Em 15 de dezembro, duros enfrentamentos entre a polícia e trabalhadores que trabalham nas zonas francas resultaram numa morte e cinco feridos, segundo informações oficiais. No entanto, até a noite passada, os dirigentes falavam de dois mortos (o segundo, até o fechamento desta edição, não foi confirmado) e 30 feridos.
As zonas francas agrupam diferentes setores como os comerciantes importadores, os usuários (intermediários com permissão para importar) e uma maioria de operários (mecânicos, chapistas, estofadores e outros especializados na transformação de veículos).
Os problemas entre o governo e os trabalhadores se iniciaram com a emissão do Decreto Supremo 29.836 que limita a importação de automóveis de até cinco anos de fabricação (desde 2004). Esta norma foi desprezada pelos dirigentes das zonas francas porque, segundo dizem, isso "significa na realidade fechar a zona franca" e eliminar milhares de fontes de emprego.
O governo argumenta que deve regular o ingresso de automotores para evitar um consumo maior de diesel (muito escasso no país) e cuidar do meio ambiente. Por outro lado, os trabalhadores vêem nesta medida a perda de suas fontes de trabalho e o sustento de suas famílias. Além do mais — mesmo com a demagogia reformista do governo — o tema emprego é realmente crítico. Qualquer cidadão sabe que se perder o emprego é muito provável que não consiga outro e talvez tenha que se dedicar ao comércio informal.
Segundo o dirigente dos trabalhadores da zona franca de Oruro, Jaime Ruedas, os trabalhadores das zonas francas são mais de 15 mil. Por isso o bloqueio de rodovias na segunda-feira (15 de dezembro), impulsionado pelos comerciantes e trabalhadores das zonas francas de Oruro, Cochabamba e Patacamaya. O governo estava a par desta decisão, porque os trabalhadores pediam a anulação do decreto governamental.
O bloqueio começou bem cedo. Segundo os dirigentes, pelos menos 10 mil trabalhadores participaram nas proximidades de Pisiga, Tambo Quemado e Patacamaya. A polícia informou que havia cerca de 1.500 em Patacamaya.
Aproximadamente às 13h10 min se iniciou a intervenção policial. As imagens televisivas mostram uma violência particular dos militares no enfrentamento (com gás lacrimogêneo e armas de baixo calibre) e a resposta dos manifestantes foi com rojões e pedras. A consequência da repressão foi a morte do trabalhador Nelson Manuel Aduviri Mamani, de 27 anos.
Até as cinco da tarde, o dirigente Ruedas denunciou que "o panorama é totalmente crítico, há três mortos. Eu não sei de que forma o governo está atuando. Lamentavelmente há mais de uma centena de feridos". Segundo senúncias dos dirigentes, enquanto velavam o corpo de seu companheiro, a polícia forçou uma dispersão a base de gás lacrimogêneo e levou o corpo. As imagens da televisão mostram um policial batendo numa trabalhadora até ela cair no chão.
Noutra entrevista por rádio, o representante René Pacheco denunciou a existência de dirigentes presos e uma dura repressão: "A polícia está atacando como se fosse um estado de guerra, estão atirando com armas de baixo calibre, com gás lacrimogêneo através de escudos". Ainda não se sabe exatamente a causa da morte de Aduviri, o médico do Hospital de Patacamaya afirmou que tinha um orifício de cinco centímetros de diâmetro na altura do pescoço.
A versão do governo
O governo reformista do Movimento ao socialismo (MAS) tem como política declarar ações conspirativas quando surge qualquer tipo de manifestação crítica ou questionadora. Este caso não poderia ser exceção devido ao pronunciamento do vice-ministro do Interior, Marcos Farfán, que mesmo antes já havia qualificado o protesto como mobilização política.
Numa entrevista coletiva logo após os enfrentamentos, Farfán justificou o fato ao informar que a polícia atuou para defender o direito das pessoas de ir e vir, um argumento usado pelas autoridades nos tempos "neoliberais". Durante o governo de Gonzalo Sánchez de Lozada, seu ministro Carlos Sánchez Berzaín (el "Zorro") dava ênfase especial a este discurso para deter as marchas realizadas pelos cocaleiros junto com Evo Morales.
Farfán deu um informe mais amplo à reportagem que concedeu a Rádio Patria Nueva, rádio emissora do Estado. Numa entrevista telefônica, declarou que a "mobilização foi financiada pelo gerente da zona franca de Cochabamba, Carlos Olmedo". Similar explicação usou o Comandante Departamental da Polícia, Raúl Mantilla, que declarava que os manifestantes contavam com muitos recursos pelos explosivos que traziam.
É costume no governo distorcer os fatos e introduzir uma versão conspirativa em toda manifestação que não controla corporativamente. Neste caso tenta desviar o fato de que os trabalhadores estão lutando para defender seus postos de trabalho e pretende levar a crer que é um movimento dos importadores de veículos.
Trabalhadores peruanos
Segundo a polícia, contam-se 25 pessoas feridas em instalações da polícia de El Alto e outras 11 levadas às celas policiais de La Paz. O comandante Mantilla, que recebeu uma pedrada certeira na nuca, percebeu a presença de trabalhadores de nacionalidade peruana. Registrou: "Não é possível que, sendo beneficiados com o trabalho, venham organizar uma violência dessas contra a polícia".
No entanto, fonte próxima aos trabalhadores afirmou precisamente que os operários peruanos não participaram da manifestação para evitar a perseguição por serem estrangeiros. Mesmo assim muitos desses trabalhadores foram presos em Patacamaya (onde residem e por situar ali uma zona franca) e inclusive foram arrancados a força de seus domicílios, afirma a fonte.
Na zona franca, junto à maioria de operários bolivianos, existe trabalhadores peruanos e chilenos que são contratados por possuírem capacidades técnicas qualificadas para esse trabalho. Sem exceção, todos estão submetidos a duras condições de trabalho. Entretanto, esta situação é escondida pela polícia e os governos que utilizam a estigmatização ao estrangeiro para desviar os verdadeiros motivos dos protestos populares. A polícia tem uma larga experiência em lançar este tipo de intrigas xenófobas.
Toda a idéia sobre a "conspiração" se acentua com a intenção do governo de responsabilizar os detidos por "terem organizado" os protestos e enviá-los ao Ministério Público. A criminalização das manifestações populares é outra particularidade do governo de Evo Morales, que ataca exclusivamente os setores em conflito que não são simpatizantes ou afiliados de seu partido (MAS). O governo emprega bastante propaganda para desprestigiar os dirigentes dos setores populares que não estão de acordo com suas políticas. O que contribuiu de forma eficaz para manter ao seu redor oportunistas e revisionistas.
Evo Morales somou mais uma morte em sua conta e deixou para trás a promessa que fizera de se demitir do governo caso houvesse um morto em sua gestão. Mais longe ainda se vêem as "investigações imparciais" anunciadas por seus ministros e vice-ministros, pois até o momento nenhuma morte foi esclarecida. Isto, porém, não pode esconder a responsabilidade política desse governo, que cada vez mais compete em quantidade de mortos com seus antecessores.