Neste artigo, procuramos evidenciar o esenvolvimento orgânico (para além do mero e popular preparo físico) das famílias de trabalhadores, rigorosamente vinculado a uma questão da qual não se pode fugir e sobre a qual não se deve tergiversar: a nutrição (que engloba aspectos mais largos que a simples alimentação) como necessidade e direito de todos os homens e mulheres numa sociedade justa.
Um programa de nutrição, somado a proposta de saúde coletiva (impraticável no capitalismo, salvo apenas na mente mirabolante de algum "reformador" da sociedade), este destinado à resolução das doenças mentais e orgânicas que assaltam o povo trabalhador deste país e são o resultado desumano das relações sociais de exploração em vigor, invoca o aumento da produção, da distribuição e do consumo. Contudo, a burguesia, além de arrancar as mínimas condições de vida digna das massas (vale lembrar que o valor do salário mínimo em 02/07/02 deveria ser, segundo o DIEESE, de R$ 1154,00), procura caracterizar como causa da irradiação das doenças no seio das massas laboriosas, a baixa escolaridade "natural" (portanto, sua ignorância), a promiscuidade, a falta de higiene e o alcoolismo como opção de vida (apontadas como inerentes aos pobres), etc.
A miséria alimentar permanece disfarçada sob a cultura gastronômica apresentada nas telas dos mais diversos canais de televisão: tradicionais banquetes promovidos pelos "coronéis" aos seus ilustres visitantes, "mesa farta" do latifundiário. Enquanto que o conjunto dos trabalhadores e operários permanece "carente de frutas, vegetais, verduras, carne, cereais, leite, legumes, pescados, ovos", enfim, todos componentes cuja falta não pode ser toleradas nas áreas sob a direção de camponeses obstinados à construção doutra sociedade.
Em sentido amplo, tal perspectiva significa a apropriação e mudança do caráter dos meios de produção, libertação e desenvolvimento das forças produtivas sob a égide de um novo poder: o poder do proletariado e dos camponeses. Tomado o poder, de imediato, é possível dar combate à falsa crise da falta de alimentos com o concurso do redirecionamento do plantio de milho, arroz, feijão, mandioca, etc., agora para consumo interno. Apenas uma sociedade livre, dispondo de técnicas altamente sofisticadas, pode demonstrar a capacidade de empregar a policultura sistemática, disciplinar o uso da terra em função das modificações cíclicas da condição de vida dos trabalhadores, ação restauradora do solo, luta contra a servidão em todos os seus disfarces – política, religiosa, ecológica, divertimento…
Nesta perspectiva, sob a nossa ótica, o lazer, como exercício do tempo livre e complemento do tempo de trabalho, planejado e implementado pelos próprios operários e trabalhadores eles, lendo e meditando sob aspectos diferenciados da cultura filosófica, ouvindo músicas, participando de uma festa ou fanfarra, tomando parte num jogo de poucas formalidades e regras modificáveis a qualquer momento, negação das cópias de práticas puramente competitivas, ele ocorre sistemática e quotidianamente "disciplinando" excessos ou reminiscências ideológicas da velha sociedade que permanecem e incomodam a indispensável realização da igualdade e da liberdade, necessárias aos seres humano de todas as idades. O jovem tanto deve aprender a dançar como a abrir trincheiras "para que saiba se comportar em todos os lugares" (Kalinin).
Nesta perspectiva arrojada, posta em prática, aos jovens cabe "aprender além do uso adequado dos instrumentos de produção, o galgar barrancos e árvores, o suavizar quedas, conhecer os animais, respeitá-los, desenvolver técnicas de laço, abrigo, salvamento, primeiros socorros, localizar água potável e administrar sua armazenagem, cavalgar e usar cavalos e bois como tração (usar apenas animais dóceis), repudiar o uso das drogas, etc.".
O desenvolvimento orgânico, convenientemente orientado é indispensável ao desenvolvimento intelectual do homem e da mulher de novo tipo. Esta é, também, a perspectiva da escola camponesa. Perseguindo os propósitos da nova sociedade, teremos "outra" educação física fundamentada em princípios científicos dialéticos, possibilitando o desenvolvimento racional, metódico e harmônico da produção de coisas úteis, com o intenso uso das faculdades físicas e intelectuais do grosso das populações. Em suma, um programa escolar diferenciado de educação física (desporto e defesa) ressalta o espírito gregário estribado nas "experiências de brigadas, fundadas na distribuição de responsabilidades por vontade única, na coragem, na autoconfiança e na camaradagem, na decisão, na estabilidade emocional, na tenacidade e na lealdade, têm como princípio servir ao povo de todo o coração, defendê-lo acima de tudo", é posto contra a competição, o individualismo e/ou "espírito de manada". Os valores do esporte de alto rendimento, enquanto manifestação burguesa, individualista, exclusivista, interesseiro etc. são abominados.
O outro lado da realidade
Se por um lado, a ginástica ou os exercícios militares, jogos para a guerra, enfim, a educação física pode ser usada como instrumental compensatório das deformações posturais, oriundas de um processo produtivo a ignorar a organização corporal dos indivíduos, mormente em crianças urbanas à medida em que no meio rural mantidas as circunstâncias atuais, tal pretensão é inexeqüível, por outro lado, essa mesma ginástica, incidindo sobre um corpo famélico, necessitando crescer e desenvolver-se pode, por exemplo, produzir um desvio do fluxo energético determinante, em última instância, do fechamento precoce das áreas de crescimento primárias e secundárias dos ossos longos.
A ausência deste conhecimento tem feito com que a relação nutrição x prática desportiva continue recebendo quase nenhuma atenção por parte do professorado, principalmente no tocante a correlação múltipla entre atividade física, crescimento / desenvolvimento e ingesta calórico-protéico-mineral. Em conseqüência, ignora-se que1) as "alterações mínimas do estado de saúde e nutrição (…) têm repercussão certa no crescimento infantil"e 2 que o retardo do crescimento, consubstanciado em diversos estudos empíricos, é um importante fator de risco à mortalidade infantil.
De maneira que, é inquestionável a relação condição econômica x ingesta protéico-calórico-mineral, sendo a desnutrição protéico-calórica — a DPC — uma característica de crianças filhas de famílias com até um salário mínimo por renda mensal ou os filhos e filhas dos 50% mais pobres da população que participam com apenas 10,94% da Renda Nacional. Não é inteligente minimizar o impacto de uma nutrição precária, por exemplo, em proteínas sobre o estado de "morbimortalidade" da população infantil brasileira, mesmo porque, existe uma relação óbvia e cientificamente esclarecida entre o desempenho econômico de uma sociedade e as chamadas doenças da pobreza, como as diversas infecções e a nutrição.
Há que se considerar o papel nefasto que a prática sistemática da educação física e dos desportos exerce sobre o organismo juvenil imaturo, principalmente quanto ao crescimento e ao sistema auto-imune, de crianças portadoras das "chamadas doenças da pobreza". Paradoxalmente, a educação física não produz nenhum efeito ao ser praticada nas escolas públicas, durante 100 minutos/semana (duas aulas de 50 minutos cada), quando crianças correndo sem sentido, "brincando" sem razão, o fazem no lapso de tempo nunca superior a 12 minutos.
A contradição oculta
A ausência da leitura sobre a produção teórica que busca resposta para o que é ou simplesmente a definição de fome, faz com que a intelligentsia da educação física, e os seus acólitos, não consiga compreender porque algumas pessoas afetadas pela fome não se sentem famintas porque se adaptam a uma ingestão alimentar mais baixa, reduzindo a atividade física. Em outros casos — como refere Valente — , uma falta de nutrientes específicos causa uma fome que não é sentida pelo indivíduo (desnutrição ou fome oculta).
Vamos supor que uma criança com uma ingesta calórica de 2400 Cal/dia seja submetida a uma hora de atividade aeróbica/força/potência perdendo em sua execução 1 litro de suor ou o equivalente a uma demanda via suor de mais ou menos 580 Cal. Como é sabido o suor contém amino-ácidos, ácido lático, vitaminas, cloreto de sódio, cálcio, ferro, potássio e outras substâncias, logo é possível constatar a grande espoliação que o organismo sofre.
Essa criança, entre 12 e 15 anos, precisa de uma ingesta calórica diária a oscilar entre 2800 e 3040 Cal para ter o crescimento/desenvolvimento (diferenciação) compatível com os parâmetros de "normalidade" arbitrados pela FAO/OMS. Neste sentido, deveria repor diariamente a perda de 580 Cal em sua dieta, isto porque em não o fazendo estará comprometendo todo o metabolismo envolvido e indispensável ao seu crescimento. Agravante, se ela percerber apenas 50% da demanda total, utilizará a proteína muscular como fonte geradora de energia para a contração dos músculos estriados(2), vale dizer, os protídios serão uma espécie de coadjuvantes, juntos com os glicídios e os lipídios, do processo de produção de transformação de energia química em energia mecânica e calorífica.
É possível perceber e deduzir sobre o papel espoliador que a educação física pode desenvolver sobre os organismos já espoliados pelas atividades da vida diária. Essa espoliação dar-se-ia devido ao desvio da proteína para produzir energia de manutenção indo de encontro a formação do sistema auto-imune(imunoglobulinas) e do crescimento. Na verdade, o retardo do crescimento e a diminuição da imunidade (aumento do susceptibilidade às infecções) são dois dos mecanismos de adaptação à carência protéica. Para Zisman, por exemplo, "o fator nutricional que está empurrando o homem do nordeste para o nanismo não será atenuando enquanto (…) a população sofrer de carência de calorias alimentares e possuir deficiência protéica"3.
Educação física e ginástica compensatórias
Diante do silêncio incompreensível sobre a inadequação da educação física para as crianças famintas ou famélicas, partes irretorquíveis desse quadro de morbidade, considero imprescindível mais uma vez dedicar uma certa atenção para o seguinte: Na concepção de mundo, de sociedade e de homem, concepção dominante, o papel que cumpre a educação física para crianças e adolescentes, temos que a cultura física racional estimula o crescimento, o alongamento dos ossos e o aumento da musculatura (hipertrofia) em conseqüência de uma maior síntese protéica, mormente, se às crianças são dados os valores protéicos por quilo de peso corporal por idade.
Em se tratando de crianças que praticam qualquer tipo de cultura física, tal prática deve ser acompanhada do aumento da ingesta de nutrientes e de calorias. Neste sentido, e de fundamental importância que exames médicos periódicos (anamnese, clínico-laboratoriais, ortopédico e funcional) e de máxima relevância na detecção de "problemas" que, em não sendo tratados, poderão tornar-se verdadeiros obstáculos de difícil transposição à prática da educação física.
As proteínas, por exemplo, deficientes em quantidade e qualidade na ingesta da maioria dos brasileiros, são imprescindíveis à formação do material contrátil do músculo, de substâncias energéticas para o trabalho (com pouca participação como geradora de energia) e ao desenvolvimento a contento do sistema imunológico dos infantes. De maneira que, às crianças e aos jovens desnutridos não devem fazer exercício físico intenso, e sim muito moderado, de acordo com sua suplência nutricional e/ou com seu grau de desnutrição.
Curiosamente, na educação física esta afirmação não tem sido considerada. Via de regra o que temos visto é a prática da educação física e dos desportos sendo predicada para todos os brasileiros, com total ausência de atenção à questão da nutrição e, obviamente, da suplência protéico-mineral. Tal postura é profundamente incorreta e imperdoável. É elementar, pois a desconsideração para com o aporte protéico demonstra falta de compreensão sobre a função das proteínas na fisiologia humana, especificamente, no crescimento, no sistema imunológico e na reparação dos tecidos.
Por outro lado, esta deficiência, pelo próprio mecanismo de adaptação biológica, induz o desvio das proteínas de certas partes do organismo para suprir as partes mais solicitadas, no caso dos músculos. Quer dizer então que a baixa ingestão diária de proteínas trás conseqüências danosas para as crianças?
Lógico! A deficiência de qualquer uma das substâncias que participam dos processos de desenvolvimento e de crescimento produz atraso ou alterações morfológicas e fisiológicas.4
Diante disso, não há o menor cabimento em predicar a educação física ou a ginástica como forma compensatória dos prejuízos físicos produzidos pelo processo produtivo, mesmo porque o patronato não anda nada preocupado com a saúde coletiva do trabalhador. Não é verdade que a educação física ou a ginástica assegure proteção a ninguém da influência perniciosa das várias indústrias capitalistas.
Não há terceiro caminho
Não é racional atribuir a educação física uma força que ela realmente não possui, mesmo porque, enquanto a sede de ouro, a gula e avareza, garantir a uma pequena minoria apoderar-se do homem e da mulher trabalhadora, dispondo da sua força de trabalho, desde a infância, constrangendo seus corpos ao desalinho, corrompendo e prostituindo suas sexualidades, viciando o ar que eles respiram, apagando de suas mentes a crença na juventude e impondo-lhes a descrença no futuro, nada há a fazer com e por intermédio da educação física ou a da ginástica.
A não ser que o professor paute-se ou escolha e siga um dos seguintes caminhos: ou trabalha a educação física para favorecer o contínuo da opressão pela integração dos trabalhadores (crianças e jovens) à mecânica da sociedade burguesa, ajustando-os para aceitarem sua condição de excluídos e com eles se aliena, alienando-os, ou, então, procura organizar com eles o levante dos trabalhadores para a superação definitiva da opressão e, com isto, se desaliena, desalienando-os. Terceiro caminho não existe! Só nos resta o segundo caminho. Nele, para além do futebol e dos jogos manjados que não nos levam a lugar algum além de um absurdo "podium", os exercícios militares — rapel, comando crown, falsa "baiana", fuga e evasão, orientação e navegação noturna, armadilhagem (altamente inventiva— criativa), golpe de mão, etc. — e as artes orientais de combate: judô, karatê, kendô, jiu-jitsu dentre outras — devem ser elencadas ao irrisório conteúdo da educação física até agora utilizado para submeter e alienar. Mas não podemos esquecer, nem por um minuto sequer, que "a fome e a miséria não são fatos disfuncionais da formação social e econômica capitalista, mas condição fundamental à sua reprodução.5 Por isto mesmo, continuamos afirmando, cada vez com mais intransigência, que nos discursos científicos, políticos e filosóficos desconsidera-se, sem o menor constrangimento, o modus operandi do capitalismo, vale dizer, como ele se organiza -se alimenta, funciona e opera.
Exatamente por isto não conseguem explicar porque a maioria da sociedade não consegue acessar a nutrição ou a dieta adequada, sem a qual as práticas desportivas da educação física tornam-se deletérias. E mais ainda, ignoram (1) o grau de desenvolvimento das forças produtivas, (2) o modo como se estabelece a apropriação dos meios e instrumentos de produção, a distribuição e o consumo do produto — material e "espiritual"— , (3) a contradição principal entre o trabalho e o capital, e (4) o reconhecimento não apenas da luta de classes, onde uma classe explora a outra mas, e fundamentalmente, de nações exploradas por outras.
Perdidos no canto embriagador dos políticos aventureiros e dos intelectuais da educação física, com raras exceções, os operários e trabalhadores assalariados não conseguem ver a realidade nua e crua do imperialismo a exercer "a exploração mais descarada e a opressão mais desumana de milhões de habitantes das imensas colônias e países dependentes".6
Finalmente, mantida a formação social e econômica capitalista, isto é, a burguesia no mando dos meios e instrumentos de produção, as práticas desportivas da educação física continuarão como meio de educação para submissão e para a alienação generalizada da juventude.
*Máuri de Carvalho: licenciado em Educação Física. Professor assistente IV da Universidade Feseral do Espírito Santo — UFES. Doutorando em Educação na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas — UNICAMP. 1 Id. Ibid., 1978, p. 93 2 CHAVES, ibid. 3 ZISMAN, M. Nordeste Pigmeu/ uma geração ameaçada. Recife, CEDIP, 1987. p. 218 4 CHAVES, 1978, p. 185-186 5 BOSI, M. L. M. A Face Oculta da Nutrição. Rio de Janeiro, Espaço Tempo/UFRJ, 1988. p.32 6 STALIN, J. Fundamentos del Leninismo. in Obras Escogidas. Tirana, 8 Nentori,1981. p. 18