A Educação não é mercadoria? A relação entre capitalismo, trabalho e educação
Banco de dados AND
A educação capitalista é um instrumento de controle ideológico. Cena do filme ‘Pink Floyd – The Wall’ (1982)
Nota da redação: Primeira parte de uma série de artigos que visa demonstrar o caráter mercantil da educação sob o regime capitalista, o crescente processo de sua “mercantilização” (sua entrega ao capital privado) e, especificamente, o significado do “Programa Future-se” nesse processo.
Os processos educacionais e os processos de reprodução da vida material de uma sociedade são intrinsecamente conectados. Uma análise precisa da história das instituições educacionais brasileiras não deve ser pensada descolada das relações de produção que aqui se estabeleceram e das particularidades do desenvolvimento do capitalismo em nosso país, bem como sua subserviência histórica ao imperialismo.
Dito isso, pretende-se apresentar, nesse primeiro momento, um panorama geral da relação entre a educação e a ordem estabelecida, sentando bases para, depois, destacar que o “Programa Future-se” é produto de um movimento estrutural da reprodução do capital, fruto da lógica alienante dessa reprodução. Antes de olhar para a estrutura do edifício, entretanto, é preciso começar pela aparência da fachada. Inevitável, a pergunta se coloca: que é a educação?
Educação como processo de (de)formação
Qualquer tentativa de compreensão do complexo objeto da educação que se realiza no modo de produção capitalista deve estar ancorada na categoria trabalho. Por isso, brevemente, tentaremos elucidá-la: o trabalho é a atividade fundamental do ser social, sem ela não se pode pensar a humanidade. É através dele que o ser humano se objetiva no mundo. Pensar, agir e transformar a natureza são traços constitutivos do ser social a que chamamos aqui de trabalho teleológico – isto é, a atividade humana orientada para a transformação da natureza em função de sanar suas necessidades históricas, de menor ou maior grau de complexidade.
Em um sentido mais amplo, desde o ser social que elabora uma ferramenta rudimentar para caçar seu alimento, passando pelo operário que constrói um complexo submarino nuclear, embora sejam manifestações distintas, essencialmente a atividade que se realiza é a mesma: o trabalho. E a partir disso podemos deduzir que há uma relação fundamental entre trabalhar e aprender a trabalhar. Ou seja, uma relação entre trabalhar e educar para trabalhar. Então, estabelece-se uma relação dialética de interdependência entre trabalhar e saber trabalhar.
Aqui entra a educação: ensinar é ensinar a trabalhar. A partir disso, situaremos a educação na moderna sociedade de classes: burguesia versus proletariado, a contradição fundamental1 de nosso tempo. Aqueles que produzem, explorados por aqueles que possuem os meios através dos quais se produz a riqueza da humanidade. A classe que produz não desfruta integralmente dos frutos do seu trabalho, do contrário, recebe somente o necessário para reproduzir sua sobrevida. Estamos, portanto, diante da radiografia de uma sociedade onde o fruto do trabalho humano é alienado da classe que o produz.
Em função da manutenção dessa ordem é que opera uma educação pensada pelas classes dominantes para subjugar as classes exploradas. Os processos pedagógicos não são e não poderiam ser pensados para a realização máxima do desenvolvimento da humanidade, pelo contrário, uma sociedade alienada só se perpetua através de uma educação alienante. Necessariamente, essa ordem só se sustenta porque as instituições de educação cumprem sua função de constituir indivíduos alienados de sua realidade histórico-social.
Sendo assim, o processo pedagógico é encarregado de produzir, não as coisas, mas um indivíduo capaz de produzir outras mercadorias, de reproduzir sua vida social alienada. Tal indivíduo é também, nesse processo, transformado em mercadoria à medida que é forçado a vender sua força de trabalho para a reprodução do capital. Estamos diante de uma sociedade fraturada que, para a manutenção da ordem social, necessita de uma educação alienante capaz de produzir um tipo de trabalhador com uma consciência fraturada acerca de si mesmo. Uma educação deformante, portanto, para uma humanidade deformada. Assim se apresenta a educação em nosso tempo, estamos mesmo diante de um “mundo de cabeça para baixo”.
A Educação nas prateleiras do capitalismo
Marx nos legou a profunda análise de uma sociedade na qual a riqueza humana se apresenta como “uma enorme coleção de mercadorias”2. Necessariamente, o capitalismo transforma a Educação em uma mercadoria dentre outras em sua prateleira. Ademais, uma mercadoria que traz consigo uma particularidade elementar: é ela que se encarrega, como vimos, de (de)formar a força de trabalho que objetivará as demais mercadorias dessa nefasta coleção. Carregada de complexidades de ordem ideológica, pedagógica, psicológica etc., essa mercadoria se apresenta em nosso mundo materializada nas instituições de educação3.
Ocorre que o capital tem uma preocupação especial no controle dessas instituições, afinal, são elas as principais responsáveis pela formação ideológica dos indivíduos que o reproduzem. Portanto, não devemos estar surpresos com o cenário atual, no qual os grandes capitalistas manifestam um interesse cada vez mais voraz nos rumos da educação que se oferta às classes por eles exploradas.
Estamos diante de uma fotografia global na qual as classes dominantes, mais do que nunca, pretendem exercer um controle direto das instituições de educação. Por quê? O capitalismo em sua fase imperialista se encontra em uma crise aprofundada e, para se reproduzir, os governos de conciliação de classes não se apresentam mais como uma saída capaz de perpetuar a desumanizante reprodução do movimento do capital.
O trabalhador é hoje um trabalhador sem direitos. Tudo o que foi conquistado em termos de leis progressistas, estejamos cientes: o foi através de muitas lutas, muitas lágrimas e banhos de sangue das classes trabalhadoras. Para que se perpetue a reprodução do capital, mais uma vez, as conquistas minimamente humanas serão ofertadas em um sacrifício ao “deus mercado”.
Nesse sentido, na melhor das hipóteses, para que não se fale de desonestidade intelectual, aposta-se que seja mero idealismo de quem pensa que a educação poderia ser outra coisa senão mercadoria. Estamos diante de uma medusa que a tudo o que observa, fetichiza. Não poderia ser diferente com os processos educacionais, dada a sua importância aqui apresentada. Tendo exposto a base filosófica por meio da qual faremos, nas próximas edições de AND, a crítica da educação mercantilizada e especificamente ao programa “Future-se”, finaliza-se este primeiro artigo com um convite à reflexão: pode a educação superar sua forma de mercadoria?
1. Nota da Redação: Atenção para o conceito de contradição fundamental de nosso tempo, o que não significa que a contradição principal no país seja proletariado versus burguesia. Pela ausência de revolução democrática, aqui, tal posto é ocupado pela contradição massas populares versus feudalidade, especificando-se como camponeses pobres versus latifúndio.
2. MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. Pág. 113.
3. Para uma análise mais detalhada da educação na história brasileira, o autor recomenda que se consulte os artigos “Relações Impertinentes”, em AND 89 e 90.