Entrevista com a professora indiana Radha D’Souza – Índia: miséria, opressão e resistência popular

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Entrevista com a professora indiana Radha D’Souza – Índia: miséria, opressão e resistência popular

https://anovademocracia.com.br/wp-content/uploads/71/18-a-846.jpg“Existe uma crise em meio à intelectualidade indiana, especificamente entre os intelectuais de esquerda, a respeito da situação que se desenvolve na Índia. Há uma revolução em curso no país, o povo é submetido a condições desumanas de existência. Os camponeses e povos tribais têm seus direitos violados, são caçados. Que fazer diante de tudo isso? Uma das principais falhas da luta na atualidade é que não há um fórum internacional verdadeiramente democrático que organize esse debate. Meu trabalho se refere exatamente a isso e dá os fundamentos para acompanhar essa discussão”. Dessa forma a Dra. Radha D’Souza, indiana, professora de direito na Universidade de Westminster, Londres, e ativista dos direitos dos povos da Índia, iniciou a entrevista exclusiva concedida a AND durante a sua passagem pelo Brasil para a realização de um ciclo de conferências.

As lutas do povo indiano são muito antigas, mas desenvolvem-se formidavelmente a partir de 1800, quando se desencadeia a 1ª luta de independência. Mas, para compreendermos a situação atravessada pelo país e a luta dos povos hoje, devemos ter em conta alguns aspectos da atualidade:

A Índia é um país de proporções gigantescas. Situado no continente asiático, tem em sua fronteira oeste o Paquistão e junto dele o Afeganistão, ao norte a China e Tibet, ao leste está Bangladesh e ao sul o Sri Lanka.

O Afeganistão é um ponto crítico no momento. Lá concentram-se milhares de tropas e a guerra de agressão, com o USA à testa, enfrenta sérios problemas. O Paquistão é um ponto geopoliticamente importante para o imperialismo, assim como a China. Portanto, além de levarmos em conta a situação nacional da Índia, não podemos nos descuidar da situação internacional.

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O ciclo de conferências com a professora Radha foi
realizado na UERJ, UFF e USP durante o mês de outubro

A população da Índia corresponde a um sexto da humanidade, com aproximadamente 1,2 bilhões de habitantes. O Sul da Ásia concentra 25% da humanidade. Portanto, também não se pode falar em emancipação dos povos sem falar do Sul da Ásia.

Na Índia há 24 grandes idiomas. Não me refiro aos dialetos, que são inúmeros. Cada língua tem seus dialetos. A Índia possui 28 estados e cada estado possui seu grupo linguístico. A linguística de cada estado tem uma formação colonial diferente. A costa Oeste foi colonizada pelos portugueses e a costa Leste pelos franceses. Alguns estados, como Bengala Ocidental, foram mantidos sob o domínio britânico e muitos outros estados foram indiretamente dominados pela Inglaterra.

A Caxemira, que era um reino independente, foi tomada pelo Estado indiano.

Menciono tudo isso pois são esses os aspectos que montam o conflito atual.

Um bilhão de miseráveis

Nos últimos 20 anos, o abismo entre ricos e pobres cresceu de forma dramática na Índia. 10% das pessoas mais ricas do mundo estão lá e é de se espantar como em tão pouco tempo essas pessoas ficaram tão ricas. Como isso foi ocorrer?

Há uma fração das classes dominantes na Índia pertencente à ala direita do Partido Popular Indiano ou Bharatiya Janata – BJP, que se vangloria a todo momento afirmando que a “Índia está brilhando”. Tentam vender que essa é a realidade de hoje.

Mas como isso se dá?

Um dos maiores exemplos de como o Estado indiano tem beneficiado as grandes empresas e grupos imperialistas se chama Reliance Industries Limited Group. Esse grupo conseguiu uma brutal expansão se valendo da máquina estatal. Mais adiante, explicarei como isso ocorre.

Voltando à situação do povo, para o povo, o que significaram as políticas de liberalização da economia?

Os números são reveladores: 50% da população da Índia está desnutrida. Entre estes, 65% são dalits, membros da casta dos intocáveis, a casta mais baixa da sociedade indiana.

Na Índia não existe seguridade social, nenhum benefício. Não há direito à terra para os camponeses, não há um serviço de saúde ou educação pública que atenda minimamente o povo.

Esses são os reflexos da chamada “globalização” na Índia a partir dos anos 90: miséria, opressão, privatizações… uma realidade que o povo do Brasil também deve conhecer muito bem.

Contexto geopolítico

Quando George W. Bush fez a declaração de que “ou se está com o USA ou se está com os terroristas”, o Estado indiano se declarou completamente alinhado com o USA.

Uma das maiores transformações na Índia a partir disso se deu na política externa. A Índia, que nunca havia reconhecido o Estado de Israel, o fez nos anos de 1990 e hoje mantém acordos de defesa com o USA, Israel e outros países imperialistas.

O velho Estado indiano se transformou em um grande aliado das forças do imperialismo. A grande indústria de armas mundial destina 14% da sua produção à Índia

As maiores riquezas minerais do país, que estão assentadas justamente nas regiões tribais, têm sido entregues por completo pelo governo às grandes mineradoras estrangeiras através de acordos e memorandos, conhecidos pela sigla MOU, que oferecem terras para estas companhias mineradoras.

A questão da terra

Nestas vastas zonas onde se concentram ricas jazidas minerais, desenvolve-se há décadas a ininterrupta luta dos camponeses e povos tribais contra sucessivas investidas do velho Estado para expulsá-los das terras. Essa região foi nomeada pela reação por “corredor vermelho”, devido à forte presença dos naxalitas, como são conhecidos os membros do Partido Comunista da Índia (maoísta).

Para buscar dar legitimidade aos ataques contra os povos tribais, o Estado indiano criou as chamadas “zonas econômicas específicas”, que são áreas estabelecidas para exploração industrial. Há uma lei de 2005 que permite que empresas estrangeiras comprem as terras para criação de parques industriais pagando apenas 10% do valor e o Estado arca com os 90% restantes, além de oferecer outras benesses como cinco anos de isenção fiscal.

Essa lei antipovo diz que, uma vez adquirida a terra, a legislação indiana não se aplica mais lá, pois a propriedade da empresa deixa de ser território indiano. As lutas pelos direitos trabalhistas dessa área não podem ser julgadas pelas leis indianas e os trabalhadores não têm a quem recorrer. E no caso de uma disputa de terra, é o “comissioner” (representante das empresas) quem decide. O comércio a partir dessas áreas passa a ser considerado comércio exterior e também não se submete às leis indianas.

Todos os setores públicos na Índia vêm sendo sistematicamente privatizados e o desemprego já é uma realidade para a maior parte do povo. Particularmente para os dalits o quadro é apavorante.

Sobre a reforma agrária, que é um item previsto (mas não garantido) pela Constituição, no caso de haver “interesse público” sobre as terras, ou seja, se forem descobertas minas ou quaisquer outras riquezas, o Estado pode tomá-las e depois privatizá-las, e é isso que vem ocorrendo.

A situação dos camponeses é desesperadora. De acordo com informações governamentais indianas, 200 mil pequenos e médios camponeses se suicidaram a partir da aplicação dessa legislação antipovo. Não há nenhum tipo de proteção aos camponeses e povos tribais. A Organização Mundial do Comércio não garante nada, o preço dos insumos é estratosférico e como os camponeses dependem de créditos que não têm como pagar, afundam-se em dívidas e acabam se suicidando.

O fato é que os camponeses não têm o que fazer e para onde ir. Eles não aceitam a situação, não aceitam sair das terras e são expulsos por força das armas.

Guerra contra o povo

Todos esses acontecimentos conduziram a um novo levantamento dos povos tribais, principalmente dos Adivasis e dos camponeses na área do “corredor vermelho”. Mais uma vez, os camponeses e povos tribais se rebelaram em Kaliganagar, Singur, Nandigram, Lalgarh e Naraynpatna.

Essas lutas de resistência dos pobres contra a sua expulsão das terras trouxeram novamente à tona a influência dos maoístas sobre a luta dos povos na índia. Há décadas os maoístas atuam junto aos povos tribais e organizam sua luta nessas áreas.

O Estado, por sua parte, lançou operações militares em uma campanha conhecida como Operação “Caçada Verde”, cuja finalidade é eliminar os membros do PCI (maoísta) e garantir a expulsão dos camponeses e povos tribais das áreas de jazidas minerais.

Atualmente, as Forças Armadas da Índia treinam grupos paramilitares que são diretamente financiados pelas empresas estrangeiras que exploram as terras tribais. Os paramilitares controlam o território e chegaram ao ponto de negar vistos para entrada em certas áreas, até mesmo para cidadãos indianos, como já vem ocorrendo em Chhattisgarh.

Há cerca de seis meses atrás, o Estado impôs uma nova ordem: todos os membros do PCI (maoístas) são ilegais, devem ser banidos e presos. O velho Estado diz que “quem não condena os maoístas também deve ser preso”.

A escritora Arundhati Roy, que é uma proeminente intelectual democrática e defensora da luta dos povos tribais e camponeses na Índia, uma celebridade internacional, vem sendo alvo de uma campanha de difamação e perseguições. Mas devido à sua fama internacional, os reacionários indianos não sabem o que fazer com ela. Mas não podemos nos esquecer que há muitos outros apoiadores da luta do povo indiano sendo perseguidos, muitos presos. Um deles, o médico Binayak Sen, é um dos muitos detidos. Ele se dedicava ao povo, visitava as áreas de mineração, tratava dos pobres e foi preso. É decisivo para a luta dos povos existirem pessoas como eles e, como não há um forte movimento internacionalista, eles continuam como “celebridades”, enquanto milhares de anônimos constituem uma força vital para a luta.

A violência do Estado contra os povos é explícita e gratuita. E não estou falando de violência contra protestos ou massas organizadas, mas pessoas comuns que são molestadas e brutalmente agredidas pelo fato de serem pobres. Nunca vi um policial abordar um pobre sem primeiro espancá-lo.

Construir a nova nação

Até os anos de 1990 a discussão em meio aos intelectuais de esquerda na Índia era: “como o povo vai defender seus direitos?”, “o que fazer?”

Os intelectuais e artistas simpatizavam e davam apoio porque sentiam que o Estado falhava e que a constituição era falha.

Com o incremento da exploração imperialista, aprofunda-se o debate entre as correntes que tradicionalmente lutaram e se mantém lutando junto ao povo, e a “nova esquerda”, os conhecidos movimentos “anti-globalização”, ligados principalmente ao Forum Social Mundial.

Se antes se debatia e acreditava-se que seria possível construir uma constituição democrática, ilusão que foi abandonada ano após ano devido aos ataques e políticas antipovo e antinação, os “novos movimentos sociais” e “anti-globalização” atuam buscando defender e manter as posições de defesa da constituição.

O constitucionalismo burguês é uma sofisticação da ideologia capitalista. É uma ordem só de possibilidades e não de realidade. Nos países dominados não há porque lutar por uma constituição. O movimento constitucionalista está um passo atrás e não um passo a frente na luta pela emancipação dos povos na Índia.

Eis aí a grande crise e fissura da intelectualidade de esquerda na Índia.

O Brasil e a Índia possuem identidades, mas não se pode dizer que as duas realidades são as mesmas simplesmente porque foram colonizados. Os chamados “movimentos anti-globalização” não entendem o problema nacional. Eles estabelecem bandeiras gerais e corporativistas e não se conectam às lutas nacionais. Por exemplo: há um movimento “anti-Coca-Cola” na Índia que tem conexão com os movimentos similares de vários países, mas são incapazes de se ligar à luta de uma aldeia no próprio país.

O movimento que conta com os maoístas e muitas outras organizações democráticas, por sua vez afirma que “temos que construir uma nova nação e concluir as questões da nossa luta de libertação”. Mas como ainda não se dispõe de um forte movimento internacionalista, não se fica sabendo disso em outros países. Essa é uma necessidade para a luta dos povos da Índia e dos povos de todo o mundo, é uma questão urgente que deve ser debatida e implementada para o sucesso da luta.

Questões centrais

Este debate nos traz perguntas-chave e é em torno dele que nos debruçamos atualmente:

1 O que é democracia? Como se pode falar disso se a constituição não significa nada?

2 O que é desenvolvimento? As massas questionam “por que tem que se sacrificar pela ‘nação’?” enquanto os “anti-globalização” dizem que as massas têm que se enquadrar e integrar a “sociedade civil”.

3 O que é nação? Essa é a grande questão do momento e é por ela que nos batemos. Afinal, no nosso entendimento, a nação é de quem está na terra, trabalha nela, luta apor ela.

O objetivo do Estado é empurrar 80% do povo para as cidades. Para isso, fazem uma forte propaganda para voltar a opinião pública contra os povos tribais e camponeses. O Estado questiona: “por que preferem viver em uma tenda na selva do que na cidade?”. Mas tudo isso tem como objetivo tomar dos camponeses e tribais a água, a terra e riquezas minerais.

Gostaria de trazer o debate ao Brasil, pois ele afeta todos os povos. É um debate comum a todos os povos dominados.

Gostaria de debater a questão da terra. O Banco Mundial produziu recentemente um relatório que mostra como o imperialismo adquiriu terras em todo o mundo. É uma questão que precisamos abordar.

Uma das principais falhas da luta na atualidade é que não há um fórum verdadeiramente democrático que organize esse debate. Isso acaba contribuindo para que certos movimentos autenticamente democráticos busquem espaços como o Fórum Social Mundial – WSF. Precisamos criar os fóruns internacionais que representem as autênticas lutas para que possamos debater todas essas questões.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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