A Escola Popular trabalha com a concepção de que as massas trabalhadoras fazem a história e que, a partir do conhecimento de sua realidade social, passam a intervir com maior qualidade e capacidade no processo de transformação da sociedade. O currículo das escolas — o português, a matemática, a literatura e a história — devem estar ligados diretamente à luta do povo.
Apoiando as percepções de Karl Marx, conclui-se que "se as relações de produção geram uma alienação do trabalho, a forma da ‘educação’ produz uma outra alienação". O termo educação tem para os educadores das escolas populares um significado singular, uma vez que educação é muito mais que os anos que as crianças e adolescentes passam no "espaço escolar". A educação acontece permanentemente nas relações sociais e na luta pela transformação da realidade.
Anton Makarenko, pedagogo soviético, em uma de suas mais importantes obras, Poema Pedagógico, aponta que educar não é instruir e que educação é diferente de instrução pública. Essa argumentação não tira a função nem a importância da instrução pública na vida das pessoas, muito pelo contrário, toda instrução, qual ela seja, pode ser considerada progressista. A questão é a exclusividade depositada nessa mesma instrução escolar pública e as limitações de seus fins.
No dia-a-dia presenciamos a sobreposição de uma visão puramente técnica e aparentemente neutra que vincula a solução das questões educacionais exclusivamente a visões equivocadas, ou não, de especialistas e dirigentes educacionais, que deixam de lado o aspecto central que é o caráter ideológico e político da educação das massas. Isso não faz tabula rasa do que foi conquistado até agora pelo povo brasileiro. Pelo contrário, é a capilaridade da educação no país e suas limitações de avanço que geram a consciência da necessidade de uma mudança na sua concepção.
Uma escola verdadeiramente popular e democrática deve depositar atenção nos currículos e na sua aplicação prática. O ensino/aprendizagem das disciplinas deve caminhar lado a lado com os interesses das massas, dando governabilidade a suas lutas.
Tomemos como um breve exemplo o ensino e a aprendizagem da matemática, uma disciplina extremamente técnica, mas que se ministrada de forma justa e correta, representa um importante salto no desenvolvimento do conhecimento humano.
Matemática e prática social
A humanidade, na busca pelo conhecimento, deixou suas descobertas matemáticas registradas em suas principais obras. A arquitetura clássica, as pirâmides, a métrica da poesia e as técnicas militares são importantes exemplos da função da matemática na vida das massas.
Mas, na escola oficial, historicamente a disciplina é muitas vezes considerada um suplício na vida dos estudantes. Quando ministrada de forma desconectada da realidade, gera traumas e complexos, apesar dos esforços de alguns professores em tornar o ensino desta disciplina mais prazerosa. O problema encontrado por muitos professores é a forma como o currículo é introduzido na escola e a sua aplicação prática.
Fora do espaço escolar, o cotidiano dos trabalhadores faz saltar aos olhos a possibilidade de trabalhar a matemática de forma conectada à sua realidade. Exemplos práticos nos comprovam isso. Toda a vida, os camponeses não precisaram de avançados conhecimentos algébricos e geométricos para medir suas terras. E sabemos o quanto é satisfatório os resultados da produção das famílias camponesas, passando pela quantidade de sementes, o fertilizante, a colheita e a própria distribuição. Nas cidades, operários da indústria da construção são capazes de calcular a quantidade de azulejos a serem colocados em um determinado espaço sem ao menos dominar as quatro operações fundamentais. Imaginem a prática destas atividades se amparada pelo domínio da técnica e da ciência.
Essa prática social dos trabalhadores deve sempre ser levada em conta. A teoria deve servir à prática e a prática servir a teoria, em uma relação dialética. A matemática, como ciência que é, deve estar a serviço da potencialização da prática social dos homens, prestando contribuições para melhorar tanto a vida material das massas como para o desenvolvimento da humanidade.
Trabalhando a matemática
Dados do SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) apontam para as enormes dificuldades encontradas pelos estudantes brasileiros no ensino da matemática. A culpa seria dos estudantes que "acham enfadonha a matemática" ou dos professores que pelejam mas não encontram uma forma atrativa de repassar os conteúdos? Ao se deparar com a matemática na escola oficial, o aluno aos poucos se convence de que o problema da matemática é que a matemática passa a ser um problema e, em muitos casos, se convence de que são incapazes de aprender.
A matemática estudada na infância da grande maioria de operários e camponeses demonstra o mesmo dilema. João Gualberto da Silva, pedreiro e educando da Escola Popular Orocílio Martins Gonçalves (EPOMG), critica a forma como lhe era ensinada a matemática em sua cidade natal, no interior do Maranhão. Ele diz que os enunciados nunca tratavam de assuntos referentes à sua realidade rural, o que agravava o desinteresse e o levava a cabular as aulas de matemática para ficar na roça. Abandonou a escola aos 10 anos e voltou a estudar somente no ano 2000, aos 58 anos. Pedreiro de mão cheia, João encontra nas atividades matemáticas da EPOMG uma conexão com o seu dia-a-dia:
— A matemática me facilitou a resolver os meus problemas, tanto nas contas de casa, como nas tarefas do meu serviço — afirma João.
Para melhor servir aos trabalhadores, o ensino e a aprendizagem da matemática tem de se esforçar para se aproximar da vida prática dos educandos, gerando interesse e reafirmando entre eles a sua importante função. Nas escolas populares do campo, a matemática tem de estar intimamente ligada à produção da terra. Devem ser trabalhadas noções de quantidade, medidas geométricas e o desenvolvimento do raciocínio lógico face aos problemas enfrentados pelo camponês, a fim de valorizar o seu trabalho. Nas escolas da cidade, o ensino da matemática, voltada para o proletariado, também deve estar ligada às implicações da vida urbana da massa proletária urbana. Outro aspecto é a matemática estar associada à qualificação profissional dos trabalhadores, chegando ao ponto dos operários construírem suas próprias residências, inclusive por intermédio de mutirões.
Dessa forma, a matemática tem uma importância social capilar. Ela é um dos vários instrumentos a ser utilizado pelos trabalhadores para mudarem a realidade de suas vidas e de seu povo. Especificamente ela pode auxiliar os trabalhadores a não sofrerem situações como aquelas vividas pelo personagem Fabiano, no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que é passado para trás pelo seu patrão por não "saber contar". Portanto, cabe às escolas populares e democráticas do nosso país fazerem dos operários e camponeses homens e mulheres cultos e "bons de conta".
* Rômulo Radicchi é coordenador da Escola Popular Orocílio Martins Gonçalves, onde leciona matemática para operários da construção civil.