Dobram os sinos do fascismo .

Dobram os sinos do fascismo .

Rodovia RS 230, arredores do município de Sapiranga, 30 de setembro de 2005. Sapateiros da região do Vale dos Sinos — que na acepção que tem para a economia gaúcha abrange também o Vale do Paranhana — acabam de realizar um protesto pacífico contra o desemprego e estão terminando de dispersar. Subitamente, um grupo de policiais militares avança sobre Jair Antonio da Costa, 31 anos, diretor do sindicato de Igrejinha e liderança ascendente da categoria. Jair é imobilizado, algemado e agredido. Outros manifestantes tentam ir em seu socorro, mas a polícia saca as pistolas e os mantém fora de ação. Jair é estrangulado com um cassetete.

 Já inerme, é levado ao hospital da cidade. Seus companheiros tentam acompanhá-lo, mas a Brigada Militar obstrui a entrada e novamente saca as pistolas para intimidar os sapateiros que se aproximam. Todos já sabiam que Jair estava morto. Tenta-se uma farsa: um laudo aponta como causa mortis parada cardiorrespiratória; mas ela desmorona em questão de horas: logo, um médico indicado por parlamentares chamados pelos sindicalistas confirma o que já se sabia: o sindicalista fora assassinado por asfixia mecânica. Era o cadáver que faltava para coroar a política de repressão e violência contra os movimentos populares promovida pelo governo de Germano Rigotto.

Categoria esmagada

A morte de Jair comoveu o Rio Grande do Sul e serviu para lançar luz sobre a dramática realidade dos sapateiros do Vale dos Sinos, premidos entre o desemprego avassalador e as condições humilhantes de um trabalho sem direitos.

Os trabalhadores do chamado complexo coureiro-calçadista do Vale dos Sinos são vítimas exemplares do processo de degradação da economia brasileira. O setor vive há quinze anos uma crise que atingiu dimensões de colapso entre 1994 e 1998, quando, de acordo com dados do Ministério do Trabalho, mais de 200 empresas fecharam as portas e 40 mil empregos foram eliminados (de 154 mil para 115 mil) apenas nos setores diretamente envolvidos com a transformação do couro em calçado, sem contar o de máquinas industriais e o impacto sobre o conjunto da economia da região.

Em Novo Hamburgo, cidade-pólo, o número de trabalhadores empregados no setor caiu de 27 mil para 6 mil neste intervalo, segundo informações do Sindicato dos Trabalhadores no Calçado do município — há vinte e cinco anos, era de 35 mil. A partir de 1999, há uma tímida recuperação que, em seu melhor momento, em 2003, resultou em 15 mil trabalhadores empregados no município; hoje, calcula-se que sejam 12 mil.

O completo desaparecimento do setor foi evitado pelo redirecionamento de parte significativa da produção para o mercado interno, pela concessão de incentivos por parte do governo Olívio Dutra (1999/2002) e pela desvalorização do real a partir de 99. Mas a crise persiste e as condições de trabalho pioram a cada dia. Ao desemprego, somam-se fatores sempre presentes na história da indústria calçadista gaúcha e hoje agravados: alta rotatividade da mão de obra, baixos salários, condições insalubres de trabalho e alto número de horas extras.

Das empresas falidas, os trabalhadores até agora não viram a cor do dinheiro. Provavelmente nem verão. Com a Lei de Falências imposta pelo FMI, aprovada em 2003, e a revogação da Súmula 20 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a partir de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a justiça passou a conceder prioridade aos adiantamentos de contrato de câmbio — na maioria dos casos, em maior valor que o do patrimônio — sobre os créditos trabalhistas.

Ladeira abaixo

Embora suas sementes tenham começado a ser plantadas no período de gerenciamento militar do Estado brasileiro, o panorama sócio-econômico atual do Vale dos Sinos seria inimaginável alguns anos atrás. As pequenas e médias cidades das zonas de colonização alemã da região Sul, estruturadas em torno da agricultura familiar e da indústria local, sempre foram modelos de prosperidade econômica, boa distribuição de riqueza e coesão social. Esta forma de organização sócio-econômica, em que predominava a pequena burguesia e tinham voz ativa o campesinato e — onde ele existia — o operariado, revelou-se desde logo incompatível com a orientação predominante na economia nacional a partir de 1964.

Na própria formação do pólo coureiro-calçadista do Vale dos Sinos, verifica-se a ocorrência de um processo de concentração do capital e direcionamento da produção para o mercado externo. Mas as características tradicionais da vida local, profundamente arraigadas — ou ao menos a lembrança delas — permaneceram presentes.

A degradação não se deu da noite para o dia. Encontrou pela frente a tradição de altivez do trabalhador gaúcho de origem imigrante. Além disso, os baixos salários e a alta rotatividade que decorreu do fim da estabilidade no setor privado em 1966 (AND 22) — característica geral do trabalho no Brasil que se manifesta de forma particularmente aguda no setor — eram parcialmente compensados pela efetiva oferta de vagas. Se bem que os patrões tenham, através da notícia do emprego farto, incentivado, para poderem formar um exército de reserva e manter baixos os salários, uma migração muito maior do que o que seria necessário. Antes, o trabalhador tinha a opção de trocar de fábrica, o que o eximia de submeter-se a ofensas e humilhações vindas dos chefes, por exemplo.

O próprio trabalho nas fábricas já havia representado o primeiro passo no rumo da degradação social para muitos operários na época da grande expansão do setor (década de 1970). De origem camponesa, haviam acorrido à cidade premidos por fatores como a perda da terra para os bancos por meio de empréstimos ruinosos (AND 6 ) depois que a lei da reforma bancária de 64 inviabilizou as cooperativas de crédito da pequena agricultura, historicamente fortes no Rio Grande do Sul; ou a proibição, pelo Estatuto da Terra, em 1965, da divisão de propriedades com menos de 50 hectares, o que expulsava os filhos dos colonos para as cidades. Lá, eles constituem-se não só como proletariado, mas como proletariado externo: as fábricas que surgiam ou cresciam tinham o grosso de sua produção destinada a mercados estrangeiros, já que o interno sofria com a compressão brutal dos salários da base.

Entretanto, a situação não era tão dramática. Mantinha-se ainda, na maioria das fábricas da região, resquícios do respeito ao trabalho existente na época dos artesãos alemães que haviam dado origem à indústria no último terço do século passado. Hoje, as alterações produzidas no modo de vida local e, em consequência, no próprio cenário urbano, tornam uma cidade como Novo Hamburgo irreconhecível. Em suas ruas ainda não é tão observada a degradação cotidianamente presenciada em capitais como Rio de Janeiro, São Paulo ou Porto Alegre; mas ver pessoas reduzidas à mendicância numa região que nunca conheceu a miséria dá bem a dimensão do crime histórico perpetrado por Cardoso e Luiz Inácio.

Dimensões de genocídio

O que ocorreu no governo Cardoso tem feições de genocídio. Além da destruição do setor pela abertura às importações e do consequente desemprego, a permissão de horas-extras não-remuneradas, a partir do advento da Lei 9.601/98, representou um estímulo às empresas para que aprofundassem o que sempre fora um dos piores traços de sua conduta, além de reduzir ainda mais o poder aquisitivo dos trabalhadores. Os sapateiros bem que tentaram resistir.

Neiva Barbosa, dirigente dos sapateiros de Novo Hamburgo, conta que sua entidade negou-se a aceitar o banco de horas. Em resposta, os patrões recusaram-se, durante quatro anos, a assinar qualquer acordo coletivo. O dissídio teve que ir a julgamento e os juízes anularam todas as conquistas estabelecidas em acordos anteriores (auxílio-creche, tempo ampliado para amamentação, etc.), fazendo o sindicato voltar atrás.

Esta medida teve um impacto violento.

Conforme explica Neiva, a remuneração das horas extras fazia parte — de tão habituais que elas eram — do orçamento familiar dos sapateiros. Como os salários do setor sempre foram baixos — em seu melhor momento, em meados dos anos 80, quando as boas condições de mercado e as lutas sindicais concorriam para sua elevação, chegavam em média a três salários mínimos, e hoje estão em pouco mais de um -, a extinção desta fonte de renda reflete-se sobre o consumo familiar de alimentos e remédios.

Além disso, a redação dada à CLT pelo governo Cardoso encoraja os patrões a exigirem mais e mais horas extras de seus empregados. Acontece que o processo de produção de calçados é insalubérrimo.

Nos anos 70 e 80, o movimento sindical conseguiu, a duras penas, arrancar dos patrões a modernização do maquinário — o que diminuiu o número de mutilações -, mas as doenças motoras e as causadas por agentes químicos aumentam a cada dia. A cola usada na fabricação de calçados é feita à base de benzeno, composto químico que, quando aspirado, integra-se à corrente sanguínea e atinge todos os órgãos do corpo humano, causando danos particularmente graves ao sistema nervoso central. Para diminuir o tempo médio de produção dos calçados, as fábricas expõem os trabalhadores ao contato com a cola em concentrações altíssimas.

O INSS é sócio dos patrões neste massacre. Embora seu regulamento (Decreto 3.048/99) reconheça, de um lado, a correlação entre o trabalho na indústria calçadista e a exposição ao benzeno e, de outro, a associação entre a exposição ao benzeno e a ocorrência de um variado rol de moléstias (leucemia, síndromes mielodisplásicas, agranulocitose ou neutropenia tóxica, leucocitose, lesões cerebrais, púrpura, anemia aplástica, hipoplasia medular, transtornos de personalidade e comportamento, depressão, neurastenia, encefalopatia tóxica, hipoacusia e efeitos tóxicos agudos), ele se recusa terminantemente a reconhecer a ocorrência de acidentes e doenças ligadas ao trabalho.

Dados viciados

Nos anos de 2002 e 2003, por exemplo, os dados da Previdência Social indicam a inocorrência de doenças profissionais em Parobé, município que gira em torno da fábrica da Azaléia. Para o advogado Décio Scaravaglioni, do escritório Portanova, que presta assessoria ao Sindicato dos Sapateiros local, esta estatística é “digna de inscrição no concurso de mentiras até há pouco existente em Nova Bréscia, município do interior do Rio Grande do Sul”. A situação em Parobé é particularmente ruim.

Conversando com trabalhadores da cidade, a maioria se queixa de fortes dores de cabeça, prejuízos à visão — causados principalmente pela acetona e recorrentes entre as costureiras, que trabalham forçando os olhos — e outros problemas de saúde. Muitos têm menos de quarenta anos e parecem ter mais de cinquenta.

Como a Previdência conseguiu, então, concluir pela inocorrência de qualquer doença profissional no município?

A resposta está na conduta dos médicos que examinam estes trabalhadores. Os departamentos médicos das empresas são açougues de carne humana. O trabalhador queixa-se de dores de cabeça causadas por exposição ao benzeno e o médico, sem pedir qualquer exame, receita aspirina. Se o operário chega a procurar o INSS, o tratamento que recebe dos peritos não é melhor. Aliás, como denuncia José de Moraes, presidente do Sindicato dos Sapateiros de Igrejinha, os médicos da Previdência e os das empresas são, em cidades pequenas, muitas vezes os mesmos. São também muitas vezes os mesmos que atendem pelas unidades locais do Sistema Único de Saúde (SUS). Quando não são, não há problema para as empresas: elas simplesmente não aceitam atestados e laudos que não sejam emitidos pelos médicos de seus próprios departamentos.

Na mesma linha, de acordo com Neiva, o INSS tampouco aceita, em regra, comunicações de acidente de trabalho (CATs) que não sejam emitidas pela empresa. Para Scaravaglioni, “se estabelece uma lógica conexão entre o agir da seguradora oficial e o dos empregadores”.

O INSS deixa de pagar benefícios de auxílio-doença, auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez e os patrões livram-se da estabilidade de 12 meses que a lei garante ao acidentado quando retorna ao trabalho. O IN SS recusa-se até mesmo a reconhecer o trabalho nas fábricas de calçados como insalubre para fins de contagem diferenciada de tempo de serviço e aposentadoria especial. Observe-se, porém, que a lógica que guia sua atuação não é contábil. O que ele deixa de pagar em termos de benefícios não chega ao que deixa de ser arrecadado dos patrões a título de contribuição para o Seguro de Acidentes de Trabalho (SAT).

O que se manifesta, aqui, é a opção preferencial do Estado pelos patrões ricos.

Em 2003, a Previdência reconheceu, na indústria de calçados, 317 casos de doenças profissionais para um total de 344.341 vínculos empregatícios (menos de 0,1% dos trabalhadores). Estes dados referem-se a todo o território nacional. Sabendo que as condições de trabalho em Franca (SP), o outro grande polo produtor de calçados não são melhores (AND 20) e que no Nordeste são notoriamente piores, estes dados revelam-se completamente inverossímeis quando contrastados com o resultado de estudos realizados por pesquisadores vinculados à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a pedido do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Delegacia Regional do Trabalho (DRT) no ano de 2002.

O engenheiro Luiz Carlos Freire de Carvalho mediu a ocorrência de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT) em uma fábrica da região e constatou que 35% dos trabalhadores apresentavam problemas desta natureza, dos quais o mais comum era a síndrome do túnel do carpo. Em alguns setores, como o das chanfradeiras, este índice chegava a 70%. Estes dados se referem a fábricas. Em algumas unidades terceirizadas de produção (ateliês) o índice chega a 100%.


Jair Antônio da Costa sendo imobilizado por policiais

Maravilhas da exploração

Não por ser tão trágico é menos curioso o quadro da indústria gaúcha de calçados: condições de trabalho dignas da revolução industrial inglesa convivem lado a lado com instituições da exploração sofisticada, como LER/DORT, terceirização e programas de qualidade de inspiração japonesa — todas elas, aliás, intimamente relacionadas. O que conduziu as condições de trabalho no setor à dantesca situação atual não foi apenas a crise econômica. Há políticas deliberadas de precarização das condições laborais postas em prática pelas empresas.

A terceirização é uma delas. O problema, que existe também na região de Franca, foi tratado em AND 20 e manifesta-se em igual intensidade no Vale dos Sinos. Etapas da produção são delegadas a oficinas onde não há direitos nem proteção ao trabalhador e onde grassa — hoje menos do que há dez anos por conta da atuação do MPT — o trabalho infanto-juvenil. Este problema foi levemente atenu ado após a edição do Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) em 2000, mas está longe do fim. José de Moraes estima que em Igrejinha existam 2.000 pessoas trabalhando em ateliês (nas fábricas, 7.000). Em outros municípios, a situação é pior.

Nas próprias fábricas, a LER/DORT grassa pela imposição aos operários da obrigação de trabalhar em pé. Esta mudança, datada da década de 90, alterou um costume bastante arraigado entre os sapateiros gaúchos — trabalhar sentado em cadeira de palha — que vinha dos tempos dos artesãos alemães, quando os donos das oficinas trabalhavam lado a lado com seus funcionários. Os donos das fábricas trouxeram esse “costume” do Japão no bojo de programas ditos de qualidade.

No âmbito das mesmas pesquisas realizadas pala UFRGS a pedido do MPT, a fisioterapeuta Jacinta Renner, professora do Centro Universitário Feevale, de Novo Hamburgo, constatou que o desconforto e o risco de doenças osteomusculares aumentam exponencialmente nesta posição — o que já seria de se esperar. Mas Jacinta teve a curiosidade de medir também o impacto da mudança postural sobre a produtividade, tomando como exemplo o setor de costura. As trabalhadoras tiveram sua produtividade medida em quatro situações: em pé, alternada (em pé e sentada), sentada em cadeira de palha e sentada em cadeira ergonômica. Os resultados foram surpreendentes. Em nenhuma das fábricas pesquisadas, houve diferença significativa de retrospecto e, na maioria dos casos, foram melhores os índices das que trabalhavam sentadas.

A única conclusão possível é que o objetivo não é o de aumentar a produtividade, mas rebaixar o estado de ânimo do trabalhador.

O repertório de crueldades não termina aí. Ao longo dos últimos anos, as empresas tentaram de tudo: férias fatiadas, trabalho infantil pago com sapatos, máquinas de costuras computadorizadas com alarmes que tocam toda vez que a caixa receptora das peças fabricadas não corresponder ao imposto pela chefia, proibição de idas ao banheiro ou limitação ao tempo máximo de 1 minuto, demissão de grávidas; em não poucas empresas, calor efetivo e ventilação precária no ambiente de trabalho. E o pior é que parecem pouco se intimidar com a atuação do MPT e da DRT — insuficiente, a rigor.

Afinal, os patrões sabem que têm consigo o aparato repressivo e a imprensa. Os sapateiros da região conhecem a violência policial de perto. Conviveram com ela desde o início de suas lutas, ainda no período de gerenciamento militar. Mas seus dirigentes são unânimes ao afirmar aquilo que não é segredo no Rio Grande do Sul: que a situação piorou muito durante o governo Germano Rigotto.

— Com o Britto (Antonio Britto, ex-governador, hoje presidente da Azaléia), a polícia batia mas não matava. Depois, com o Olívio, veio o que nós chamamos de ‘cassetete democrático-popular’, os brigadianos (policiais) tinham ódio do Bisol (secretário de segurança que tentou promover o respeito aos direitos humanos na corporação); e agora, com o Rigotto, a violência aumentou de uma maneira absurda — diz Neiva.

Repressão violenta

Durante as campanhas salariais deste ano, os sapateiros foram cercados pela polícia. Houve agressões — inclusive a mulheres — durante uma manifestação em Ivoti. Mesmo em Igrejinha, onde o dissídio foi tranquilo na avaliação do sindicato, policiais postavam-se às portas das fábricas fotografando manifestantes.

Em outras manifestações, não foi necessário que os brigadianos atuassem ostensivamente: a imprensa da região prestou-lhes este serviço. Historicamente patronal e reacionária, deu agora para agir como linha auxiliar do aparato repressivo. Neiva conta que, durante uma manifesação realizada em Novo Hamburgo, jornalistas do Jornal NH fotografavam trabalhadores. A maioria das fotos não foi publicada, mas entregue às empresas, que identificaram os operários que apareciam nelas e demitiram todos. Algumas empresas de Novo Hamburgo, como a HG, demitem quem se filia ao sindicato. Já em outras, como a Marisol, o simples fato de ser visto conversando com um sindicalista é suficiente para que um sapateiro perca o emprego.

Num contexto como este, e sendo de domínio público que o secretário de Segurança do estado, José Otávio Germano, é um velho cultor da selvageria fardada, os sindicalistas entrevistados não hesitam em afirmar que o assassinato de Jair Antonio da Costa não foi fruto do acaso ou da ação de um grupo de policiais mais exaltados.

— Eles queriam pegar alguém — diz Neiva.

Moraes vai além: conta que Jair era, durante o último dissídio, o coordenador de som do sindicato e estava sempre na porta das fábricas puxando manifestações, motivo pelo qual acredita que a polícia não apenas quisesse um cadáver como quisesse Jair — e não descarta o interesse de empresários de Igrejinha em sua morte.

Cerco fechado

Atacados pelos patrões, pela polícia e pela imprensa, os sapateiros permanecem acossados. Alguns dirigentes passaram a ter acompanhamento psicológico depois da morte de Jair. Apesar do afastamento dos policiais envolvidos no assassinato, a intimidação prossegue. Neiva conta que, enquanto prestava depoimento como testemunha na delegacia de Sapiranga, um dos assassinos, Marlon Carvalho da Silva, capitão, postou-se de pé atrás dela, fardado e armado. Marlon chegou a ser preso juntamente com o comandante da Brigada Militar em Sapiranga, tenente coronel José Paulo Silva da Silva; o major Eduardo Pithan, comandante da operação que resultou na morte do sindicalista e o tenente Edemilson Gonçalves da Silva. No entanto, todos foram liberados por habeas corpus porque a prisão dera-se às vésperas do referendo sobre a proibição do comércio de armas e munições.

Na outra frente — a econômica — a situação não é melhor. O governo Rigotto adotou política de favorecer as grandes empresas, deixando à própria sorte as pequenas, onde estão os empregos. Neiva denuncia que a Marisol, cuja fábrica funciona em um terreno doado pela prefeitura de Novo Hamburgo, e que não paga sequer a água que usa, recebeu R$ 42 milhões do poder público, enquanto pequenas e médias indústrias fecham porque o governo não lhes repassa os créditos do ICMS que a legislação estadual garante aos exportadores.

Em meio ao desemprego e ao desalento, cercados pela repressão, os trabalhadores tentam organizar-se como podem para não serem completamente tragados pela miséria. Alguns deles, de origem camponesa, tentam retornar à terra, apesar da agonia enfrentada pela agricultura familiar no estado.

Em Nova Hartz, há centenas de camponeses agrupados no Movimento dos Sem Terra, todos eles colonos vindos uma ou duas décadas atrás à cidade para trabalhar nas fábricas de calçados. No começo de outubro, decidiram dar a seu acampamento o nome de Jair Antônio da Costa.

Contando com a solidariedade dos ex-companheiros de fábrica, tentam resistir à repressão e à miséria de uma forma que evoca os versos de Jayme Caetano Braun em Galo de rinha:

Porque na rinha da vida
já me bastava um empate
pois cheguei ao arremate
batido, sem bico e torto…
E só me resta o conforto,
como a ti, galo de rinha,
que se alguém dobrar-me a espinha
há de ser depois de morto!”

Perfil e números

As informações desta matéria baseiam-se em números do Ministério do Trabalho e da Fundação de Economia e Estatística Siegfried Emanuel Heuser (FEE).

Entre 1955 e 2000, 66 mil imigrantes chegaram à região do Vale dos Sinos. A indústria calçadista responde, historicamente, por algo como 1/4 do emprego industrial no Rio Grande do Sul, mas, devido aos baixos salários, por uma proporção bem menor dos rendimentos do trabalho industrial (em 1998, 26,5% do emprego e 17% dos rendimentos incluídas as retiradas de caixa feitas pelos patrões de acordo com estudo de Rubens Soares de Lima publicado pela FEE).

A rotatividade de mão de obra também pode ser medida: entre julho de 2000 e maio de 2001, houve 82.294 contratações e 77.121 demissões em um setor que empregava aproximadamente 130 mil pessoas. A participação histórica do setor na produção nacional de calçados gira em torno de 40%; já seu peso na pauta brasileira de exportações do produto é de 70 a 80%. Estes números têm mudado um pouco.

Na década de 1970, as fábricas do RS contituem-se como grandes ateliês para atravessadores internacionais que aproveitavam a conjuntura do gerenciamento militar para impor aos trabalhadores gaúchos os baixos salários e as condições tão adversas que os europeus recusavam. Estes atravessadores ditavam as especificações técnicas do produto e toda a produção era voltada para sua demanda.

A partir de 1999, as empresas que produzem para o mercado interno passam a ter um peso maior em virtude da falência da grande maioria das exportadoras e da reorientação de outras. Hoje, a situação é de equivalência entre a produção voltada para o exterior e para o mercado interno.

São dignos de nota os contrastes — perceptíveis a olho nu para quem vai à região — entre a situação de municípios cujas indústrias produzem para o mercado brasileiro e a dos exportadores. Para citar um exemplo, Igrejinha, que tem 90% de sua produção dirigida ao mercado interno, conserva traços típicos de cidade sulina de colonização alemã, com desemprego relativamente baixo e condições de vida ainda aceitáveis; Sapiranga, que produz principalmente para o exterior, apresenta um panorama sócio-econômico bem pior.

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