, como não permite aos mesmos nem sequer serem absorvidos pelo sistema imperialista, mesmo que sendo explorados através da venda de sua força de trabalho a um preço vil. Resta aos mesmos, caminhos como o subemprego, a informalidade e a marginalidade para a sobrevivência, sendo em breve isolados do resto da sociedade através de uma outra instituição do Estado: os presídios. As escolas, portanto, estão totalmente atreladas ao Estado, que é um empregado de luxo do imperialismo, e portanto, neste atual modelo, é impossível que sejam fomentadas mudanças e transformações sociais profundas pois a atual escola é o único produto possível do atual Estado. Mas os atuais estabelecimentos nem sequer se aproximam da idéia de escola, até mesmo para escravos.

A verdadeira escola popular e democrática só pode existir através das forças populares, sob uma direção justa. É possível ver exemplos de escolas desse tipo no campo em movimentos sociais como as Ligas Camponesas. Estas escolas funcionam em áreas fora da tutela do Estado do latifúndio, da burguesia burocrática e do imperialismo. É possível que nestas áreas chegue a emergir o poder popular e democrático, sendo que estas escolas são escassas e dissipadas por que ainda não temos um Estado popular e democrático consolidado. Conquista que só será obtida através da luta do povo trabalhador.


*Conceito utilizado na tese para denominar cientificamente os alunos da pequena burguesia urbana, a chamada “classe média”.
Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: