Em todas as épocas e em qualquer lugar, as idéias da classe dominante, são as idéias dominantes.
Marx
Para César Benjamin
Qualquer sujeito é feito pelo simbólico, pela força social que o cerca. O que nos torna diferentes, sem enlouquecer, é caminhar com o pensamento ultrapassando obstáculos, nos mantendo de pé. Quer dizer, ainda com a cabeça erguida e não aceitando que lhe imponham a inflexão. Lula é um presidente feito na mesma fôrma social: o da cultura, das religiões, do poder. Ele sempre sonhou fazer parte do pensamento e da ordem do poder e nunca teve a coragem de se revelar: nem para o povo que se sustentou na sua venda da “esperança”, nem para a esquerda que sempre o ajudou. Bem, Entreatos é vendido e defendido como essência do lado “sério” do cinema documental. Deseja ser objeto de respeito e da seriedade numa frágil espécie de jornalismo duvidoso, ou oportunista. Incapaz de uma postura ousada e original, apropria-se do lado mais fácil das questões políticas de uma campanha presidencial transformando tudo e todos num reality-show, disfarçado. Vê-se na verdade uma autêntica banalização de idéias comuns, onde Lula-lá vivo, é aproximado da tradição dos mitos. Sem alma própria o poder usa e é usado por múltiplos baixos interesses. Da economia à imagem tudo serve ao espetáculo de um circo antiquíssimo: o da “nossa” politicagem de galinheiro.
Não temos ainda um vampiro como Bush, mas já temos o nosso Forrest-Gump, versão tropical. Frustrando assim uma rica possibilidade de externalizar e analisar os paradoxos de uma cômica e triste campanha presidencial no Brasil, Entreatos é o testemunho do conveniente amortecimento das idéias, sem contradição alguma. Contraprodutivo e desnecessário esconde a vacuidade de um só projeto: o do poder pelo poder. O presidente (ou ainda candidato) que não é bobo, dá asas a sua tagarelice, pois sabe que está sendo cultuado e defendido. E mesmo não dizendo nada substancial para que se possa entender os trágicos oito anos de FHC, ou mesmo o Brasil.
Aliás, o país é o que menos interessa. O negócio são as viagens, as gravatas, os terninhos alinhados, o disse-me-disse dos amigos, a maquiagem e o show televisivo do carniceiro Duda Mendonça. Com tudo o candidato é a incubação de um mistério sem identidade, projeto governamental ou cor. O “filme” entra nesse barato de redescobrir a roda, circulando pela patética campanha para no fundo dar brilho e legitimidade a mexicanização de um novo-velho poder que se recusa a mudar. E que na sua opacidade interior de nada ter a dizer de original, emana conceitos risíveis de uma caligrafia cinematográfica, primária.
Ou seja, produzir um candidato à Presidência da República não é muito diferente da produção de um crente das inúmeras denominações religiosas; nem diferente da formação dos milhões de miseráveis prontos a serem exterminados, e a seguir a ordem do poder que os alimenta até o extermínio ou à cooptação, se pode ser melhor aproveitado. O simbólico é que irá definir e determinar a significação dessa criação na arena do espetáculo. Poder do ser simplesmente circense ou altamente sofisticado, variando os riscos e os lances do jogo. O importante é que todos participem; a democracia não exclui ninguém. Nem os exterminados. E o “filme” dá conta do recado servindo ao PT, como O triunfo da vontade serviu ao congresso Nacional-Socialista alemão de 1934. Podem até haver diferenças, mas… Lula é uma peça singular, fria, articulada e sem emoção profunda alguma. Evidentemente que sustentado com a substância do espetáculo. Nem o fordismo e o taylorismo produziriam peça tão acabada; porque o produzido pensa.
Seria então uma máquina inteligente? Uma fusão de Lula metalúrgico e de Lula presidente. Síntese de uma cultura democrática de acordos políticos, para que nada mude? Um operário significante e um presidente com outra significação, sem passado, sem tempo, sem história e sem memória. Um esquecimento delicado e grave. Na velha Grécia, um fora da cultura; sem a poesia e o cantar dos poetas, dos deuses e das musas. No Brasil, um perfeito protótipo da cultura; sem nada a negá-la. E o poder foi feito para ele. O “filme” sintetiza um olhar bajulador, uma idéia, uma certeza: a de que as nossas lideranças nascem sempre do mesmo ovo da serpente, da mesma gestação, há séculos. Serpente alimentada da cultura do poder e de vida eterna, sempre igual. Concepção simbólica de uma dialética publicitária de significação preventiva para a reeleição de um presidente.
Lula num aquário não é mais o velho militante que alimentou sonhos com esperança, mas a fita cassete ou o DVD de amanhã. Até vemos que o “diretor” não interfere em nada, mas também não acrescenta nada ao espectador informado, ou não. Apenas brinca-se de fazer “imagens” com a baixa indústria da consciência, que acaba por justificar o nosso atraso teórico e prático em relação a velha nostalgia burguesa de estar sempre dentro ou ao lado do poder.
Agora perguntamos: da marginalidade mostrada pela TV ao poder constituído, não existem diferenças? É tudo a mesma coisa? No “filme” em questão, a tal apropriação interna do poder só reproduz sem contradição alguma, a harmonia entre o capital e a ideologia dominante. E a vendida arte cavalheiresca do realizador, é apenas uma continuação da ordem política imposta e justificada. E o que na verdade interessa não é a política ou o cinema, e sim estar dentro e ao lado do poder – obedecendo. Entreatos, ao não querer se posicionar (se posicionando), torna-se peça de propaganda enganosa. O uso externo do “filme” poderá muito bem servir a reeleição de Lula. Aliás, dois anos, depois no meio do mandato, já entrou servindo para isso. É fraco como cinema, e por isso mesmo servirá ao poder.
Claro que as personalidades políticas são vendidas como sérias e responsáveis. Como campanha pelo visto é enganação, tudo serve para empurrar seja lá o que for. E o que menos interessa é o humano, é a mão-única do filme, que serve ao arranjo cerimonioso da linguagem esvaziada de sentido. A miopia cinematográfica do realizador apenas dá dimensão ao puramente mistificador das idéias do poder. Filma-se então o triunfo do narcisismo conciliador de todos, onde a inversão do real é substituída por uma espécie de encantamento burguês capaz de suavizar contradições e subversões. O poder-mercadoria é nivelado pelo lado bom da fantasia como faz a publicidade com o papel higiênico ou o macarrão. E submergir Lula no final entre câmeras e microfones, é o mesmo que exaltar no unanimismo a retumbante falta de idéias de todos da política ao “filme” em questão. O realizador se acha mais esperto e chega a dizer que o atual Lula “administra miúdezas”, e não múltiplas arrogâncias que vão do capital financeiro aos meios de comunicação, passando por religiões de resultado, empresários, forças armadas, partidos, políticos, latifundiários e multinacionais. Na sociedade bárbara a que nos acostumamos, acompanhadas dessas dificuldades do sobreviver, amesquinhou a liberdade, a cultura e o caráter simbólico formador social do indivíduo. Todos elogiam as sagradas porcarias do dia-a-dia. E quando não elogiam, são incapazes de tocar no universo poder em que as coisas, as pessoas e as idéias estão geradas. Lula, o “filme”, todos, fazem parte desse universo feito de indivíduos e de um conjunto maior, a massa, o povo: a besta do apocalipse que se manifesta pela liderança de gente como Bush, Putin e Lula. Sem esquecer Hitler, né?
Peões
Ditadura militar, Brasil 70/80. Não se trata aqui de examinar as múltiplas contradições do movimento operário, ligado aos sindicatos do ABC. Eduardo Coutinho mescla uma delicada aproximação do Outro, com as suas preocupações em relação ao fim dos sonhos com as frustrações frente à história, o desemprego, derrotas e, por fim, a velhice. E aí então, rostos marcados pelo passado de exploração braba, pela miséria permanente. A terna beleza analítica do olhar, uma vez mais passa pelo respeito e não pela sedução fácil e barata do espetáculo que muitas vezes serve ao cinema, mas não à história de um povo. Ou seja, edifica-se um diálogo humano profundo entre o Outro, Coutinho e o espectador, numa aproximação simbólica de um pensamento de Sartre que diz: “Um grito de dor é sinal da dor que o provoca. Mas um canto de dor é ao mesmo tempo a própria dor e outra coisa que não a dor.”
Evidentemente que Peões não é só reflexo do atravessamento da dor do movimento operário do ABC, mas uma espécie de recuperação da história humana que não se pode perder.
Nessa trilha da busca de uma história, cada depoimento torna-se uma percepção significativa do tempo-País, onde o que mais importa não é o espetáculo do sofrimento coletivo como no medíocre Cidade de Deus, e sim a possível arte de resistência à exploração, à violência e ao fascismo espetacular muito usado pela TV. Ontem e hoje as pessoas são as mesmas, o que mudou foram as marcas da vida. Marcas de muitos desejos frustrados pela própria história da difícil relação entre operários e multinacionais. Diz uma senhora, com muita propriedade, diante da “esperança” de um novo Brasil: “Não foi o PT (que todos ajudamos a fundar) que chegou ao poder, e sim o Lula”. E claro que o Lula é defendido mais pelo seu passado que pelo seu presente. Claro também que o circo é armado e defendido pela mídia para que Lula siga sendo visto como velho militante do ABC. Ela o transforma num $anto simpático, como no patético Entreatos . Mas, quando foi diferente essa relação da mídia com o poder? Sarney e FHC também não foram vendidos como $antos, preocupadinhos e responsáveis?
Já o componente impulsionador se processa entre a tomada de consciência, a militância e a vida sem espetáculo algum. O sujeito-militante de ontem é o velho sofrido de hoje que não lembra mais a letra da música que cantava alto para a mulher, hoje falecida. Canta-a ajudado pela filha jornalista. E se o movimento operário compõe esse quadro trágico de muitas vidas esquecidas que não foram para o paraíso, perguntamos: qual a responsabilidade dos chamados partidos políticos de oposição? Nos parece uma discussão que vai além do sujeito-espetáculo do poder.
No nosso ponto de vista, o povo não pode continuar sendo só massa manobra de interesses muitas vezes questionáveis. E uma vez totalmente sugado pela exploração e pela vida, é deixado de lado como um simples objeto desprovido de sonhos, necessidades e vontades. O povo, queiram ou não, é constituido de seres humanos bem mais interessantes que as múmias de ontem e de hoje, que chegam ao poder. Belo filme o de Eduardo Coutinho, de tantas significações, incluindo a de um retorno a Cabra marcado para morrer, do mesmo diretor, só que da década de 60. Uma tentativa de, pelo simbólico e pelo que representa como arquétipo de um povo buscar uma aproximação entre o campo e a cidade.
Peões. Simples, generoso, reverente. Uma narrativa tão simbólica quanto real e de múltiplas denotações que, também, poderia se chamar “Massa e poder”. Pela abrangência do que fica para nós, espectadores e ainda não fugitivos da história, das difíceis relações de trabalho entre patrões e empregados. O povo, a superestrutura ideologizada e o poder; as idéias dominantes. E o filme somente não chega a narrativa do sublime, porque a tragédia a permear sempre todos os sonhos, não deixa. E Coutinho é um regente com a primazia dos sentidos; suas eflorescências são rizomas de olhar sistêmico, brotam da alma dos depoentes. E isso encanta. Dói. E fragiliza. Isso nos obriga a seguir Coutinho e falar de muitas coisas com o filme.
Sindoval Aguiar e Luiz Rosemberg Filho são cineastas