Do “processo de mudança” ao impulsionamento da semifeudalidade

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Do “processo de mudança” ao impulsionamento da semifeudalidade

Nota da redação: Os recentes acontecimentos na Bolívia, como o "plebiscito" convocado pelos fascistas de Santa Cruz de La Sierra que reivindicam se separar do país expõem a que grau chegou a fragilidade do governo Evo Morales: de um lado não consegue implementar as mínimas reformas que atendam aos interesses das massas bolivianas e do outro a pressão dos setores mais reacionários que promovem movimentos separatistas e racistas, comandados pela grande burguesia localizada nos departamentos (estados) mais desenvolvidos da Bolívia.

O resultado da "consulta" promovida pelos fascistas em Santa Cruz foi considerado um fracasso dos reacionários, uma vez que mais da metade dos eleitores não votaram ou votaram em branco ou nulo. Em seguida, Evo Morales prometeu ratificar um projeto do Senado que prevê um novo plebiscito, desta vez nacional, para confirmar se a maioria da população quer a permanência do presidente, do vice e dos oito governadores do país. O texto a seguir faz uma análise das questões de fundo desse processo.

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/43/13.jpgO falaz "processo de mudança" na Bolívia está muito longe de qualquer tentativa de cumprimento de certas tarefas democrático burguesas que pretendam varrer o capitalismo burocrático existente neste país encravado no coração da América.

Com muito mais razão, é impróprio chamar o governo Evo Morales de "governo revolucionário" ou "governo da mudança". Pelo contrário, esta administração governamental precipita aceleradamente um evidente reimpulso da semifeudalidade no território boliviano, como demonstraremos nas linhas seguintes.

Uma expressão que demonstra contundentemente nossa afirmação é a disputa pelas autonomias — tanto departamentais como indígenas — que eleva à enésima potência a fragmentação do território boliviano. A contenda entre as velhas elites latifundiárias dos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando e Chuquisaca ("Meia Lua" ou direita) contra as novas elites gamonal-sindicalistas do ocidente ("esquerda") mostra que ambos os projetos de país em disputa são formas diferentes de consolidar o capitalismo burocrático na Bolívia. Para além dos cantos de sereia das elites gamonal-sindicalistas, habilmente ataviadas com o verniz ideológico do indianismo e de uma suposta postura de esquerda nacionalista popular que conseguiu colocar Evo Morales como presidente da república.

A animosidade foi atiçada pela proposta constitucional formalizada pela assembléia constituinte no fim do ano passado, que fragmenta e esquarteja ainda mais o frágil Estado Boliviano em nove governos autônomos para cada um de seus departamentos. Sem dúvida, este desenho estatal corresponde à pressão das velhas elites latifundiárias da "Meia Lua" que pretendem varrer do mapa qualquer rascunho de construção de um Estado-nação com economia integrada na Bolívia.

Por outro lado, o partido afinado com o governo gamonal-sindicalista de Evo Morales, ainda que tenha inserido o desenho das autonomias departamentais na proposta constitucional para comprazer a fração compradora do velho Estado, com a que se encontra em conluio e pugna, também introduziu a figura das chamadas "autonomias indígenas", como uma forma de ordenamento territorial tendente a potenciar ao infinito os "caciques locais", que se arrogam o título de "genuínos representantes do povo", quando não passam de uma velha crosta sindical enquistada em espaços populares, historicamente incrustada na burocracia estatal boliviana através de prebendas.

Se assinala como histórico o encaixe da velha crosta sindical, hoje transformada em nova elite gamonal-sindicalista, porque o sindicalismo na Bolívia se especializou em cavalgar de maneira oportunista o modus operandi da mediação prebendal, traindo mais de uma vez suas bases proletárias e camponesas. Já o havia feito na década de 50 do século XX, na chamada revolução de 1952, tendo como líder Lechín, velho traidor das bases mineiras. Também o fizeram os sindicalistas agrários entre as décadas de 60 e 70 com o ignominioso pacto militar camponês. Agora voltam a fazê-lo, quando pela primeira vez conseguem impor um presidente como protagonista e já não como mero reboque.

O governo gamonal-sindicalista de Evo Morales abre caminho impondo a velha política de confrontar massas contra massas, como ficou evidente em Huanuni (enfrentamento de mineiros cooperativistas com assalariados) em janeiro de 2007 na cidade de Cochabamba. Sua mão não tremeu nem mesmo para reprimir, nos últimos meses de 2007 o povo de Sucre, nem muito menos aos habitantes da localidade de Camiri, província cordilheira do Departamento de Santa Cruz, entre os meses de março e abril de 2008.

O processo de autonomias departamentais proposto pela Assembléia Constituinte de 2007 é suficiente para as elites latifundiárias da "Meia Lua", que abertamente abriram um processo de confronto com a administração estatal gamonal-sindicalista, apresentarem um estatuto autônomo para cada um dos departamentos onde se impõem atribuições fiscais, manejo territorial, funções administrativas e poderes especiais que marginalizam qualquer vislumbre de administração central sobre os recursos naturais, especialmente a terra e a água, com uma clara intenção de esquartejar a unidade administrativa política e estatal e negar-lhe a possibilidade de estabelecimento de planos estratégicos nacionais, uma evidente política de parcelização do território boliviano em nove feudos departamentais.

Ante a inexorável potenciação do fracionamento administrativo político nos nove feudos, a administração gamonal-sindicalista aposta em fragmentar ainda mais o território boliviano a favor de "caciques locais" vestidos com o demagógico discurso indianista, o que além de debilitar ainda mais a unidade estatal na Bolívia, também enfraquece os nove feudos departamentais, empossando pequenos caudilhos e reis instalados em um número maior de minifeudos, baseado em anteriores balões de ensaio propostos pelo primeiro governo Sanchez de Lozada (1993-1997), como foram as chamadas Terras Comunitárias de Origem (TCO) e a Lei de Participação Popular.

As Terras Comunitárias de Origem surgiram como um conceito mediante o que se pretendia entregar títulos indivisíveis a comunidades indígenas. Na prática, grande parte das TCOs só beneficiaram a pequenos caudilhos locais que se aproveitaram do discurso indianista para se apropriarem de terras, excluindo do usufruto dessas terras uma vasta população indígena que vive em condições de extrema pobreza ou indigência e deixando a decisão de negociar certos recursos naturais estratégicos da Bolívia (Madeira, terra, água, minerais, entre outros) a um só grupúsculo de caciques com determinadas empresas transnacionais, à margem de qualquer intervenção soberana nacional, sob a auréola da velha equação indígenas = "defensores da natureza", "bons selvagens", discurso que repete as mesmas robinsonadas1 do contratualismo inglês dos séculos XVII e XVIII, mas que na prática robustece políticas entreguistas e vende-pátria.

Tanto que os critérios descentralizadores inseridos na Lei de Participação Popular possibilitaram o crescimento do enfeudamento em mais de três centenas de municípios nas mãos de pequenas elites locais que agora reproduzem em miniatura o manejo corrupto e predador do velho Estado boliviano em detrimento dos camponeses pobres das comunidades camponesas afastadas dos agora pequenos centros assaltados pelas elites gamonais locais.

Por outro lado o desenho estatal boliviano desde sua fundação sempre respondeu a um modelo corporativo, onde as elites latifundiárias dos departamentos se combinavam, uma vez que tinham que se por de acordo para governar o país. Esse mesmo modelo, essencialmente, não foi tocado na proposta constitucional da Assembléia constituinte de 2007. O que ocorreu foi um sério abalo no pacto das elites departamentais, provocado pela instalação como nova elite da crosta gamonal-sindical do Ocidente, encabeçada pelo cocalero Evo Morales e o guerrilheiro arrependido Garcia, que antigamente era apenas uma peça de mediação para abrandar a efervescência das massas na Bolívia e agora assume o papel de protagonista na direção do país em meio às atribulações pela falta de pactos e consensos entre velhas e novas elites.

A história da nova elite na Bolívia tem seus antecedentes logo na chamada Guerra do Chaco (Bolívia-Paraguai, 1932-1935), em que dirigentes sindicalistas como Lechín conseguiram certa importância dentro da estrutura estatal boliviana. Dali em diante as dietas sindicais foram, em geral, pagas pelo Estado — com algumas poucas rupturas — ou dependiam de certas dádivas estatais, como o obséquio de bens imóveis com os quais se beneficiava a crosta sindical a fim de castrar o fio revolucionário das bases proletárias e camponesas. Basta fazer um rastreamento de como foram obtidos os atuais prédios das sedes sindicais para constatar esta afirmação, fato que demonstra a falta de autonomia e independência do Estado por parte da maioria dos sindicatos na Bolívia.

Talvez o pico mais alto escalado pela crosta gamonal-sindicalista na Bolívia antes da ascensão de Evo Morales à presidência foi a chamada Assembléia Nacional Popular no governo do general Juan Jose Torres, périplo no qual, por volta de um ano só se fez alarde de líderes sindicateiros entre quatro paredes sem maior transcendência e uma debilidade de fundo que permitiu a irrupção do fascista Hugo Banzer Suárez, ficando a Assembléia Nacional Popular como uma página vergonhosa para o povo boliviano e os povos do mundo, razão pela qual se deve estar sempre alerta e sempre presente para não desbarrancar-se no vil oportunismo e revisionismo que caracterizou esta obscura experiência revolucionaróide.

A possibilidade de Ascenso social de um grupúsculo de caciques sindicais está associada diretamente com a maleabilidade da fração burocrática da burguesia boliviana dentro do capitalismo burocrático. Depende muito da velocidade e vertiginosidade das corridas sindicais, além da astúcia dos supostos "paladinos do povo", como, por exemplo, Abel Mamani, que, sendo dirigente da Federação de Juntas Vecinais da cidade de El Alto e sob a demagógica bandeira da defesa da água para o povo altenho, conseguiu um espaço como "Ministro da Água", problemática muito evidentemente desconhecida por ele. Outro exemplo é Román Loayza, velho dirigente sindical camponês cuja proximidade do poder já data de mais de uma década. Estes são apenas dois botões de uma longa lista encabeçada pelo próprio Evo Morales, que graças a uma hábil estratégia de marketing político foi projetado como "líder indígena popular" de "todo" o terceiro mundo, graças ao apoio rasteiro da esquerda-caviar latino-americana e européia.

Para finalizar, ainda que os proponentes das autonomias departamentais desfraldadas por setores oligarcas do Oriente da Bolívia e as autonomias indígenas impulsionadas pelas novas elites gamonal-sindicalistas não se ponham de acordo sobre o desenho estatal de país que se busca na Bolívia, ambas as facções do capitalismo burocrático já deram importantes passos para consolidá-lo, em especial seu componente de semifeudalidade.

Operários rejeitam Evo e a oligarquia

Livrando-se do controle governamental, o XIV Congresso da Central Operária de Oruro, controlada pelos mineiros proletários, postulou a via revolucionária para superar o tíbio reformismo do governo indígena de Evo Morales e para aplastar a rebelião da oligarquia separatista do Oriente.

"Não queremos nem os estatutos autonômico-separatistas da oligarquia nem a Constituição Política dos MAS" declarou o secretário executivo da Central, Jaime Solares, que foi eleito para retomar a luta revolucionária de 2003, recuperar a linha de independência sindical frente ao governo e impulsionar uma luta frontal contra a burguesia, as transnacionais e o imperialismo

O congresso de Oruro questionou a gerência de Morales por abandonar a agenda de 2003-2005 e por buscar uma conciliação e aliança com a oligarquia, ao invés de combatê-la e derrotá-la.

— Os trabalhadores não estão nem com Evo nem com os fascistas da oligarquia. Os trabalhadores estão com a revolução — declarou Solares.

A Central Operária postula que o Estado expulse as transnacionais e nacionalize o gás, o petróleo e as minas e melhore as condições de vida e de trabalho da empobrecida população boliviana. Reivindica ainda a imediata expropriação das terras dos latifundiários e sua distribuição entre a população indígena e os camponeses pobres.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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