Há mais de trinta anos, Hélio Pereira Bicudo tem seu lugar na História reservado. No início da década de 70, na condição de promotor, desbaratou o Esquadrão da Morte (EM) de São Paulo, organização dedicada ao extermínio de pobres e à exploração de atividades ilícitas. Atuando praticamente sozinho, contra todo tipo de pressões e ameaças, Bicudo expôs as vísceras do grupo e levou à cadeia alguns de seus membros, entre eles o delegado Sérgio Paranhos Fleury, chefe do DOPS e um dos homens mais poderosos da polícia paulista.
Nos anos seguintes, já aposentado, Bicudo continuou sua luta em prol dos direitos humanos. Foi deputado federal por três mandatos e vice-prefeito de São Paulo. Posteriormente rompeu com o PT e afastou-se da política eleitoral. Aos 83 anos, preside a Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos (FIDDH). Nos últimos anos, tem sido uma das principais vozes contra a política de matança promovida por Alckmin e Saulo de Castro.
Bicudo recebeu a reportagem de AND em duas ocasiões, já na primeira delas, antes dos acontecimentos da metade de maio, falou dos pontos em comum entre as práticas do EM e as da administração Alckmin, expostos em casos como o da Castelinho e o dos moradores de rua assassinados na região central em 2004 (página anterior).
Ele vê no episódio da nomeação do delegado Aparecido Calandra — torturador de presos políticos nos anos 70, para a Divisão de Inteligência da Polícia Civil, em 2003 — um ponto de contato entre as duas épocas. Considera, porém, que mais importante do que a identidade de figuras é a identidade de métodos e ideologia entre a atual administração e o EM no regime militar. Com uma agravante: o que antes era obra de um setor da polícia em aliança com alguns empresários é hoje uma política conduzida pelo governo com o endosso do Tribunal de Justiça. Para Bicudo, o Esquadrão da Morte está institucionalizado.
Esta impressão foi confirmada quando do segundo encontro com AND, na última semana de maio. Bicudo denuncia um acerto entre a administração estadual e o PCC a partir do episódio da Castelinho. Em troca da diminuição das rebeliões nos presídios, o Estado orienta a polícia a fazer vista grossa às atividades ilícitas da organização dentro e fora deles.
O ex-deputado não considera que haja, no entanto, um acordo entre o Estado e o PCC, mas o simples uso da facção por setores do aparato jurídico-policial. Conhecedor da realidade dos estabelecimentos prisionais de São Paulo, ele afirma categoricamente que o PCC não tem condições de impor ao Estado uma troca mútua de concessões e vantagens, face à disparidade de forças. O que há é uma “acomodação dentro da perversidade do sistema penitenciário”: o Estado oferece aos presos algumas migalhas, que vão da vista grossa à entrada de um quilo de banha na cela para que eles reprocessem a comida intragável oferecida na cadeia até a permissão do uso de telefones celulares; os presos, por sua vez, se comprometem a manter a ordem. Permanecem, contudo, à completa mercê dos agentes estatais, que têm sobre eles poder de vida e morte.
Bicudo considera, assim, que não faz sentido tratar o PCC como “poder paralelo”, como faz usualmente o monopólio da imprensa. Para ele, o poder paralelo que existe em São Paulo e desafia a legalidade é outro: a Polícia Militar. No último dia 31, ele reuniu-se em Brasília com o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, para pedir que a Polícia Federal intervenha na investigação do que se passou em São Paulo. É o recurso legal usado para tentar impedir que mais uma vez a PM acoberte seus próprios crimes.
Aproveitou para cobrar a adoção das medidas indicadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) quanto à Febem do Tatuapé, cujas condições valeram ao Brasil a primeira condenação formal pelo órgão. Bicudo mostra-se, porém, descrente quanto ao interesse do Executivo e do Congresso por estas questões. Na sua avaliação, o governo cedeu ao discurso fácil da repressão.
— O ministro me disse que estava construindo quatro presídios de segurança máxima — conta. — Eu lhe perguntei: para quê?