No editorial anterior (Clamor e justiça irrevogáveis), AND afirmava: “o que se faz necessário e dá indícios de que começa a se erguer é um movimento massivo de todos os verdadeiros democratas e pessoas de bem (não só sobreviventes, familiares e suas associações) que julgam importante não só conhecer a verdade sobre os anos do regime militar, mas sim, e principalmente, a punição pelos hediondos crimes cometidos contra os comunistas, revolucionários, democratas e progressistas”.
Essas palavras estavam certas, porque março foi definitivamente um mês decisivo para que essa mobilização crescesse.
A começar com o dia 8 de março, quando o Movimento Feminino Popular (MFP) marcou as celebrações do Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras, levantando de forma precisa a justa consigna de “Nem perdão, nem esquecimento, nem reconciliação: punição para os criminosos do regime militar, civis e militares, mandantes e executores de torturas, assassinatos e desaparecimentos forçados”.
Contrastando com outros movimentos que dizem defender as mulheres em agremiações oportunistas, o MFP empunhou a bandeira que tantas mulheres: avós, mães, irmãs, viúvas e filhas, anos a fio, têm mantido erguida, apesar de tantos atropelos, intimidações, ameaças, perseguições, dor e lágrimas. E foi com a manifestação histórica nas ruas do centro do Rio, ato que culminou às portas do Clube Militar, paradeiro este justificado pelo movimento por ser o valhacouto donde se faz propelir mais a defesa descarada de tão ignóbeis crimes. Ali, a manifestação atirou tinta vermelha e com a mesma deixou gravado seu clamor de justiça e de resistência.
Essa demonstração vinda de camponesas, operárias e estudantes, mulheres maduras e jovens, sem dúvida impressionou pela ousadia, visto que até os leões de chácara do Clube Militar, surpresos e manchados de tinta, refugiaram-se no interior daquele sinistro sítio.
Em 26 de março, o Levante Popular da Juventude, com o apoio de outros movimentos, realizou atos em casas ou locais de trabalho de sete torturadores em sete capitais brasileiras. A repercussão foi enorme e o monopólio dos meios de comunicação foi obrigado a dar destaque aos “escrachos”, como foram chamados em referência às ações de mesmo nome realizadas pelos jovens argentinos.
Já antes disso, um movimento também da juventude, chamado Aparecidos Políticos, vinha realizando atos públicos em frente a quartéis das forças armadas, mudando simbolicamente o nome de ruas e praças que homenageiam inimigos do povo.
No dia 29, em resposta a uma provocação dos gorilas de pijama, que tencionavam fazer uma comemoração do golpe de 64 no Clube Militar, uma manifestação se dirigiu à porta do edifício, queimou retratos de torturadores e jogou tinta vermelha na calçada. A PM reprimiu com gás de pimenta, choques elétricos e bombas lacrimogêneas e prendeu um manifestante. Apesar das bandeiras de um sem número de siglas oportunistas eleitoreiras, eram jovens os que as portavam, e em ato de rebeldia à posição de suas organizações, ali manifestavam unindo-se em uníssono aos movimentos realmente comprometidos com a causa da punição aos criminosos do regime militar e que davam o tom da manifestação.
Paralelo a essa demonstração de que o povo já não aguenta mais tanta tergiversação e chicanas, uma força tarefa do Ministério Público Federal foi criada para encaminhar processos contra notórios criminosos do regime militar. Como bons “defensores da lei”, julgaram encontrar uma brecha na Lei da Anistia e defenderam a tese de que o desaparecimento forçado de militantes contra o regime militar é um crime continuado e, portanto, já fora da abrangência da lei, que beneficia os acusados de crimes cometidos antes de 1979.
A denúncia apresentada contra o Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, major do exército à época da Guerrilha do Araguaia, por sequestro de cinco guerrilheiros, foi negada pelo juiz federal, que alegou que os promotores “ignoraram os esforços de reconciliação nacional” feitos à época da Anistia. Novos processos serão encaminhados e o Ministério Público de São Paulo também se prepara para processar criminalmente torturadores notórios.
A limitação desse tipo de ação consiste exatamente em que, procurando uma brecha na Lei da Anistia, há o reconhecimento dela como legítima, quando fazer com que ela seja revogada é exatamente o caminho exigido por todos que se pretendem defensores dos direitos do povo e da punição para os mandantes e executores, civis e militares, dos crimes cometidos contra os combatentes revolucionários e democratas no período do regime militar. Segundo o “direito internacional” a tortura também não é crime imprescritível?
Ora, falar em reconciliação nacional é exatamente o argumento urdido pelos últimos gerentes militares e os traidores e renegados que acordaram a Lei da Anistia, que não previa a verdade e muito menos julgamento e punição dos crimes de Estado. E os renegados que hoje estão à cabeça do gerenciamento de turno do Estado, ex-guerrilheiros arrependidos que servem de leva-e-traz entre os generais de serviço e os civis e o ministério da defesa, que nada mais é que intermediário das chantagens do alto comando militar, que a todo momento “lembra” PT, PCdoB, PSB e toda camarilha de oportunistas encastelados no Planalto dos compromissos assumidos por eles para serem eleitos.
Mas com o povo funciona diferente. Não há chantagem que o faça desviar o rumo, porque não está preso a compromisso nenhum com esses crápulas. Enquanto os gorilas de pijama – como porta-vozes dos da ativa – lançam manifestos com milhares de assinaturas contra a comissão governamental da meia-verdade sem justiça e acenam com a remota ameaça de um novo golpe, os movimentos populares, democratas e revolucionários empunham com cada vez mais firmeza a bandeira da apuração e punição dos criminosos do regime militar.
E em breve serão milhões os que defenderão essa consigna, obrigando o velho Estado a reconhecer seus crimes hediondos e a punir seus comissionados mandantes e executores.
Não nos deixemos enganar por manobras diversionistas da parte dos que ora gerenciam o velho Estado; não nos deixemos iludir com grupos igualmente oportunistas eleitoreiros que queiram cavalgar os movimentos e traficar com essa justa demanda do povo brasileiro. É preciso não descansar enquanto o último torturador e assassino não for punido.