Dignidade, água potável e esgoto em El Alto

Dignidade, água potável e esgoto em El Alto

La Paz – Em 1997, no marco da privatização de diversas empresas, o estado boliviano entregou a empresa Samapa — Serviço Autônomo Municipal de Água Potável e Esgoto, a capitais transnacionais, pese que o título da referida empresa estava destinado para a função social de administração e abastecimento de água potável e esgoto às cidades de La Paz e El Alto, ao contrário disto, admitiu a transnacional Lyonnaise des Eaux de Francia, elevação prévia das tarifas e posterior indexação das tarifas de água ao dólar, afundando numa situação crítica as possibilidades de consumo de água e o serviço de esgoto de uma população empobrecida como a da cidade de El Alto.

A Bolívia é um dos 15 países que contam com maiores recursos hídricos no mundo; no entanto, aproximadamente 2,5 milhões de pessoas não têm acesso a água potável e outros 4,7 milhões de bolivianos não possuem o serviço de esgoto público.

A informação é patética, se temos em conta que este país tem somente 8.328.700 (2000) de habitantes num território com cerca de 1.098.581 quilômetros quadrados; fato que o converte no país que apresenta a menor densidade demográfica por quilômetro quadrado na América do Sul. O uso, o manejo, o tratamento e o negócio da água em todo o território boliviano apresenta características totalmente diferenciadas, nas que se manifestam na administração e distribuição da água por organizações comunais, empresas municipais, cooperativas e até empresas transnacionais, sendo que o denominador comum é que nenhuma destas entidades foi capaz de cobrir a totalidade das necessidades da respectiva população a quem é dirigido o seu serviço. Tendo como experiência mais exitosa a da Cooperativa Cosmol —Cooperativa de Serviços Públicos Ltda, da cidade de Montero, situada no norte do Departamento de Santa Cruz, cuja cobertura chega a uns 95%, para uma população que segundo o Censo Nacional de 2001 chegava a 78.294 habitantes.

A insuficiência no abastecimento dos serviços básicos de água potável e esgoto no país constituiu o pretexto fundamental para que no ano de 1996, o estado boliviano tomasse a determinação de efetuar um processo de privatização, ao que foi denominado com o eufemismo de “capitulação”.

O processo de “capitulação”

O primeiro governo de Gonzalo Sánchez de Lozada (1996-2000) empenhou todas suas energias para atrair a chamada inversão estrangeira, para a mesma pôs em marcha seu projeto denominado “capitulação”.

A capitulação foi apresentada como uma solução criativa, inovadora e moderna que permitiria revolucionar o país e deixar para trás a pobreza e o atraso que convertia a Bolívia no país com o desenvolvimento mais precário da região; destacava a importância da participação da empresa privada, priorizando a transnacional, na gestão de empresas que até o momento eram empresas exclusivamentes estatais.

Os sons da sirene da “capitulação” se faziam patentes com estribilhos repetitivos e caráter evidente de panfleto que proclamavam por toda parte “modernidade”, “progresso”, “eficiência” e outras palavras ocas com as que se enfeitava um discurso enganador, que hoje encontra-se claramente descoberto por estatísticas e resultados nos quais definitivamente houve lucro farto para as transnacionais que se esconderam sobre este processo, patrocinado pelo Fundo Monetário internacional e Banco Mundial, e para uma elite nativa, que precisamente foi a que impôs o engano.

Dentro das empresas estatais desnacionalizadas estão a empresa nacional de telecomunicações, a ferroviária, uma série de empresas mineiras, a empresa aéra nacional (Lloyd Aéreo Boliviano), a empresa de petróleo nacional; algumas empresas municipais de eletricidade e água potável. Foi no marco deste processo que a empresa municipal de água e esgoto — Samapa — que administrava e abastecia as cidades de La Paz e El Alto, submetida ao processo de desnacionalização pelo estado boliviano, no ano de 1997, transformando a Samapa na atual “Águas de Illimani”. Processo idêntico foi submetida a também empresa municipal de água e esgoto de Cochabamba — Samapa — que ao ser privatizada se transformaria em “Águas de Tunari”.

Por trás da Illimani

Em 30 de julho de 1997, a Samapa, responsável pela administração e abastecimento dos serviços de água e esgoto das cidades de La Paz e El Alto, modifica sua estrutura acionária, antes nas mãos dos dois municípios citados, passando a conformar-se da seguinte maneira:

  • Lyonnaise des Eaux de Francia, com 55%
  • Bolivian Investment Corporation (Bicsa), 22%
  • Inversora en Servicios S.A., 9%
  • International Finance Corporation (IFC), Banco Mundial 8%
  • CONNAL S.A., 5%
  •  Trabalhadores de “Águas de Illimani”, 1%

Segundo a Fundação Solón, que de alguma forma assessora a Federação da Junta dos Vizinhos de El Alto, a empresa Lyonnaise des Eaux é uma das transnacionais que dirige o negócio de água mais importante do mundo, porque fornece água a mais de cem milhões de pessoas em todo o planeta. Esta transnacional também se encontra operando em Buenos Aires — Argentina, onde recebe também duros questionamentos à sua gestão, o mesmo ocorrendo em outras cidades e países como Manila, Porto Rico etc.

Os lucros dessa transnacional superaram, somente no ano de 2003, mais de 50 bilhões de dólares, número 30 vezes superior ao de todas as exportações que a Bolívia realizou no mesmo ano; fato que demonstra longamente o seu poderio econômico frente à Bolívia; negócio que resulta do lucro de um serviço básico para a existência humana.

O ganho de Águas de Illimani, somente em La Paz e em El Alto chegou a 2,5 milhões de dólares no ano de 2003, montante este dividido entre os acionistas, sendo a referida multinacional a maior beneficiada. Há também presença de capitais nacionais expressados em BICSA, que é uma empresa montada com capitais do Banco Mercantil da Bolívia e além da empresa dependente do Banco Mundial: IFC, que em caso de litígio se converteria em juiz e parte ao Banco Mundial, pois as “empresas inversoras” tem o poder de demandar aos estados numa instância especial dependente do mencionado organismo financeiro internacional.

A composição do conjunto de acionistas de Águas de Illimani, curiosamente, sintetiza a forma de como se dividem os negócios do país, em grande parte dirigidos por trans-nacionais, e a participação de capitais nacionais é mínima, mas, conformada por aqueles setores que representam a elite, promoveu e impulsionou o processo de privatização na Bolívia. Além disso, se deve acrescentar que as inversões feitas pela Águas de Illimani, específicamente em certas áreas de El Alto, não se realizaram com o dinheiro dos acionistas, mas com financiamento da Cooperação Técnica Internacional, alegando que tais subsídios são necessários porque não constituem negócios rentáveis a ampliação da cobertura de água potável e esgoto em áreas pobres. Isto é, mais de 7 anos depois da capitalização, o estado boliviano declina o manejo de capitais provenientes da Cooperação Internacional para subsidiar as inversões de uma empresa que supostamente teria que promover um aumento de capitais mediante inversões. E isso seria realmente uma capitulação, a mesma que por iniciativa própria proporcionaria maior eficiência no manejo, administração e abastecimento de água às cidades de La Paz e El Alto. Por outro lado, a declaração de dar uma cobertura de 100% do serviço de água a toda cidade de El Alto era pura falsidade, porque existe uma densa população de El Alto que carece do abastecimento d’água.

O consumo em El Alto

A cidade de El Alto, próxima a cidade de La Paz, sede do governo da República da Bolívia com mais de 600 mil habitantes, por tal motivo constitui a quarta cidade mais povoada da Bolívia. É caracterizada como uma metrópole eminentemente aymara; conformada por migrantes das províncias do Departamento de La Paz, mineiros despedidos a partir de 1985 e provenientes da província de La Paz, Oruro e Potosí.

Encontra-se a 4 mil metros acima do nível do mar, 400 a mais que sua vizinha, La Paz. As temperaturas costumam estar 2 graus a menos que as já frias temperaturas da capital nacional. E a 800 metros a mais que a zona sul de La Paz, onde se localizam os bairros residenciais da sede do governo, cuja população em sua maioria é branca ou de ascendência européia. Além de ter uma população majoritariamente aymara, as atividades ocupacionais em fundamental são o comércio informal, operários, trabalhadores temporários, empregados domésticos etc, o que faz coincidir, sem maiores contradições, os elementos de classe com o elemento étnico. De fato, diariamente 150 mil vêm a La Paz desempenhar suas diversas atividades de trabalho e/ou estudantis.

Esta situação tem proporcionado que certos setores acomodados ou funcionários governamentais estabeleçam critérios discriminatórios muito similares as doutrinas do “darwinismo social” do final do século XIX; enfatizando que culturalmente o habitante de El Alto não conserva hábitos de higiene diária, como o ato de tomar banho todos os dias.

Estas afirmações, por um lado depreciam a condição humana do habitante de El Alto, e por outro justifica a deterioração de muitos anos dessa populosa cidade, no que implica em sonegar água potável e principalmente o esgoto.

Contrário aos informes de Águas de Illimani — que afirmam ter ampliada a cobertura dos mencionados serviços básicos —, numa caminhada pelas ruas de diversas áreas da cidade de El Alto o que muito se vê são águas de esgotos a céu aberto. Este fato é uma prova clara do descuido e da desatenção da referida empresa a esta cidade. Noutras, nem sequer existe água potável, ou não existe durante as 24 horas horas do dia.

A luta em El Alto

Toda esta ordem de coisas fez com que desde novembro de 2004 o povo de El Alto fizesse o pedido entre as autoridades do estado para que a Águas de Illimani fosse embora da cidade. E diante da indiferença estatal, se viram obrigados a efetuar uma greve por tempo indeterminado, no dia 10 de janeiro deste ano com tal fim.

Tal medida foi levada a cabo de maneira contundente pelo povo de El Alto como um todo, sob a direção da Federação de Juntas dos Vizinhos de El Alto. Todos os passos que conectavam esta cidade com a de La Paz foram bloqueados, igualmente, as estradas ao Departamento de Oruro, que levam às demais regiões do país, além das também bloqueadas vias que conduzem à República do Peru, demonstrando o quão decidido se encontrava este povo para reverter sua paupérrima situação de abastecimento de água potável e esgoto.

Dado que esta medida coincidia com a paralisação do Departamento de Santa Cruz, por causas completamente diferentes, como é o pedido de autonomia para esta região que faz limite com o Brasil. O governo de Carlos Mesa decidiu ceder diante do clamor do povo de El Alto, e no dia 12 de janeiro emitiu um decreto supremo, mediante o qual decidia tomar as medidas pertinentes que façam possível o fim do contrato com Águas de Illimani, que segundo se estipulava estava programado para 30 anos. Mas as últimas notícias são que o governo de Mesa está retardando a finalização do contrato com as Águas de Illimani, e a Fejuve de El Alto ameaça com medidas de luta novamente, inclusive foi nomeado como superintendente de Saneamento Básico um indivíduo que publicamente havia se manifestado contra o fim do contrato com a Águas de Illimani.

Como já é de costume, foram ouvidas vozes da denominada “segurança jurídica” implorando respeito a um contrato que continha cláusulas à condição humana, assim como cláusulas leoninas na ordem econômica, porque ofereciam todas as vantagens para a empresa transnacional, fazendo-a farta beneficiada do contrato, quando não fez maiores inversões e, quando fez, inverteu dinheiro que não é seu, mas da Cooperação Técnica Internacional, amparando-se na participação acionária do Banco Mundial.

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