O DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), maior construtora pública do mundo, com 14 mil funcionários e orçamento anual, em média, de U$ 250 milhões, serviu para aumentar o capital das oligarquias nordestinas, ajudou a manter seu poder político e, em última análise, alimentou o surgimento desordenado de grandes centros urbanos na região. No lugar de minorar o sofrimento de milhões de nordestinos, muitos dos grandes problemas da região se acentuaram, pode-se dizer, com sua participação.
Ilustração: Alex Soares
Em seus 93 anos de atuação, o DNOCS gastou cerca de U$ 30 bilhões no semiárido nordestino. Desde sua implantação, em 1909, esta autarquia cresceu gerenciando um dos maiores canteiros de obras do Brasil: o polígono da seca, do Piauí até o Norte de Minas Gerais. A cada seca — e foram muitas — as pressões dos grupos políticos oligarcas foram fortes para a liberação de mais recursos. Até mesmo as verbas emergenciais* foram usa das para incrementar a economia dos poderosos do nordeste.
É evidente que esses quase cem anos de atividades e a aplicação desses bilhões de dólares não foram jogados ao vento, porque — no mínimo — o órgão executou algumas obras importantes e contribuiu para a formação de inúmeros profissionais e técnicos. Porém, num balanço fiel à realidade, se constata que sua utilização sempre esteve vinculada às classes dominantes nordestinas.
Recursos (des)apropriados
Como reconhece o diretor geral do DNOCS, o engenheiro Eudoro Santana, órgãos como o BNB (Banco do Nordeste do Brasil), Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) Codevasf (Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco), e o próprio DNOCS, sempre foram instrumentos das classes dominantes. Seus proclamados objetivos — mudar a estrutura agrária do Nordeste, principalmente do semi-árido, para combater a miséria e a fome — não tiveram êxito, pois “seus recursos foram apropriados pelas oligarquias, sua estrutura serviu a interesses particulares.”
Um dos mais ferrenhos críticos das administrações FHC e Tasso Jereissati (ex-governador do Ceará), Eudoro faz questão de afirmar que o DNOCS foi a maior “empreiteira” de obras públicas do mundo. Segundo engenheiro, com o correr dos anos ela foi transformada também numa repassadora de recursos para outras empresas.
Este período é a fase da chamada terceirização do órgão, período que coincide com a entrada de empreiteiras na jogada, com seus lobbys e barganhas políticas. Eudoro não se arrisca a dizer quais foram as empresas que mais atuaram nas obras do DNOCS, como o açude Castanhão, que ainda tem projeto inacabado mas foi inaugurado pelo último governo federal. Talvez por questões éticas ou administrativas, o ele só acrescenta que “todo o Estado Brasileiro sempre foi apropriador”. Já o Presidente da Associação dos Funcionários do DNOCS (ASSECAS), o veterinário Antônio Monte Costa, com 32 anos de serviço, esclarece que a situação só mudou um pouco quando os governos militares fizeram crescer as obras públicas através das firmas nacionais e internacionais. O órgão que planejava, projetava, executava e gerenciava os investimentos, perdeu sua capacidade para o grande capital nos últimos tempos.
Do engenheiro ao tratorista, só para citar como exemplo a sua estrutura funcional, todos eram quadros próprios do Departamento. O Orós, por exemplo, foi construído pelo DNOCS, “pois tínhamos tudo, operários e máquinas”. Eram 14 mil funcionários que formavam uma tremenda estrutura desde governos como o do paraibano Epitácio Pessoa, depois Getúlio Vargas, Juscelino e os generais do gerenciamento militar, período em que os volumes de verbas foram maiores. Tudo formava uma engrenagem poderosa que não conseguiu pôr fim à tragédia do homem do sertão e nem mudar a estrutura econômica e social da região.
Para o ano de 2003, mesmo com orçamento minguado de 525 milhões de reais, ainda se espera muito do DNOCS. Sendo muito para os padrões da região, ou pouco, se comparados com os recursos alocados no centro-sul do país, o certo é que o DNOCS fez chover e bem, nos negócios de muitos empreiteiros e oligarcas da região que souberam tirar o máximo de proveito dos recursos. Mesmo na década de 90, após o desgoverno de Fernando Collor, foram quase três bilhões de dólares de 1990 a 1998. Uma média de 230 milhões/ano de dólares na primeira metade e 430 milhões em 1995.
É muito? Sim, para satisfazer a classe dominante, e não para matar a fome de miseráveis sem opção de trabalho. É pouco, quando se pensa na enorme dívida social da União com o Nordeste. Para os empreiteiros e latifundiários estes valores — se não foram embolsados diretamente — apareceram como barragens, poços profundos, rede de energia, etc., em suas propriedades. Ainda segundo Eudoro Santana, para saber o destino do dinheiro, “é só procurar saber quem está devendo ao Banco do Nordeste e teve projetos aprovados na Sudene.”
Num dos seus períodos mais difíceis, durante o governo José Sarney, o então Ministro Vicente Fialho “emancipou”, por decreto, os colonos dos projetos de irrigação. Isso significou, no entender do dirigente da ASSECAS, que “sem técnica, assistência e todos os recursos necessários para fazer o homem produzir, não havia mais condições de emancipar ninguém. Isso foi uma jogada política muito séria”, afirma.
À partir daí, foi perdido o controle fundiário, técnico e comercial dos projetos. “Foram todos sucateados”, lembra Monte. Venda de posse de lotes para políticos e empresários transformaram as áreas em sítio de lazer, com mansões e piscina. A herança desses desmandos paira até hoje, com a baixa produtividade dos investimentos — seja na produção de pescado ou na agricultura. Hoje são produzidos somente 18 toneladas de pescado/ano, nos mais de 20 bilhões de metros cúbicos de água dos seus reservatórios. Quantidade essa que poderia ser facilmente de 60 toneladas/ano segundo a ASSECAS.
Agência Repassadora
Hoje, com inúmeras obras por concluir, um orçamento considerado minguado (quase todo usado na manutenção de pessoal e no auxilio a projetos de irrigação e piscicultura), muitos ainda sonham com um DNOCS eficiente, como no tempo de Juscelino Kubitscheck, quando afluíam aos cofres da entidade cifras que passavam de meio bilhão de dólares, como no ano de 1958. Porém, as coisas não devem ser mais assim.
A mão paternalista do Governo Federal no combate aos efeitos da seca no Nordeste começou no Império, quando o Imperador ficou transtornado com a calamidade da seca de 1877. Uma catástrofe narrada inclusive no livro do escritor Rodolfo Teófilo, “História da Seca no Ceará: 1877-1880”. Segundo consta, houve atos de antropofagia, os flagelados comiam raízes, cozinhavam solado de sapatos e animais venenosos. Esses períodos foram marcados por rebeliões populares, desobediência pública e o abalo das classes dominantes no Nordeste.
É nesse período que o governo passa a adotar o discurso de aplicações de medidas concretas de combate aos efeitos da seca. Foi criada uma Comissão de Engenheiros para estudar os problemas e determinar a construção do primeiro açude, o Cedro, em Quixadá, Ceará. Depois daí, a partir da República Velha, todos os presidentes da República adotaram medidas com a mesma finalidade, ações para combater o flagelo da seca. Nilo Peçanha, no dia 21 de outubro de 1909, cria a Inspetoria de Obras Contra as Secas (IOCS), embrião do futuro DNOCS.
Até a década de 1950, antes da criação do Banco do Nordeste e da Sudene, o DNOCS foi único órgão que comandava todas as ações que visavam “salvar” as vítimas da calamidade, “fixar” o homem nordestino no sertão ou investir para o “crescimento” e o seu “desenvolvimento”. Falava-se muito, desde este tempo, do desvio das águas do rio São Francisco para irrigar o semiárido, mas, o grande desvio que sempre caracterizou o DNOCS foi o desvio de verbas.
Obras inacabadas
Foram obras e mais obras, muitas das quais ficaram pelo meio do caminho, sem conclusão: estradas, açudes, e cerca de 30 mil poços profundos, a maior parte em fazendas particulares. Tal concentração de água e terra provocou o abandono do sertão nordestino. Por isso, sonhar com um DNOCS que fixe o trabalhador no campo, fomente o turismo, crie peixes e faça obras úteis ao povo, é no mínimo ingenuidade. Historicamente, este órgão governamental nunca cumpriu tal papel na sociedade, e nunca poderá cumpri-lo. Sua estrutura, ao fim e ao cabo, foi criada para servir aos latifundiários nordestinos e seus prepostos.
Como está, o DNOCS é uma agência que fomenta o poder de quem já tem recursos, e constrói estruturas em propriedades particulares enquanto os camponeses pobres morrem de sede. O órgão ainda tem técnicos, bilhões de metros cúbicos de água que servem, principalmente, para o abastecimento dos grandes centros urbanos, inclusive capitais, mas não se mostrou eficaz no atendimento aos pobres do campo.
Inútil não foi, é claro, mas para muitos ficam perto da lama as obras públicas feitas nos nove Estados que formam o Polígono da Seca (Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Sergipe, Bahia e Minas Gerais), no sentido de mudar as condições de vida do homem nordestino. Para Eudoro, nem tudo que o DNOCS fez foi anulado, “mas toda a política do governo para melhorar a vida do homem nordestino no semiárido não conseguiu o seu objetivo.”
Isso aconteceu sempre porque as chamadas elites usaram a máquina do Estado e seu poder de pequenos senhores feudais para só se beneficiarem com obras de construção pesada. O Castanhão é o exemplo mais grave disso: são quase 400 milhões de reais investidos numa obra que está longe de ser concluída, porque o principal — estradas, irrigação, abastecimento de água e assentamento de colonos — não foi prioridade do governo que o inaugurou, e nem das empreiteiras que sugaram seus recursos.
Disputa de frações
Com o golpe militar contra-revolucionário de 64, todos esses problemas relativos aos recursos destinados ao Nordeste se agravaram, a ponto de renunciar, no Governo Costa e Silva, o então Ministro do Interior, Gal. Afonso de Albuquerque e Lima. Isso revelava uma verdadeira luta de frações, onde uns queriam desenvolver uma burguesia no Nordeste através dos incentivos fiscais e modificações cosméticas na estrutura fundiária, enquanto outros pugnavam por manter tudo como estava.
O fato da renúncia do ministro, bem como do então superintendente da Sudene, Gal. Euler Bentes, foi o agravamento da política de favorecimento dos recursos destinados aos programas para as elites dominantes que passaram a aumentar seu capital. Quando os militares assumiram o poder mudou todo o esquema de atuação do órgão. O motivo era simples, tinha que usar os recursos e toda a estrutura do órgão para eliminar os movimentos sociais que tinham forte atuação no meio rural da região. As Ligas Camponesas, de Francisco Julião, por exemplo, surgiram e cresceram na década de 50, motivadas pela miséria e injustiça que imperava na região, tal qual no final do século anterior, quando aconteceu a Guerra de Canudos, e, anos mais tarde, Caldeirão, etc.
Tais disputas fazem concluir que o interesse pelos extensos recursos do combate à seca atiça a sede dos latifundiários e mandatários da região e até mesmo de todo o país. É fácil concluir que todos os bilhões de dólares investidos foram jogados às águas, no sentido objetivo de mudar a situação social da região. Basta analisar a situação sócio-econômica de todos os municípios que estão incluídos na área de cobertura do DNOCS: eles estão piores ou — na melhor das hipóteses — iguais ao que eram antes.
Mesmo com essa fria realidade e com um orçamento que deve dar somente para recuperar projetos sucateados, a burocracia está eufórica e os gabinetes do órgão já começam a ser movimentado por prefeitos, deputados e empreiteiros. No dia 7 de abril, pela manhã, quando o dirigente deveria receber A Nova Democracia, era intenso o movimento na ante-sala do gabinete. O prefeito de Sobral-CE, Cid Gomes, irmão do Ministro Ciro Gomes, comentava com assessores sobre o preço do Cará Tilápia que seria produzido através de um projeto que teria o apoio do órgão em seu município.
*Plano de socorro às vítima da seca