Eles migraram do campo para Brasília, como muitos outros brasileiros expulsos da terra pelo latifúndio. 1 º e 4 º filho, respectivamente, de uma família de dez irmãos, Zé Mulato e Cassiano, ‘sem muito estudo’, trabalharam como pedreiros, jardineiros, pintores de parede, mas, com a música caipira e a viola no coração conseguiram um espaço de ‘cantador’ profissional. Por não aceitarem se ‘americanizar’, sofreram a pena de 14 anos sem gravar, sobrevivendo e continuando na luta pela cultura popular.
— Nascemos em Passabém, interior das Minas Gerais, e fomos criados na roça. A certo tempo, nosso pai viu que não tínhamos mais condições de continuar por lá e nos trouxe para tentar trabalho na capital. Então vendemos tudo que tínhamos, que era: um cavalo de sela, uma mula de carga e uma galinhada no terreiro, coisa de pobre mesmo (risos). E eu vendi uma ‘trela’ de cachorro caçador, para juntar e ‘fazer’ a passagem — conta Zé Mulato.
— Fomos morar de favor na casa de uma tia. Era um barracão na Vila Planalto, perto do Palácio do Planalto, onde tinham muitas casas de madeira. Ela havia se mudado para um apartamento na Asa Norte — continua.
Por ser o mais velho, Zé Mulato veio primeiro com seu pai, em 1969, aos 19 anos de idade, e o resto da família chegou no ano seguinte. Cassiano na época tinha 12 anos.
— Nossa história á parecida com a de milhões de roceiros, que chegam despreparados e tem que encarar o trabalho que aparecer. No começo trabalhei cortando grama e vendendo bolinhos na rua, depois fui ser pintor de paredes — f ala Cassiano.
— Eu trabalhei de pedreiro, cortei grama, capinei, furei valeta, fiz muro, e depois também aprendi a profissão de pintor. Por ser o mais velho tinha que ajudar mais meu pai, que trabalhava também de pedreiro — acrescenta Zé Mulato.
A viola e a vontade de cantar vieram ‘na bagagem’ desses dois brasileiros lutadores.
— Desde menino existia em nós a vontade de cantar, e já cheguei aqui tocando viola. Lá em Passabém conheci um cidadão chamado Raimundo Roda, que me ensinou. E ‘Roda’ não era seu sobrenome, e sim o apelido que ganhou por rodar por aí — explica Zé Mulato.
— Era um andarilho, que ninguém sabia de onde vinha e nem para onde ia. Passava pela minha terra, rodando casas e tocando viola, eu ia atrás. Assim ele acabou me ensinando a afinação do instrumento. O Cassiano ainda era ‘menino de tudo’, mas já interessado por violão e cavaquinho. Hoje ele toca qualquer instrumento de corda — acrescenta.
A dupla começou suas atividades em meados dos anos de 1970, mesclando o ‘trabalho pesado’ na área da construção civil com as apresentações musicais.
— Tivemos a primeira oportunidade na Rádio Nacional daqui. E eles acabaram nos cedendo meia hora toda semana, nas quarta-feiras, para cantarmos, assim dando início a nossa vida de ‘cantador profissional’ — lembra Zé Mulato.
Sem abrir mão do autêntico caipira
Zé Mulato e Cassiano conseguiram gravar seu primeiro disco em 1978, cantando clássicos caipiras, entre eles, da dupla Zé Carreiro e Carreirinho.
— Eles são considerados como pai do estilo que gostamos, o ‘estilão’. O Carreirinho e a Zita Carreiro foram as pessoas que nos ajudaram a gravar esse disco — fala Cassiano, acrescentando que nessa época Zé Carreiro já havia falecido.
— Depois disso ficamos um tempão sem gravar, porque as gravadoras queriam nos impor o que eles chamam de moderno, que é a música que aqueles ‘cabeça de bagre’ (risos) vestidos de cowboys cantam. O fato de não aceitarmos esse absurdo nos custou quase quatorze anos sem gravar. Mas, preferimos assim à gravar esses ‘trem’ que eles chamam de moderno — continua.
— Infelizmente somos poucos a pensar assim, porque um monte de gente começou a se ‘americanizar’. Dizem que cantam ‘música raiz’, mas de raiz não tem nada. Os rodeios, por exemplo, só tocam esses americanizados. Escrevi uma letra de música falando disso, porque para mim estão americanizando tudo, até mesmo o nosso cavalo, que é um autêntico ‘filho de uma égua’ (risos), foi substituído nos rodeios pelos americanos, montados por brasileiros fantasiados de cowboys — acrescenta Zé Mulato.
— Encrenco com esse ‘trem’. Sou brasileiro até ‘passado da medida’ e creio que o nosso trabalho é fácil de administrar porque é verdadeiro. Difícil é administrar a mentira, mas a verdade é natural — continua.
A dupla conseguiu gravar seu segundo disco com a ajuda de Pena Branca e Xavantinho.
— Já estávamos meio descrentes, e eles nos arrumaram uma gravadora. Gravamos então Meu céu , que acabou ganhando até um prêmio. E continuamos gravando depois — fala Cassiano.
Eles têm feito muitos shows por todo o país, sempre muito bem recebidos. Também gravado seus discos de forma independente e distribuindo em shows e pela internet.
— No ano passado cantamos no Norte, Sudeste, Sul, viajando de ‘lá para cá’. Só nos falta ir no Amazonas, Rio Grande do Norte e Amapá. Nossas gravações mais recentes foram esses Cds e Dvd que fizemos junto com outros artistas. E temos repertório para lançar outro ou até dois há qualquer momento — comenta Zé Mulato.
Além de tocador de viola e cantador, Zé Mulato é muito bom também como letrista.
— O Cassiano é mais forte na parte da música, e eu na letra. A maioria do que cantamos é coisa nossa mesmo, falando das coisas do dia-a-dia e fatos imaginários. Contamos causos que temos como verídica, e que não sabemos a origem. Histórias que ouvi do meu avô e do meu pai, e minhas mesmo, quando caçava no mato — fala Zé Mulato.
— As pessoas dizem que tem muito humor nas nossas músicas, mas isso faz parte da vida dos roceiros. A nossa veia humorística veio do nosso pai e também de uma questão matemática: o caboclo nasce pobre e feio, se com tudo isso ainda for triste, está piorando a sua situação (risos) — brinca.