No dia 27 de outubro, a justiça argentina condenou 18 militares por crimes contra a humanidade cometidos no período do regime militar (1976-1983). Treze desses militares receberam a pena de prisão perpétua. Entre eles está o ex-capitão de fragata Alfredo Astiz, apelidado de “Anjo da Morte”, que servia na Escola de Mecânica da Armada (ESMA) e é um dos criminosos mais odiados pelo povo argentino. O veredito foi transmitido ao vivo para todo o país.
O judiciário argentino já condenou 222 militares por crimes contra a humanidade e cerca de 800 estão sendo processados desde que foi revogada a “Lei do Ponto Final”, criada pelo governo Raul Alfonsín em 1986, e também depois da derrubada dos decretos de anistia sancionados por Carlos Menem em 1989-90.
Também em 27 de outubro o congresso uruguaio aprovou lei que considera delito de lesa-humanidade os crimes ocorridos no regime militar (1973-85), que passam a ser imprescritíveis. Mesmo com a lei da anistia vigorando no país, a justiça uruguaia já havia julgado e condenado 16 criminosos do regime militar, inclusive dois ex-presidentes, Gregorio Alvarez e Juan Maria Bordaberry, que estão presos.
Já no Brasil, os crimes hediondos do regime militar fascista seguem impunes e mesmo a denúncia de um torturador por várias de suas vítimas tem sequer a atenção do judiciário. Um tíbio projeto de lei, da autoria do executivo, que cria a Comissão da Verdade, foi aprovado primeiro na Câmara de Deputados (21 de setembro) e depois no Senado (26 de outubro), cuja finalidade é a de, em apenas dois anos, “examinar as violações aos direitos humanos praticadas no período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. A comissão formada por sete membros, inclusive militares, não terá poderes para punir nem responsabilizar ninguém.
A criação da Comissão da Verdade era um dos pontos do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), lançado no início de 2010 e que causou muita celeuma, principalmente entre os militares, que “denunciavam” um certo caráter “revanchista” na criação da Comissão. Na ocasião, Luiz Inácio selou um novo pacto com os setores mais reacionários da sociedade brasileira, visando acomodar as coisas para a eleição de Dilma e pavimentar o caminho para suas pretensões eleitorais mais adiante.
A verdade mesmo é que a criação dessa Comissão da Verdade têm três objetivos: 1) encenar um acerto de contas com o passado através de um arremedo de pesquisa, para tentar acomodar a grande insatisfação carregada no peito por milhares de vítimas e familiares de sequestrados, torturados, mortos e desaparecidos por agentes a serviço do velho Estado brasileiro no período do regime militar-fascista; 2) dar satisfação à chamada “comunidade internacional”, cujos tribunais, por uma questão de coerência mínima que justifica sua existência, não podem aceitar a simples virada de página sobre a prática sistemática de atos de lesa-humanidade pelo Estado; e 3) promover uma “reconciliação nacional” oficial por decreto.
Mas é principalmente voltada a dar satisfação aos reclamos de instituições internacionais, cujos pronunciamentos a respeito, como procedeu a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que ao julgar a denúncia sobre o caso da Guerrilha do Araguaia, decretou serem “inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como tortura, as execuções sumárias, extrajudiciárias ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados”.
Entretanto, desde o início, os idealizadores de dita comissão trabalharam em estreita colaboração com os militares, coordenados por Nelson Jobim e tendo no papel de leva e traz o traidor e renegado José Genoíno. Todos trabalhando com a certeza de eternizar a impunidade dos militares, mas prestando a mínima satisfação aos referidos tribunais internacionais.
E por falar em Araguaia, em setembro os restos mortais de um homem com marca de tiros na cabeça foi encontrado, apesar de toda má vontade, pelo grupo que faz as buscas na região. As características da ossada são compatíveis com um dos guerrilheiros e material genético foi enviado para análise. Enquanto os familiares dos guerrilheiros do Araguaia não renunciam da busca de seus corpos, a camarilha de traidores que tomou de assalto o partido que dirigiu a guerrilha, servindo-se de sua sigla para sob ela conformar um partido revisionista apodrecido desde a medula, segue se esforçando para evitar que a verdade venha à tona.
No mesmo dia da aprovação da criação da Comissão da Verdade, o senado aprovou a chamada “Lei de Acesso à Informação”, de autoria do executivo e enviada ao congresso em 2009, que limita o prazo máximo de sigilo para os documentos ultra-secretos em 50 anos. Trata-se também de outro arranjo entre o oportunismo de PT, PCdoB e congêneres para impedir o acesso às informações sobre a repressão no regime militar, uma vez que esses arquivos dificilmente serão encontrados, sendo que grande parte deles provavelmente já tenha sido destruída.
É preciso destacar que esses acontecimentos na Argentina e no Uruguai, à diferença do Brasil, estão determinados pelo fato de que, nos dois países vizinhos, o grande e irrenunciável clamor pela punição aos genocidas têm obrigado seus respectivos judiciários a acatar as denúncias e punir, ainda que parcialmente. Já no Brasil, desde a lei da anistia no início da década de 1980, a ênfase que se deu é na “impossibilidade” de punição para os criminosos de guerra, assassinos e torturadores do regime militar.
Resta dizer que esses bandidos seguem ativos, circulando por todas as esferas do Estado ou acobertados em outras organizações. Consequência de tanta impunidade é a continuidade de todo aquele aparato e seus objetivos, tal como revelou as denúncias da revista Carta Capital em sua edição de 16 de outubro. Embora tenha passado tantos anos desses tenebrosos acontecimentos, muitos dos responsáveis por suas execuções seguem vivos, mantidos nos serviços de informação intactos e modernizados, determinando políticas na área de defesa, fazendo declarações, assinando colunas na imprensa monopolizada, etc.
Aqui, o máximo que se chegará com essa Comissão da Verdade, se materializados seus propósitos, é muito menos a verdade e muito mais a uma “reconciliação nacional” oficial por decreto, como querem seus idealizadores, que não se cansam de repetir que o Brasil deve “virar a página” da história. Ledo engano, nenhuma reconciliação nacional é possível sob regimes de exploração e opressão, mesmo quando conte com a ajuda de uma “esquerda” de traidores e renegados ou presididos por delatores de alta patente.
O fato incontornável é que no atual nível de mobilização pela abertura dos arquivos militares e punição dos torturadores e demais criminosos do regime militar é impossível obrigar o Estado a fazer qualquer coisa nesse sentido.
É preciso levantar um poderoso movimento popular pela identificação e punição exemplar desses facínoras que infelicitaram a nação por mais de 20 anos.