Fascismo policial usa pânico para promover banho de sangue. Secretaria de Segurança tem relação mal explicada com o crime organizado. Ações atribuídas ao Primeiro Comando da Capital (PCC) trazem novamente à tona questões mantidas em aberto pelo arquivamento do inquérito da Castelinho. Facção é marionete nas mãos do Estado.
A série de assassinatos de policiais e atentados contra ônibus e agências bancárias ocorrida entre os dias 12 e 19 de maio, deixou um rastro de sangue em São Paulo. O Ministério Público divulgou no dia 31 uma lista de 162 mortos. Há denúncias, porém, de que o número é muito maior. Em ato realizado no dia 29 no Largo de São Francisco, Anderson Mangolin, do Movimento em Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes, disse que o IML está lavrando certidões de óbito de adolescentes mortos com tiros no peito ou na nuca apontando como causa mortis respectivamente parada cardíaca e traumatismo craniano. Pelo menos sete pessoas desapareceram após serem abordadas pela Polícia Militar.
Não se ouve o preso
O ocorrido nas últimas três semanas suscita muitas perguntas sem resposta. Alguns indícios, no entanto, podem ser buscados na evolução recente da política de Segurança em São Paulo. A primeira questão consiste em saber quem ganha com estes atentados. Há uma outra, correlata, que é saber quem controla o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Para a polícia e o monopólio da imprensa, o líder da organização é um presidiário chamado Marco Willians Herbas Camacho, apelidado Marcola, condenado a 39 anos por roubo. Ele teria burlado a incomunicabilidade a que está submetido e ordenado a realização dos atentados.
Desde o início dos ataques, nenhum jornalista pôde falar com Marcola. Nos dias 28 e 29 de maio, o programa Fantástico e a revista Época divulgaram imagens dele dentro da prisão de Presidente Bernardes, onde encontra-se confinado em cela de isolamento sem acesso sequer a advogados e familiares. As cenas divulgadas mostram um homem acuado. “Você veio me matar?” — indaga a um carcereiro. Não é a pergunta que se espera que seja feita a um funcionário subalterno por alguém que tem a cadeia nas mãos e poder de fogo para intimidar o Estado a partir dela, segundo a mesma imprensa.
O mito de que o PCC tem o domínio das prisões não resiste ao mais simples teste. “Se tivesse, eles abririam as portas e iriam embora” — resumiu o ex-secretário de Administração Penitenciária Nagashi Furukawa, em entrevista. Isabel Peres, da seção brasileira da Ação dos Cristãos pela Abolição da Tortura (ACAT), entidade que presta assistência aos presos, diz que as secretarias de Administração Penitenciária e Segurança Pública sabiam com antecedência que ocorreriam rebeliões nos presídios na semana do dia das mães.
O poder de fogo da facção fora dos presídios também é superdimensionado. O ex-deputado Hélio Bicudo afirma que o PCC não tem capacidade de medir forças com o Estado.
O que se passou fora das prisões naqueles dias, aliás, é ainda objeto de mais dúvidas do que certezas. Não se sabe, por exemplo, de onde partiu a torrente de boatos — todos falsos — que circulou pela cidade a respeito de bombas em aeroportos e estações de metrô, faculdades e supermercados. Foram estes boatos, mais do que os ataques efetivamente ocorridos, que geraram a atmosfera de caos e pânico que tomou conta de São Paulo, levando ao fechamento antecipado de repartições públicas, escolas e estabelecimentos comerciais.
Por outro lado, está claro a quem o pânico beneficia. Esquadrões de extermínio compostos por policiais, que atuam na semiclandestinidade, passaram a agir com ampla desenvoltura. Isabel Peres denuncia que 34 pessoas foram executadas com tiros na cabeça em Guarulhos, na semana dos ataques, e atribui estes assassinatos ao Tático Nordeste, grupo que age na cidade. Não se trata de excessos nas represálias ao PCC — o que tampouco justificaria tal ação, como recorda Bicudo —, mas de puro e simples massacre de civis desarmados. Os negócios explorados pelo PCC não foram atingidos.
Já em 2004, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa e mais de quarenta entidades de defesa dos direitos humanos denunciavam em uma carta aberta à Justiça e ao Ministério Público do estado os “acertos inconfessos de quadrilhas com a participação acionária do Estado“. É sabido que desde os tempos do Esquadrão da Morte (EM) , nos anos 60, grupos fascistas da polícia de São Paulo têm relações mal explicadas com o crime organizado. O EM explorava atividades como narcotráfico e lenocínio, como relata o jornalista Percival de Sousa em seu livro Autópsia do medo. No fim de 2001, o Ministério Público descobriu que investigadores da Polícia Civil controlavam o tráfico na área conhecida como Cracolândia, no centro da capital. E no dia 24 de fevereiro de 2005, a advogada Valdenia Paulino, do Centro de Direitos Humanos do Sapopemba (zona leste da cidade), denunciou na Assembléia Legislativa que os pontos de venda de drogas em sua região funcionam com a proteção de policiais.
Outro exemplo de confluência de interesses entre o Estado e o crime é dado pelo advogado Aton Fon Filho no relatório Direitos Humanos no Brasil 2004, da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. “Os movimentos de trabalhadores sem-teto vêm freqüentemente se vendo comprimidos pela ação simultânea do Estado que os reprime visando a reduzir sua condição mobilizadora, organizativa e operacional, e dos agentes do narcotráfico, visando a instalar-se nas áreas ocupadas” — denuncia.
O mais conclusivo indício de manipulação de criminosos pelo Estado, no entanto, surgiu em 2002, quando foi descoberta a encenação do Gradi na Castelinho (ver matéria abaixo). O caso foi arquivado pelo Tribunal de Justiça, mas permanece a dúvida sobre quantas outras ações atribuídas ao PCC foram forjadas ou tratadas de modo a encobrir crimes de grupos especiais da polícia.
É sabido que os setores da polícia e do Ministério Público que comandam hoje a secretaria de Segurança não têm escrúpulo nenhum em especular com cadáveres. Para eles, cada policial morto é um pretexto para o aumento da truculência fardada e cada bandido (suposto ou real) morto é um indicativo do sucesso desta truculência e da necessidade de ampliá-la.
O proveito político que extraem de ataques como os da semana do dia das mães é considerável: o clima de insegurança cria uma atmosfera propícia ao endurecimento penal e à supressão de garantias. Na semana seguinte, falava-se no meio jurídico de São Paulo sobre a suposta necessidade de aprovação de um projeto de lei na gerência Cardoso que inclui no Código Penal um título relativo a “crimes contra o Estado“, tido por advogados de diversos movimentos sociais como um instrumento de criminalização da organização popular.
* Plano Cohen — Em 30 de setembro de 1937 o general Góis Monteiro, chefe do Estado-maior do Exército, divulga à nação o tenebroso Plano Cohen: uma suposta manobra comunista para a tomada do poder através de assassinatos e invasão de lares. O Plano não passava de uma fraude forjada pelos chefes do latifúndio, da burguesia compradora e burocrática (entre seus quadros civis e militares) para justificar o golpe de Estado. Frente à suposta “ameaça vermelha”, o governo pediu ao Congresso a decretação de estado de guerra, concedido em 10 de outubro de 1937. Era o início do golpe que preparou o Estado Novo.