Nuances do incorrigível sistema penal
Hugo R. C. Souza
Nos últimos meses, em salas de cinema lotadas, a dramatização das torturas e execuções empreendidas pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o Bope, receberam aplausos de parte dos espectadores, às vezes de pé.
Os moradores das favelas, em geral, ficaram indignados com essa aprovação com louvor da brutalidade. São eles, além de serem dia após dia oprimidos pelos traficantes inimigos do povo, que sofrem com as incursões rotineiras dessa "tropa de elite", que nada mais é do que a versão armada até os dentes da barbárie fascista que hoje campeia desde a política econômica até as políticas de segurança pública.
Por trás das telas e da opressão do povo em nome do combate ao crime, está uma orientação de matriz ianque, pensada para disseminar o medo através do endurecimento da legislação criminal e da truculêcia institucionalizada na polícia e no sistema penitenciário.
Trata-se da adesão dos oportunistas que administram o país ao chamado Sistema Penal Simbólico. Este é o nome que se dá quando as três instâncias penais — o Direito Penal, a polícia e o sistema penitenciário — aproveitam-se do sentimento de insegurança generalizada para aumentar a opressão sobre as massas, fingindo combater a criminalidade urbana.
Alguns doutores do Direito diriam que o Direito Penal Simbólico está caracterizado quando as instituições do Sistema Penal apelam para um "rigor excessivo". É mais do que isso. É quando todo este aparelho repressor sai do armário, mostra sua cara, escancara sua verdadeira razão de ser: remediar com cadeia, tiros e pontapés a miséria humana espalhada aos quatro cantos pela opressão econômica.
Devido à superlotação,… onde não existe espaço livre nem no chão, presos dormem amarrados às grades das celas
Quando o Sistema Penal sai do armário, as classes oprimidas pagam o pato: há o reforço da legislação penal fascista, cujos elaboradores se aproveitam de comoções populares geradas por crimes violentos para intensificar o controle penal das massas; ações policiais que servem apenas para demonstrações de força e autoridade, mas que têm consequências trágicas para os moradores de favelas transformados em alvos; decretos oportunistas, mas apresentados como "emergenciais", e mil planos de segurança pública, um após o outro, elaborados pelos administradores com um olho na popularidade fácil, mas que servem apenas para disseminar mais violência onde o povo já trava uma luta diária com a própria realidade para manter a vida e a dignidade intactas.
De simbólico, portanto — e na prática — esse modelo importado do USA tem muito pouco: a violência e os atentados contra os direitos e contra a vida que dele provêm são bastante reais.
Nesse campo aberto pelo Direito Penal Simbólico, uma outra prática exportada pelo USA têm sido prontamente abraçada pelas elites brasileiras, pelos legisladores e pelos gerentes à frente das políticas de segurança pública, seja no nível federal, seja no estadual.
A Lei de Crimes Hediondos, a repressão às estratégias de sobrevivência da população pobre, como os camelôs e os flanelinhas , as operações de limpeza de gente na orla do Rio de Janeiro, as sucessivas campanhas pela supressão dos direitos e garantias de defesa e de progressão das penas, os esforços recorrentes pela redução da maioridade penal. Tudo isso é fruto da reprodução em território brasileiro de uma tendência originária das mais reacionárias facções das elites ianques: O Movimento Lei e Ordem.
Ficções
Lei e Ordem é o título de uma série policial de televisão muito popular no USA, transmitida no Brasil por alguns canais de TV por assinatura. O ator que interpretava na série um poderoso promotor público acabou de deixar o papel para lançar sua pré-candidatura à presidencia ianque. É significativo que o tenha feito.
Surgido no USA como um reforço do Direito Penal Simbólico, o Movimento Lei e Ordem se assenta em uma tentativa de empulhação: transformar em realidade a ficção de que leis e ações mais severas e em maior número são o caminho através do qual se alcança segurança e bem estar.
O sucesso que enganações como essa encontram junto a algumas parcelas da população se explica pela instrumentalização que a elite e o monopólio dos meios de comunicação fazem dos vários sentimentos de insegurança disseminados entre o povo — no trabalho, na saúde, no futuro — tentando direcionar a indignação apenas para aquele tipo de insegurança que mais salta aos olhos, a da violência óbvia, aparentemente mais ameaçadora, de arma em punho.
Uma das ilusões novelescas que caracterizam o Movimento de Lei e Ordem é a separação das pessoas em dois tipos: os homens de bem, "pagadores de impostos", merecedores dos direitos e garantias previstos em lei; e os homens maus, apresentados como seres geneticamente condenados à perversidade, aos quais via de regra são negados aqueles direitos e garantias, geralmente sob a desculpa de que direitos humanos devem ser reservados apenas para "humanos direitos".
O desdobramento dessa lógica boçal não poderia ser outro: o Direito Penal vira a panacéia que pode resolver todos os problemas dos ditos homens de bem, e para isso agravam-se as penas, criam-se novos crimes, incrementa-se a força policial, e se exige que o judiciário negue a aplicação dos já parcos direitos e garantias fundamentais.
No entanto, o Movimento Lei e Ordem não passa de uma exacerbação de uma lógica perversa que existe antes dele: a lógica antipovo do próprio Sistema Penal — do Direito Penal, da polícia e do sistema penitenciário.
Legislação Hedionda
A história da lei de crimes hediondos no Brasil é a maior e mais descarada expressão em nosso país do Direito Penal Simbólico e do Movimento Lei e Ordem. Essa lei leva a cabo o principal objetivo que norteia o aparato penal em sua lógica antipovo: aumentar a legislação de repressão às massas enquanto se finge atuar em defesa da população oprimida pela violência urbana.
A Lei de Crimes Hediondos foi promulgada durante a administração de Fernando Collor de Mello, em 1990. Ela classificou como inafiançáveis os crimes de tortura, sequestro e tráfico de drogas, e revogou o direito de progressão da pena para os autores desses crimes. Sua justificativa era a de que algo precisava ser feito para conter a criminalidade, principalmente no Rio de Janeiro.
Apostou-se em penas maiores, mais duras e mais desumanas, indo contra todos os estudos científicos sérios sobre a questão da criminalidade, que demonstram a inutilidade do agravamento da repressão.
Assim, a Lei de Crimes Hediondos, não contribuindo em nada para amenizar o sofrimento da população pobre submetida à degradação da violência, fez as vezes de peça publicitária diante do clamor da classe média por mais segurança.
A panacéia foi reforçada quando a Lei de Crimes Hediondos abarcou o homicídio qualificado, o que foi feito em nome da vingança contra os assassinos da atriz Daniela Pérez, em 1992. Filha da novelista Glória Pérez. Daniela foi tragicamente morta por um colega de profissão, auxiliado por sua esposa.
[os] homens maus, … aos quais via de regra são negados aqueles direitos e garantias, geralmente sob a desculpa de que direitos humanos devem ser reservados apenas para "humanos direitos"
O curioso é que a emenda à lei de crimes hediondos não trouxe a vingança esperada: graças ao princípio — que ainda não foi suprimido — de que a lei não pode abarcar crimes cometidos antes de sua existência, os assassinos de Daniela Pérez não foram enquadrados na Lei de Crimes Hediondos.
No início de 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a proibição à progressão das penas dos autores de crimes que a lei considera hediondos.
A reação do Legislativo e do Executivo seguiu à risca a receita do Direito Penal Simbólico: diante da comoção pela morte também trágica do menino João Hélio, arrastado pelas ruas do Rio de Janeiro durante um roubo de carro, o Congresso Nacional aprovou, sob aplausos — a exemplo dos louvores ao personagem capitão Nascimento, do filme Tropa de Elite —, e Luiz Inácio sancionou um projeto de lei que exige o cumprimento de um mínimo de 40% da pena antes que os condenados pelos chamados crimes hediondos possam solicitar progressão da pena; 60% dela para os reincidentes.
A Lei do Crime Organizado é o exemplo mais recente de lei simbólica e marqueteira feita no Brasil. A Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995, finge abordar o crime organizado — entendido genericamente como o tráfico de drogas, que na prática é menos organizado do que se supõe. Na verdade, ela insitui novos procedimentos arbitrários e coloca à disposição da polícia práticas como o chamado "flagrante esperado retardado". Assim, para dar início a uma investigação qualquer, passam a ser dispensáveis qualquer indício de autoria e de existência de crime, passando a valer a mera suposição da autoridade policial.
Além disso, a Lei do Crime Organizado — a exemplo da Lei de Crimes Hediondos — faz valer ainda procedimentos inconstitucionais, como a autorização para juízes pessoalmente recolherem provas a respeito dos processos.
O terror e o lazer
A superlotação penitenciária, as condições insalubres de todo o sistema carcerário, a rotina de violência e humilhação atrás das grades e a utilização terrorista de tudo isso contra as classes oprimidas é mais uma característica do império do Sistema Penal Simbólico e do seu filho legítimo, o Movimento Lei e Ordem.
Quem também é fundamental para a disseminação do terrorismo legal, policial e penitenciário é o oligopólio dos meios de comunicação burgueses, encabeçado pela Rede Globo.
Em 2004, por exemplo, a Globo promoveu uma das maiores campanhas da sua programação recente de deboche e insulto às famílias de presidiários. Começou com uma edição do programa dominical Fantástico, no dia 9 de novembro daquele ano, na qual foram exibidas imagens de presidiários usando drogas no pátio do presídio Bangu IV, no Rio de Janeiro.
…para dar início a uma investigação, passam a ser dispensáveis qualquer indício de autoria e de existência de crime
A voz grave de Cid Moreira lançou a provocação que seria repetida em todos os telejornais da emissora ao longo da semana: "Penitenciárias do Estado ou clube de lazer dos bandidos?".
Poucos anos antes a organização internacional Human Rights Watch havia divulgado um dos mais sérios relatórios sobre o sistema prisional brasileiro, intitulado O Brasil atrás das grades, que descrevia as condições gerais dos lugares onde, segundo a Globo, "os bandidos se sentem em casa":
"Os presos brasileiros são normalmente forçados a permanecer em terríveis condições de vida nos presídios, cadeias e delegacias do país. Devido à superlotação, muitos deles dormem no chão de suas celas, às vezes no banheiro, próximo ao buraco do esgoto. Nos estabelecimentos mais lotados, onde não existe espaço livre nem no chão, presos dormem amarrados às grades das celas ou pendurados em redes. A maior parte dos estabelecimentos penais conta com uma estrutura física deteriorada, alguns de forma bastante grave".
O relatório dizia ainda que nas celas superlotadas abundam "sujeira, odores fétidos, ratos e insetos", além de mortes por causa do calor extremo. A Human Rights Watch confirmava o óbvio: a campanha da Globo era puro terrorismo.
Garantismo: falsa solução
No limite, os caminhos atuais do Sistema Penal — que são o Sistema Penal Simbólico e o Movimento Lei e Ordem, mas também empreendimentos similares, como o Direito Penal do Inimigo e a Tolerância Zero, já abordados por A Nova Democracia —, são a face real do direito penalista burguês, seu verdadeiro rosto, enfim desmascarado porque não é mais possível esconder sua falência.
Na verdade, o máximo de oposição que se costuma fazer a todas essas manifestações exacerbadas do direito penal burguês é uma crítica reformista, empenhada em conter os "excessos" das instituições penais do capitalismo. Essa crítica, via de regra, reivindica um Sistema Penal alicerçado no garantismo — que seria a incondicional observância dos direitos e garantias previstas em lei.
Não há dúvida que um Sistema Penal funcionando debaixo do garantismo é melhor do que um Sistema Penal funcionando segundo os preceitos do Movimento Lei e Ordem. Mas, mesmo assim, continuará sendo um Sistema Penal de matriz antipovo, que se vale da truculência e do terrorismo para incrementar a repressão às classes oprimidas.
O cair da máscara significa não apenas a falência de todo o discurso legitimador dos aparelhos de repressão e controle social, mas também a deteriorização do próprio sistema capitalista, de exploração e opressão das massas.
Portanto, como parte de um processo revolucionário mais avançado, a superação do direito penal deve ser um objetivo das classes que sofrem com a opressão de mais esta instituição burguesa, substituindo-o por instrumentos democráticos de solução de conflitos e de controle do banditismo que atenta contra a dignidade e a soberania do proletariado.