O Dr. Clodomir dos Santos Morais nasceu na Bahia. Formou-se em Direito, no Recife – PE. Ingressou nas Ligas Camponesas, organização de marcou profundamente a história dos movimentos populares de nosso país. Ali, Clodomir Morais tornou-se assessor e organizador das Ligas que, da década de 50, até serem destruídas pela contra-revolução de 1o de abril de 1964, foi um dos movimentos de massa mais combativos no Brasil.
Por 15 anos, Clodomir Morais, que teve seus direitos políticos cassados, conheceu o exílio. No entanto, durante todo esse período, foi conselheiro regional da ONU para a América Latina em assuntos da reforma agrária e desenvolvimento rural. Também para a ONU, através de algumas de suas agências, dirigiu projetos de capacitação e organização em Honduras, México, Nicarágua e Portugal, outras vezes consultor para missões técnicas na Europa, América Latina, África e Ásia, tendo voltado o seu todo seu trabalho para a questão camponesa.
Nas universidades de Rostock, na Alemanha, foi professor residente. Em Berlim, por onde passou quatro anos, atuou como professor conferencista e fez o curso de doutorado em sociologia. Em Wiconsin —USA, como em várias universidades de países da América Latina, da mesma forma trabalhou como professor conferencista. Somam a dezessete os livros publicados pelo Dr. Clodomir Morais, traduzidos alguns para vários idiomas.
Quem fala primeiro é esse veterano assessor e coordenador das Ligas Camponesas. Suas palavras iniciais ressoam como uma advertência aos que se deixam levar pelos falsificadores da história. Elas avisam do perigo que representa a auto-suficiência e a rudeza intelectual dos que decoram textos literários acreditando ter assimilado a verdadeira teoria e desprezam as duras experiências do povo. Recordam o vazio da militância dos que não confiam nas massas e, portanto, tornam-se ainda mais incapazes de reconhecer a verdadeira chefatura em cada momento histórico.
Impedir que se oculte tantos anos de luta das Ligas, significa também prevenir dos riscos de conviver com as cabeças envenenadas pelos especialistas da intriga e da difamação, dos que se deixam levar pelas doutrinas e terminologias — seculares, modernas, "pós-modernas", banhadas no misticismo medieval, no obscurantismo da tecnocracia, nas teorias da subjugação nacional e da exploração do homem pelo homem. De fato, os que não observam a história do povo trabalhador na luta para impor a sua democracia, acabam construindo cada qual o seu criticismo concorrente em luxo e originalidade, até o momento em que desertam definitivamente ou passam a servir como instrumentos da reação mais imunda, independente do grau de ingenuidade que possam arguir em sua defesa, um dia.
CM – É sumamente importante não deixar que se apaguem da memória os vinte anos de luta das Ligas Camponesas, de 1944 a 1964, quando foram proscritas pelo golpe militar. Que não se borre principalmente o período de 1955 a 1964, em que, no Nordeste, liderado por Francisco Julião, "o movimento de organização da classe camponesa das propriedades açucareiras apresentou, até 1962 — segundo Celso Furtado na sua Dialética do Desenvolvimento — todas as características de uma arregimentação revolucionária de tipo clássico."
Esse destacado economista, criador da Sudene, deixa claro que tal coisa ocorreu a partir da etapa em que o camponês tomou consciência de que "o Estado não era outra coisa senão o instrumento superior de opressão da classe proprietária." Por isso, no seu entender, "as únicas lideranças que conseguiram prevalecer foram aqueles que falaram uma linguagem de aberta hostilidade ao Poder Público, símbolo que era do complexo de interesses da classe proprietária. Destarte, eliminou-se desde o começo, toda a possibilidade de prevalência de lideranças de tipo paternalista, baseados na distribuição de favores alimentados pelos cofres públicos."
Ainda segundo Celso Furtado,"o extraordinário fenômeno da rápida propagação das Ligas Camponesas não encontra paralelo na história dos movimentos sociais, no Brasil."
AND – Quando o senhor, no exterior, foi informado sobre a existência de algumas correntes do movimento camponês que se rearticulavam, e qual o papel o campesinato desempenha?
CM – Desde 1977 eu soube do assassinato do advogado Eugênio Lira, que havia encabeçado, juntamente com o jornalista Joaquim Lisboa Neto, a vitoriosa arregimentação de mais de três mil camponeses da Bacia do Rio Corrente, no Além-São Francisco do Oeste Baiano, afim de integrá-los aos recém-fundados Sindicatos Rurais de Santa Maria da Vitória, São Félix e Correntina.
Dois jornaisinhos mimeografados jogaram papel importante naquela região: O Posseiro, de Santa Maria, e A Foice, de Correntina.
Eu soube também da instalação em 1980, do CENTRU (Centro de Treinamento Rural) no Recife, dirigido pelo veterano militante das Ligas Camponesas, Manuel da Conceição, e a sua companheira Denise Leal. Em 1986, o CENTRU se estendeu ao Maranhão, exercendo uma poderosa influência política, não somente em Imperatriz, mas em todo o Centro-Oeste daquele Estado.
Neste mesmo 1986, quando trabalhava na Universidade de Rostock, na Alemanha Democrática, fui informado da existência do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, MST, mediante um aviso de um dos seus dirigentes de que minha cartilha Elementos sobre a Teoria da Organização no Campo era o honroso Caderno de Formação nº 11 dos cursos para formação de seus quadros.
AND – Por que, ao aparecerem as Ligas Camponesas, caíram em desuso as classificações de movimentos messiânicos, fanáticos, organização de cangaceiros ou jagunços?
CM – Estes conceitos eram principalmente usados no meio acadêmico. O termo camponês era o rótulo que mais apavorava os latifundiários e seus aliados. Daí surgirem os eufemismos rurícolas, labrego, lavradores, trabalhadores agrícolas, etc. Hoje, o temor lhes surge quando escutam falar em sem-terra, sem-teto, invasores, senderistas, zapatista", etc.
AND – Qual a característica comum aos movimentos camponeses do passado e do presente, do ponto de vista ideológico, político e organizativo?
CM – O individualismo, o paternalismo, o espontaneismo e outros vícios ideológicos de caráter idealista e oportunista, oriundos das formas artesanais de trabalho. Daí o modesto nível de organização dos movimentos camponeses nos moldes convencionais, razão pela qual a história universal não registra sequer uma revolução camponesa vitoriosa.
AND – Que reivindicações apresentavam as Ligas Camponesas e que relações estabeleciam com o movimento operário?
CM – As reivindicações dos camponeses eram fundamentalmente o acesso à terra, no que eram apoiados pelos grandes sindicatos de assalariados da cana de açúcar, entre os quais se destacavam: o do Município do Cabo Santo Agostinho, com cinco mil associados, arrebatado das mãos do vigarista Padre Melo pelo mestre-de-obras Ozias Ferreira (ex-dirigente militar das Ligas no Mato Grosso e em São Paulo) e professor de Economia Política dos primeiros Laboratórios Experimentais de Capacitação Massiva; o de Rio Formoso e Serinhaém, de seis mil integrantes, dirigido por Neném, líder de massas do sul de Pernambuco; o sindicato de assalariados da cana e usinas açucareiras de Goiana, com sete mil membros dirigidos por "Cabeleira" e o sindicato de assalariados de engenhos e usinas da região de Palmares, com 54 mil associados dirigidos por Zé Eduardo, etc., todos em Pernambuco; outros tantos em Guarabira, Sapé, Maranguape, Santa Rita e Rio Tinto na Paraíba, que seguiam as lideranças de Adauto Freire (Chefe Supremo do "Esquema Militar" das Ligas) de João Pedro e Elizabeth Teixeira, de Maria de Aquino, Luis Aureliano, Assis Lemos e outros.
AND – As Ligas chegaram a elaborar um programa para o conjunto das classes da sociedade brasileira que se colocavam objetivamente contra as classes e os setores mais reacionários, no Brasil, assim como contra o imperialismo?
CM – As Ligas Camponesas do Brasil (não confundir com as mil ligas camponesas na Venezuela e umas duzentas na Província de Corrientes, na Argentina) eram um aglomerado de organizações de massas, um tanto quanto desarticuladas. Elas reuniam ligas de camponeses, ligas de operários, ligas de estudantes, ligas de sargentos, ligas de pescadores, ligas das amas de casas, ligas de moradores, etc., que se opunham à Direita e apresentavam uma clara posição antiimperialista. Levavam uma vantagem sobre os sindicatos, porque reuniam também a família de cada associado. Não é por acaso que as Ligas Camponesas tomaram a iniciativa pioneira de fundar, no Recife, em 1960, o Comitê Nacional de Apoio à Revolução Cubana, o que vale dizer, de repúdio ao imperialismo norte-americano.
O Partido Comunista Brasileiro não pôde fazê-lo, pelo fato de apoiar a candidatura do General Lott à presidência. Este, era um militar que (ao contrário do seu contrincante Jânio Quadros), antipatizava Fidel Castro e seus guerrilheiros que derrubaram o ditador, general Fulgêncio Batista.
AND – Que papel o PC cumpriu para a ascensão e declínio das Ligas (levando em consideração suas duas correntes)?
CM -As Ligas Camponesas viam claramente que o Golpe militar era iminente, desde os dias em que o povo tomou conhecimento das razões que levaram o Presidente Vargas ao suicídio, em 1954; as mesmas razões de Café Filho e Carlos Luz tentarem impedir a posse de Juscelino e Jango e, ainda mais claramente, quando, depois de derrubar Jânio Quadros, os militares resistiram em dar posse ao vice-presidente João Goulart. Somente os cegos e os oportunistas não vislumbravam, não anteviam o desfecho de 1º de Abril de 1964. O pior de tudo é que eles odiavam as organizações tidas como radicais (Ligas Camponesas e Grupo dos Onze de Leonel Brizola) que não alimentavam nenhuma ilusão à anacrônica acumulação de força pregada pelo PC.
Os comunistas que orientavam as Ligas Camponesas do Brasil, ao constatar que o governador de São Paulo, Adhemar de Barros, em 1961, já estava distribuindo 25 mil carabinas entre os latifundiários de vários Estados, decidiram montar vários campos de treinamento militar como medidas locais de autodefesa dos camponeses e defesa da ordem constitucional.
AND – Na época das Ligas o quadro de estatalidade era mais favorável?
CM – Ao contrário. As Ligas Camponesas de Julião, o Poder Público negava tudo. Às vezes a ULTAB (União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil), braço rural do PCB, obtinha algumas migalhas de algumas entidades de serviços do Estado.
AND – Que variantes e estilo de administração podem seguir os camponeses nos seus projetos econômicos mais amplos?
CM – A administração de empresas autogestionárias, de tipo grande, de produção social de bens e de serviços, sem cercas internas a fim de poder usar racionalmente a maquinaria , o progresso técnico que o nível das forças produtivas exigir.
AND – Quais os principais erros (nos planos ideológicos, político e econômico) cometidos pelas Ligas Camponesas?
CM – O erro fundamental que gerou todos os demais equívocos, consistiu no retardamento da criação de uma estrutura política unitária e disciplinada, a exemplo dos partidos comunistas. Sua OP (Organização Política) só foi criada em 1964, três meses antes de serem proscritas pelo Golpe Militar de 1º de Abril.
AND – Quais os pontos de identificação entre os atuais movimentos camponeses e as Ligas?
CM – São pouquíssimos os pontos de identificação, as atuais condições objetivas e subjetivas serem muito diferentes às vigentes no tempo das Ligas de Julião. Há que levar em conta que os maiores inimigos das Ligas eram: a burguesia rural, o braço armado do Estado, além do Clero Romano, com sua inquisitorial Liga Eleitoral Católica, com direito a veto de registro de candidatos de esquerda aos parlamentos (federal, estaduais e municipais).
Além disso, Francisco Julião teve a coragem de enfrentar o arcebispo de Recife e Olinda Dom Antônio de Almeida Morais Júnior (verdadeiro "brucutu" de crucifixo ao pescoço) com uma ação judicial que o levaria ao banco dos réus se a Justiça da época não fosse tão carola.
AND – As variedades encontradas nas regiões do Brasil criam impedimentos para a unidade do movimento camponês?
CM – Todo movimento social em crescimento apresenta diversidade de enfoques táticos e estratégicos, mais ainda em um país como o Brasil, com dimensões continentais e multiplicidade (?) de culturas. Aquela diversidade de cultura gera, necessariamente, concepções contraditórias oriundas de atividades práticas diferentes, em condições históricas diferentes.
Como dialeticamente resulta impossível um dos contrários, ou seja, uma contradição, ser suprimida por outra, somente a prática (da interação dos contrários) leva à absorção de uma das contradições.
Da mesma forma em que todo e qualquer movimento da matéria resulta da unidade (interação) dos contrários, esta lei da dialética rege também os organismos sociais, já que estes constituem formas superiores de organização da matéria.